terça-feira, setembro 23, 2008

Memória

António havia recebido o convite para um jantar de amigos de outrora, através dos seus pais. Os organizadores não tinham outra forma de o contactarem, senão o número de telefone da casa dos seus progenitores. De início, António considerou normal o procedimento, só depois reflectiu sobre a quantidade de anos que tinham passado, sem que alguma vez tivesse encontrado algum dos seus antigos colegas e amigos. A melhor evidência era não ter recebido nenhum mail, nem sms, nem chamada no telemóvel. Tudo isso tinha aparecido anos depois da comum convivência.

Como tinha que se deslocar alguns quilómetros, António por prudência e respeito pelos amigos, optou por sair do emprego atempadamente. Entrou no restaurante marcado, descoberto com facilidade, dirigiu-se ao primeiro empregado que avistou e pela resposta obtida, apercebeu-se que tinha sido demasiado cauteloso com o horário. Ainda assim, preferiu sentar-se na mesa indicada. Ao tirar o casaco, pediu um aperitivo que foi saboreando.

Ficou à espera, pensando na quantidade de anos que tinham passado. Distraiu-se a contar os lugares marcados e a fazer uma previsão de quem seriam os restantes convivas.

Ao fim de alguns minutos chegou um grupo de antigos colegas. Sem esforço recordou as caras e associou a cada um o nome, apesar do tempo passado. Cumprimentaram-se efusivamente e trocaram a conversa de circunstância: a morada, a profissão, o estado civil, os filhos, a descrição da monotonia dos dias de semana e os programas de fim-de-semana, que afastam as pessoas para longe do seu passado.

O grupo foi crescendo, com a chegada dos outros convidados. Trocaram iguais informações entre aqueles que já não se viam há bastante tempo. Aos poucos introduziram-se outros temas nas várias conversas: a saúde pessoal e de familiares, histórias do presente, projectos para o futuro, as viagens, as férias de sonho, o sucesso dos filhos, os hobbies, o futebol, entre outras.

Quando a propósito uma ou outra recordação dos tempos de juventude. Um ou vários momentos vividos, que por terem sido tão peculiares, merecem a sua evocação.

Nestas ocasiões relembra-se os amigos comuns, sem sentido estarem presentes no repasto, embora sejam elos de ligação entre pessoas conhecidas e sobre os quais devemos informar do seu estado. António, já com todos os convivas sentados à mesa, lembrou-se disso, enquanto falava com a sua ex-colega Márcia e contou-lhe que Frederico ia ser pai de gémeos. Quem? Márcia não se recordava de nenhum Frederico. António tentou encontrar várias formas de lhe recordar o nome, a pessoa, os momentos vividos pelos três. Márcia não se lembrava de nada. Não vale a pena insistir, disse-lhe Márcia. Não era um assunto de maior importância e António já não estava com Márcia seguramente há dez anos. O Frederico tinha desaparecido da vida de ambos um tempo antes e pelas voltas da vida, António voltou a relacionar-se com ele.

Enquanto o jantar era servido, a conversa prosseguiu e António fez várias alusões ao seu passado em comum com Márcia. Um concerto, ela não fazia ideia. Um jantar numa recôndita vila do país, nada. Um outro programa e igualmente nada. Não desesperou e não duvidou da sua sanidade, nem criticou a memória da sua amiga.

Apesar de tudo, desde o início do jantar sentiu sempre que o reencontro entre ambos estava coerente com a relação que tinham mantido no passado. Interesse mútuo e compreensão pelas conversas e preocupações do outro, davam para perceber que a afinidade entre ambos não tinha sido esquecida. Mesmo dez anos depois.

Não sendo o problema dela, o mal estava nele. Na sua memória que fixava coisas insignificantes. Recordava-se de pessoas sem interesse algum, de assistir a concertos que não tinham feito história, de procurar aldeias e vilas para obter uma refeição, sem qualquer condimento especial, em restaurantes entregues à indiferença e por aí adiante.

Percebeu como se tinha enganado no passado. Como tinha sido desinteressante a sua vida. Memórias pessoais sem qualquer significado para o presente, nem para manter uma conversa em jantares de pessoas com vivência em comum.

Tentou com Gustavo, sentado à sua frente, encontrar traços do passado. O resultado foi igual ao obtido com Márcia.

Enquanto Márcia, sentada à sua direita conversava alegremente com a amiga do outro lado, António virou-se para a esquerda e escutou uma história, que bem recordava. Acrescentou uns pormenores à narrativa de Miguel, que exercitava a memória do período juvenil, sentindo que o seu acréscimo não era reconhecido por ninguém. Podia ter ouvido um sensato “já não me lembrava”, ou um entusiástico “pois foi!”. Nada disso. Apenas um indiferente “não me lembro”, seguido de desconcertantes “nem eu”.

Sentiu que estava ali a mais.

Simulou a recepção de um telefonema, alegou a necessidade de uma saída urgente. Providenciou o pagamento do seu jantar, vestiu o casaco, despediu-se e saiu, sem esperar que lhe fosse servido o café.


(a publicar dia 25/09/08)

quarta-feira, setembro 17, 2008

Três anos

            - Tens que mudar de fotografia! Esta é antiga, está desactualizada.

            Estávamos em Setembro de 2005 e os meus primeiros artigos de opinião tinham começado a ser publicados. Como qualquer novato nestas lides, eu pretendia verificar a aceitação dos meus textos juntos dos leitores e conterrâneos. Não foi aquela a primeira impressão recolhida, mas ficou-me na memória. Em lugar de um maior cuidado na apreciação do conteúdo, apenas a forma era analisada. Como a opção do tamanho, o tipo de letra, ou de critérios de paginação não eram da minha responsabilidade, sobrava a fotografia que me acompanha desde que me foi solicitada pelo jornal, para o principal motivo de crítica.

Não mudei de fotografia. Não cedi a tal argumento. Antes pelo contrário, mantive-a. Passei a ser uma “imagem” do interior do jornal. Para muitos leitores, no fundo, é disso que se trata, um rosto com palavras ao lado. Enquanto outros, entre os quais amigos e conhecidos, observam o título, lêem os vários caracteres formando as palavras, seguem as frases ao longo dos parágrafos e sem esforço, chegam ao final do texto.

Pelo meio factos, relatos, opiniões, análises, contos, estórias ou crónicas foram o produto destes três anos que em me dediquei à escrita, no jornal. Iniciei-a com o objectivo de criar uma forma de “comunicação” com os leitores. Um acto de cidadania, em que procurei manter a minha independência. Escrevo sozinho. Raramente recebo recados, ou me presto a encomendas. Os temas para análise ou opinião são escolhidos por mim. Por vezes, divago na escrita, dando palavras à imaginação.

Atravessei estes três anos em concordância com as minhas convicções.

Não cedi. Não vacilei na crítica. Não me embriaguei com argumentos de outros, nem com as inaugurações sucessivas, nem com os projectos para o futuro. Mantive-me firme na análise, na procura de dados, na emissão de opiniões divergentes.

Não me resignei.

Tenho procurado ser discordante quando a propósito e o contrário a despropósito. A conciliação não me agrada. No entanto, ao longo destes três anos, nunca senti qualquer falta de cordialidade dos visados das minhas palavras.

Não ofendo.

Numa relação com o jornal perfeitamente simbiótica, saí do aconchegante anonimato, recebi palavras de incentivo e de reconhecimento. Não desisti de acrescentar valor a estas páginas, mesmo quando terminou o efeito surpresa dos meus textos e passei a ouvir “não cheguei a ler”, “não consegui ler”, “é muito grande”, entre outras escusas semelhantes.

Havia um pressuposto temporal, quando decidi elaborar as crónicas para o labor. O objectivo era escrever durante três anos e meio e depois suspender a colaboração. Como auto-didacta, sei que o voluntariado começa a desgastar a vontade ao fim de algum tempo. Por este motivo, impus este limite à minha colaboração com este jornal, de modo a não me tornar repetitivo, nem a cansar os leitores.

            Prevejo que seis meses antes das eleições autárquicas, tudo o que possa vir a escrever seja confundido com outras intenções. Como esse período, bem sazonal, termina pouco depois do acto eleitoral, caso o jornal esteja interessado cá estarei de novo, com uma fotografia mais recente, se quiserem…

             A contagem decrescente não podia começar da melhor maneira. O meu texto “Odores” publicado no dia 4 do presente mês, despertou para a escrita, nada mais, nada menos, do que a Alzira. Na coluna – “ bem Alzira” - da penúltima página do último número deste jornal, esta voz popular teceu várias considerações e pelo que pude perceber na NET, foram bem recebidas. Espero agora que a Alzira não se cale e seja a voz da insatisfação dos sanjoanenses, no caso do mau cheiro. É necessário não ficar apenas por palavras e se a Alzira tiver capacidade de mobilização, podem acontecer coisas giras.

 

Nota: o meu texto publicado na semana passada, com o título “Descriminar”, continha duas gralhas. A primeira era logo no título que deveria ter surgido com o correcto “Discriminar”. Obviamente, que não pretendo absolver ninguém, muito menos considero que o director do labor precise da minha clemência, por isso, no 3º parágrafo, o que pretendia escrever é que os argumentos ponderados anteriormente por Pedro Silva, poderiam ter sido melhor evidenciados, como ficou explícito ao longo do referido parágrafo. Dada a gravidade do erro cometido, é mais correcto eu pedir a respectiva descriminação e como tal, livrar-me de qualquer tipo de penitência.

 

(a publicar dia 18/09/08)

quarta-feira, setembro 10, 2008

Discriminar

Discriminação foi a palavra escolhida pelo director do labor (vou-me habituar rapidamente à nova forma de escrever o nome do jornal, dada a minha simpatia por letras minúsculas) para classificar a pretensão anunciada pela Câmara Municipal de S. João da Madeira, de apoiar a totalidade dos alunos carenciados frequentadores das escolas do município, independentemente da origem da sua residência.

É sempre bom ler um texto com opiniões discordantes da actividade unânime da política autárquica. O debate de ideias, ou a apresentação de propostas alternativas são de enaltecer.

Descrição foi o que faltou à discriminação defendida por Pedro Silva. Estatisticamente é bastante provável que existam crianças carenciadas residentes em S. João da Madeira, a estudar fora do concelho, para acompanharem o trajecto dos pais para o seu emprego. Se bem me lembro e cito de memória, segundo o censos 2001, o número de habitantes de S. João da Madeira a trabalhar fora do concelho ascendia a cerca de duzentos e cinquenta. Desde essa data, com as transformações económicas inerentes ao encerramento de empresas e abertura de novas, é perfeitamente normal que aquele número se tenha alterado. De qualquer forma, desse número de pessoas que fazem um fluxo diferente daquele política e socialmente consagrado pela aplicação estatística, haverá certamente alguns com crianças em idade escolar e com baixos rendimentos, o que rotula logo os filhos como crianças carenciadas. Dados concretos obtidos com um pouco de pesquisa, suportariam melhor toda esta ideia.

A “medida” aprovada pelo executivo municipal permitiu melhor esclarecer todo o conceito de famílias apoiadas. O emprego dos pais é a evidência de que não são merecedores de subsídio apenas os desempregados, os excluídos, os possuidores de rendimento de reinserção social e por aí fora. Além deste facto, socialmente muito relevante, era importante perceber qual a totalidade de alunos nas escolas do concelho, para de uma vez por todas se evidenciar a percentagem de alunos apoiados e daí se poder tirar conclusões sobre o tecido social da região.

Em contrapartida, um outro aspecto ficou por clarificar: a sobreposição de apoios. Segundo o Ministério de Educação serão apoiadas milhares de crianças de todo o país, em subsídio directo do Estado central, para pagamento de manuais escolares, além dos demais apoios sociais. Com o subsídio autárquico a coincidir na mesma área, esta duplicação será mesmo necessária? E mais dúvidas haveria a enunciar: quantos munícipes de outros concelhos irão realmente candidatar-se e beneficiar deste apoio?

Estes números e o montante envolvido com este possível apoio jamais serão conhecidos.

Sem querer fugir ao tema da discriminação, é necessário não esquecer o ciclo político do próximo ano – três eleições – para compreender o extravasar de competências da Câmara Municipal de S. João da Madeira, que tal como previ nestas páginas no passado dia 17 de Julho, está agora mais vocacionada em demonstrar preocupações sociais.

Apesar deste esforço, a imagem transmitida em matéria de política social é ainda de descoordenação. É certo que os beneficiários de qualquer medida de apoio agradecem essa ajuda, atendendo às dificuldades financeiras com que vivem.

Não esquecendo este ponto importante, convém lembrar que em julho a Câmara Municipal de S. João da Madeira financiou as férias a cento e cinquenta crianças. Ou seja, relativamente ao ano escolar ficaram de fora quatrocentas crianças. O período de férias escolares corresponde a mais de doze semanas e os pais apenas podem acompanhar os filhos em quatro ou cinco dessas semanas. Nas restantes, qualquer solução gratuita é bem-vinda, até porque a disponibilidade de tempo dos menores em algumas idades é problemática.

Provavelmente, durante o presente ano lectivo, os apoios da autarquia local serão alargados aos não residentes, para demonstrar que este primeiro subsídio não foi avulso. Assim, pegando no exemplo descrito, as férias apoiadas pela autarquia local poderão ser uma solução para muitos pais trabalhadores neste concelho.

Espera-se que sem qualquer discriminação.

quarta-feira, setembro 03, 2008

Odores

            A divulgação no inicio deste ano, de indicadores medindo a qualidade de vida do município, teve um efeito na consciência cívica dos seus habitantes.

            Num dos estudos divulgados foi medido, essencialmente, o grau de satisfação da população. Este cenário permitiu estimular a exigência dos munícipes, na procura níveis de qualidade não aprofundados nos estudos.

            Durante os últimos meses, pela imprensa local têm surgido várias notícias, todas evidenciando um fio condutor das preocupações gerais da população. Em 2008, as questões ambientais têm ganho um fôlego impressionante no quotidiano, ao ponto do Jornal Labor colocar na primeira página, para acompanhar uma manchete alusiva à problemática dos resíduos sólidos urbanos, imagens de lixo.

            Na singularidade do concelho, as inquietações ambientais não abrangem a preservação de áreas protegidas. Tão pouco, os resíduos urbanos, atrás citados, constituem problema. A recolha está sistematizada (embora surjam pequenos problemas pontuais) e o respectivo depósito, efectuado fora do concelho, não levanta qualquer questão. Este assunto é de tal forma pacífico, que a difusão de ecopontos pela cidade foi sempre perfeitamente natural, não se tendo até à data colocado hipóteses de valorização de alguns resíduos, nem tão pouco, questionado a percentagem de resíduos que são efectivamente reciclados.

            É no domínio industrial que se agitam os problemas. A possibilidade de contaminação de solos ou de efluentes, a emissão de partículas para o exterior, a existências de ruídos, vibrações, ou maus cheiros são genericamente alguns dos motivos incomodativos para as populações.

            As imposições do Ministério do Ambiente, juntamente com a vontade das Associações de Municípios têm permitido que os resíduos sólidos industriais não constituam hoje em dia, um grave problema em S. João da Madeira.     

            Desta forma, tendo o saneamento alargado a todo o concelho, o esforço da autarquia centrou-se no condicionamento dos efluentes industriais. Com o objectivo de desviá-los do rio Ul, para se conseguir que o Parque Urbano ficasse apto para servir a população. Têm surgido alguns contratempos. O estudo efectuado por alunos do Secundário, promovendo o cadastro dos focos poluentes ao longo do curso do rio, provou que os concelhos devem trabalhar em parceria e não isoladamente. Ainda assim, neste particular o trabalho desenvolvido pela autarquia é digno de assinalar.           

            Sentindo o momento como oportuno, a população forçou a análise dos “casos” ambientais considerados mais graves. Colocando à consideração das entidades competentes, a noção de qualidade de vida.

            A emissão de partículas pela “Oliva 1925” teve direito a abaixo-assinado da população residente nas imediações daquela empresa, incluindo a troca acesa de palavras nos jornais, ou de comentários na respectiva edição on-line.

            Para culminar este processo – que foi, sem dúvida, o mais mediático ao longo do presente ano, a população recebeu por parte da autarquia um sinal claro de aprovação das suas reivindicações. A autarquia deu um parecer desfavorável ao pedido de licença ambiental da “Oliva 1925”, no âmbito da consulta pública relativa a este pedido. O parecer emitido e entregue à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDRN) poderá ser decisivo, para as pretensões da população residente nas imediações daquela empresa.

            Não é por falta de referência ou de notícias, dando conta do mal-estar da população, que continua por finalizar todo o processo do habitualmente designado “cheiro a casqueira”. Segundo o n.º 146, da I série do Diário da República, do dia 30 de Julho do presente ano, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 119/2008 autoriza a renovação do contrato entre o Estado e a firma “Luís Leal & Filhos”, até ao dia 31 de Março de 2009, para recolha de cadáveres nas explorações de animais mortos, por encefalopatia espongiforme bovina. Além da duração do contrato, é ainda tornado público o montante a pagar pelo Estado pelo serviço prestado, bem como a tonelagem de carcaças de bovinos e equídeos permitida.

            O mais curioso deste processo, é o facto de a resolução ter data de Julho mas, produzir efeito a partir de 1 de Abril de 2008, data de inicio do actual contrato. Face a este novo dado, fica-se com a ideia de que qualquer estudo encomendado, para exposição das preocupações da população aos Ministérios competentes, ou outro tipo de protesto organizado, terá que considerar a renovação automática do contrato, por interesse do Estado.     

            Enquanto isso, a qualidade de vida da maioria dos habitantes da cidade, quando o vento é desfavorável continua sofrível.

 

(a publicar dia 04/09/08)