quarta-feira, dezembro 29, 2010

Virtual

            Em 2010, ao ser consagrado como o melhor concelho para se viver, segundo o estudo divulgado pelo jornal Sol e patrocinado pelos concorrentes, S. João da Madeira mereceu os mais elevados elogios e destaques na imprensa nacional. A autarquia local apostou em melhorar o seu resultado nesta competição, coroando o seu esforço de anos anteriores, na modernização dos equipamentos e espaços públicos, tornando o concelho apelativo e demonstrando existir por cá uma óptima qualidade de vida. Uma estratégia bem delineada, para conseguir publicidade institucional. Praticamente atingida na sua totalidade.

            Este ano, da obtenção do título de “concelho mais cuidado”, termina com evidências de que os bens públicos, não são afinal correctamente cuidados. Equipamentos com responsabilidade de gestão e conservação exclusiva da autarquia local. O encerramento temporário da piscina municipal, devido à falta de manutenção das instalações, evidenciou que a autarquia se desinteressou do equipamento desportivo mais utilizado pelos habitantes locais. Na aflição e na impossibilidade de culpar outros, em especial, o Estado central, o Presidente lançou areia aos olhos dos seus munícipes, prometendo piscinas novas, segundo o edil mais baratas do que a remodelação da actual, o que deixou incertezas quanto à continuidade da utilização da piscina no actual ano lectivo, no que se previa um retrocesso nas actividades desportivas, de saúde e de lazer da população. Neste cenário, o bom senso imperou e a piscina reabriu, com mais um remendo no tecto. Entretanto, as certezas dissiparam-se. Agora, ponderam-se soluções e analisam-se orçamentos. Reconhece-se desta forma a falta de intervenção atempada no equipamento municipal. Nos anos de gestão do actual presidente da Câmara é primeira vez que tal acontece. E desta vez, com nove anos da sua gestão, a responsabilidade é do próprio. Não há desculpas.

            Falta de dinheiro não se pode alegar, veja-se o restauro no edifício que albergou o Centro de Arte. Milhares de euros gastos na recuperação do imóvel, para estar fechado e sem ocupante previsto. Não se percebe porque não se opta por fazer regressar o antigo inquilino às suas instalações. Além disso, para 2011 a verba no orçamento municipal para reparações em arruamentos é elevada. Uma fatalidade segundo li, embora não compreenda as prioridades e a obsessão em arranjar sempre o mesmo.

            O pequeno episódio do aquecedor numa escola do ensino básico, a negação do facto e a procura de justificações para a necessidade de quotização dos pais, promovendo o conforto dos filhos, não abonou em nada a autarquia. Relembre-se que esta sempre procurou ter escolas equiparadas às dos países “desenvolvidos”.

            Perante estas duas evidências negativas, o conceito de qualidade fica penalizado. A realidade é diferente do resultado do concurso do jornal semanário. A expectativa criada após o destaque alcançado na imprensa nacional, não corresponde na totalidade aos anseios básicos da população. Promove-se essencialmente uma qualidade virtual. Algo em conformidade com os indicadores em estudo, contudo, diferente das necessidades do quotidiano da população.

            A ilusão não termina aqui.

            A promoção do concelho baseia-se obviamente no que se transformou nos últimos tempos e por outro lado, efabula-se imenso com os novos projectos, sobretudo, com os de índole cultural, com requalificações para albergar dois centros de criatividade.

            As dúvidas quanto a resultados destes projectos ganham propriedade. Por se prever a concretização num futuro duplamente incerto. Temporal e financeiramente.

            Todos se recordam da apologia da internet sem fios gratuita, extensível a todo o concelho – jamais concretizada. De igual modo, a decisão de abandonar o projecto do comboio interno, tipo “vai e vem”, conforme sempre foi defendido pela sensatez, demonstra a pouca fiabilidade de promessas eleitorais e a fraca consistência do projecto autárquico em execução.            Os dois novos grandes projectos para S. João da Madeira, a requalificação do cinema Imperador e da Oliva, mais do que ponderação, obrigam a uma explicação pormenorizada aos munícipes. Mesmo verificando-se a sua construção antes de 2013, só entrarão em pleno funcionamento após essa data. A partir daí, ou seja, após a saída da presidência da Câmara Municipal de S. João da Madeira, de Castro Almeida, por limitação do número de mandatos, é que se analisará os reais efeitos destes projectos culturais. Ao nível de programação, da captação de público, da fixação de criativos e claro, de toda a envolvência financeira dessas soluções culturais.

            Um fiasco será fatal para o destino da cidade.

 

(a publicar no dia 30/12/10)

terça-feira, dezembro 07, 2010

Estagnação

                O Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgou, no passado dia 9 de Novembro, as estimativas anuais da população residente.

                A estimativa do INE indica, para S. João da Madeira, uma população de 21.797 habitantes, para o ano de 2009. Recorde-se que, no último Censos em 2001 foi apurado o valor 21.102 indivíduos. Em oito anos, a população do concelho praticamente aumentou em 700 pessoas, o que significa um ganho de 3,3%. Em média essa variação populacional é de 0,4%, por ano, correspondente a 87 novas pessoas. Até 2004, essa variação anual situava-se em 0,7%, decaindo em termos médios, até à última estimativa - de 2008 para 2009 a previsão do INE apontou um aumento de 35 pessoas (0,17%), o que dá um valor próximo da estagnação populacional.

                É importante, antes de prosseguir, relembrar as taxas médias anuais de variação populacional de S. João da Madeira entre Censos:

1930-1960: 3,9%

1960-1981: 1,8%

1981-1991: 1,2%

1991-2001: 1,4%

                Estes últimos dados são concretos e importa vincar a ideia, o referente a 2009 é ainda uma estimativa, a dois anos do próximo Censos.

                Abro mais um parêntesis, lembrando que, em 1991 os valores apurados pelo Censos foram contestados pelo executivo municipal da época, tendo inclusivamente promovido um estudo paralelo, que chegou à mesma conclusão do recenseamento.

                Pelo modelo de cálculo utilizado pelo INE, em 2011, a população da cidade não chegará a 22.000 habitantes, mesmo contando com o crescimento natural da população - as taxas brutas anuais de natalidade e de mortalidade são 9,6% e 7,9% respectivamente, indicando um reforço populacional de 1,6%, ou seja, 300 habitantes por ano (INE – 31/07/2010).

                Perante este cenário e confirmando-se a previsão do INE, é perfeitamente legítimo surgirem questões interpretativas entre a variação natural e real da população. Os dados indicam uma debandada anual significativa dos habitantes da cidade. Seja por viverem nas imediações da cidade, obrigando-se por questões fiscais a declararem a nova residência, ou pela necessidade de obter emprego compatível com as suas habilitações e por esse motivo abandonam S. João da Madeira. Qualquer um dos casos é uma hipótese credível e visível nas habitações devolutas, existentes por toda a cidade.

                Na sub-região Entre Douro e Vouga, apenas Santa Maria da Feira apresenta valores de crescimento anuais acima dos 1%, mais concretamente 1,2%. O crescimento natural cifra-se em 1,9%, valor muito próximo do real, que ajuda a reflectir sobre eventuais migrações da região, à semelhança do que acontece um pouco por todo o país.

                A distribuição da população de S. João da Madeira por idade demonstra um dado curioso, com menos de 19 anos existem 4.569 habitantes, cerca de 21% do total. O que vem de novo pôr em causa, o número de eleitores apurados para a freguesia, embora não seja esse o propósito deste texto, nem da apresentação do valor. Retomando, cerca de um quinto da população tem menos de 20 anos, contrastando com o número de habitantes com mais de 65 anos, 3.309, o que equivale em termos percentuais a 15,2%. Dados reveladores da idade relativamente baixa da população da cidade, em concordância com a região Norte (igualmente 21% para 15,8% de idosos) e destoando da tendência nacional (20,5% de jovens para 18% de idosos). É difícil explicar, perante esta distribuição, a insistência da autarquia em requalificar zonas centrais da cidade, equipando-as de equipamento geriátrico (para pouca utilização) e deixar parques infantis nas zonas periféricas.       

                Como é óbvio, esta década, de baixo crescimento populacional, será sempre associada às acções desencadeadas pelo executivo camarário. Incapaz de contrariar a perda de valências do Estado e sobretudo, impotente para perceber a tendência económica do concelho. Se nos últimos anos temos assistido a uma corrida contra o tempo, ao recordarmos a primeira metade da década, evocamos a promoção de festas, de galas e de inaugurações, tudo com muita pompa e circunstância. O resultado está à vista.   

 

(a publicar no dia 09/12/10)

quarta-feira, novembro 24, 2010

Legado

            Em casa dos meus avós maternos, na sala de entrada existiam dois pequenos sofás, uma mesa de apoio e encostada a uma das paredes, uma estante de pequena altura, com livros em todas as prateleiras excepto na superior, onde pousados sobre o naperon permaneciam diversos retratos. Em duas paredes estavam afixadas mais fotos. A minha mãe, as suas seis irmãs e os dois irmãos fotografados em conjunto enquanto crianças e jovens, enquadrados pelos progenitores, ou numa série de retratos individuais. Além destes, fotografias de outros antepassados - falecidos muitos anos antes - preenchiam duas paredes. No canto oposto, conservava-se a homenagem do meu avô às suas opções políticas, como convicto monárquico tinha afixado o retrato dos últimos reis de Portugal: D. Manuel II, D. Carlos e D. Luís I.

            Uma prima da minha idade, com várias temporadas de férias passadas naquela casa, apurava a sua vocação – muito mais tarde tornar-se-ia professora – e lançava-me desafios de perspicácia para eu perceber quem era quem em cada fotografia, sobretudo nas colectivas. As particularidades fisionómicas das minhas tias eram assim assimiladas. Os retratos da ascendência familiar demonstravam a minha pouca competência pessoal para fixar nomes e graus de parentesco com os vivos. Mais do que baralhar-me, serviam para me tranquilizar, o mundo dos mortos estava ali afixado.

            O falecimento da minha avó paterna, Florinda, evidenciou-me a naturalidade da morte dos idosos. O castelo de cartas desabava de cima para baixo. Os mais velhos, os avós, morreriam primeiro e só muito mais tarde, depois de envelhecerem uns bons anos, é que se poderia pensar em falecimentos na geração dos nossos progenitores, a segunda camada do castelo. Na base estávamos nós, os pequeninos, cheios de esperança de vida.

            O baralhar de cartas foi penoso.  

            A lógica da vida nem sempre foi respeitada, trucidando aleatoriamente quem menos se esperava e o luto foi surgindo.

            Em família e não só.       

            Nomes, de quem se sentou ao meu lado na escola, ficaram gravados em lápides.             A presença na última homenagem a amigos ou seus familiares, companheiros de várias fases da vida ou a simples conhecidos, fizeram-me adquirir a solenidade do momento.

            Apresentar condolências, escutar o dobrar dos sinos, ouvir o eterno silêncio a ser quebrado pelo raspar das pás no chão, permitiram-me saber estar durante a funesta cerimónia, mesmo quando é a nossa vez de receber os sentidos pêsames, ou a carregar a urna do ente querido falecido.

            Os anos passaram. Há quase vinte anos, a minha avó Maria deixou a casa a um dos seus herdeiros. As obras de conservação, de restauro do imóvel, não destruíram a sala de entrada. A renovação do mobiliário manteve o tipo e a quantidade, até a posição original ficou inalterada. Os livros estão agora atrás das portadas de um armário de meia altura. O desajustado naperon foi retirado. Por lá continuam as mesmas fotografias, enquadradas pela mesma moldura e na disposição em que sempre as conheci. As imagens dos três derradeiros detentores do trono de Portugal continuam a fazer companhia à restante família, numa eterna homenagem ao dono da casa, mesmo não havendo entre os seus descendentes acérrimos defensores do anacrónico regime.

            Percorro o resto da casa. Outras fotografias representando a história da família, outrora colocadas pelos demais compartimentos, perduram nos mesmos locais. Acrescentaram-se mais, retratando as últimas décadas do século XX. Estas a cores, contrastando com as fotos da sala de entrada, todas do tempo da fotografia a preto e branco. Por ali me demoro mais um pouco. Continuo sem saber o nome, nem o grau de parentesco com os meus avós, dos antepassados retratados. Ao som das tropelias dos meus filhos, em brincadeira no piso superior com primos igualmente crianças, apercebo-me de um retrato que há quarenta anos não existia naquele espaço, uma fotografia de um tio falecido há quase nove anos.

            De regresso ao convívio familiar medito sobre a minha descoberta. Atento às traquinices dos miúdos, exteriorizando a sua energia, tão característica nas incursões à aldeia da avó. O legado familiar vai-se transmitido.

            Eis-me enraizado na segunda camada do castelo de cartas.

 

(a publicar no dia 25/11/10)

quarta-feira, outubro 27, 2010

Passeio de Outono

            O rapaz passeava com o seu cão por um velho trilho do bosque. O cão seguia à solta, uns passos à sua frente. O dia amanhecera seco. Folhas amareladas ou castanhas jaziam no chão, sem sinal de humidade. Muitas árvores mantinham folhas nas copas, embora fossem raras as verdes. Escutava-se o piar de pássaros, o voar de insectos, o abanar dos ramos de árvores e de pequenos arbustos devido ao vento contínuo que se sentia, quando o som de um motor ecoou pelo bosque. O rapaz assustou-se com o ruído estranho, manteve-se em sobressalto, até se aperceber que se encontrava perto de uma estrada. Nisto o barulho abrandou. Voltou o silêncio, prontamente quebrado por um som metálico. Uma porta de um automóvel a fechar – pensou o rapaz. Logo de seguida o som repetiu-se. Chamou o seu cão. Segurou-o. Fez-lhe um sinal para que não ladrasse. O rapaz ficou à espera de mais algum som, para perceber melhor o que estava a acontecer. Um carro tinha parado na estrada, situada no cimo da encosta, muito perto dele. Quem seria? A curiosidade cresceu. Sussurrou umas palavras de prudência ao seu cão. Colocou-lhe a trela e começaram a subir, atalhando pelo meio da densa vegetação. Rodeavam os picos dos arbustos, para evitar mazelas. Quebravam teias de aranha, minuciosamente construídas para apanhar mosquitos. Passavam rente a cogumelos, que cresciam encostados às árvores, aparentando formas curiosas, que noutra ocasião, teriam sido motivo para atenta contemplação.

            O acesso tornara-se mais íngreme e por isso bastante mais difícil de subir. Tinha que ter cuidado para não ser visto, nem o seu cão, seu companheiro inseparável. A custo foram subindo e vozes foram-se tornando audíveis. Aproximou-se mais e percebeu tratar-se de um homem e uma mulher. Distinguia as tonalidades da voz de cada um. Não os conseguia ver. Estavam ainda acima dele. O rapaz concentrou-se, tentando reconhecer aquelas vozes. Não as identificou. Ouvia-se risos. O homem falava e a mulher ria-se. A curiosidade aumentou. Cada vez mais queria ver quem tinha parado no bosque. Descobrir o que faziam e de que falavam, eram interrogações momentâneas do rapaz, além disso, o riso divertido da mulher aumentava o interesse na observação do casal.

            O rapaz procurou um local para uma melhor observação. De forma alguma, gostaria que o vissem. Seria difícil de explicar a sua presença no meio das moitas. O seu cão não podia aparecer aos olhos de quem estivesse na estrada. Segurava-o, por prudência, não lhe dando hipótese de fugir, mantendo-o em silêncio. Qualquer ruído poderia denunciá-los. Precisava de subir um pouco mais, para ter hipótese de visão. Do seu esconderijo avistou um penedo mesmo perto. Mediu a sua altura, acreditando que, em cima dele teria possibilidade de visão sobre o local onde estava parado o automóvel. O acesso era tranquilo. Na ascensão não seria visto. Enquanto trepava, o rapaz não largou a trela da sua mão direita, com medo que o cão lhe fugisse. O cão deu uns passos à esquerda. O movimento ascendente do rapaz colocou a trela por cima do seu ombro esquerdo. Finalmente, o rapaz conseguia ver a estrada. Todo o cuidado seria pouco. Avistou o casal. Estava demasiado próximo e só o penedo o escondia. Concentrado na observação do casal, ambos encostados ao automóvel, o rapaz procurava absorver os seus detalhes. Com isto, perdeu a noção da inquietação do seu cão, não se apercebeu que este se pusera em movimento, se deslocara para a sua direita e que a trela se enrolara no seu pescoço. O cão farejou algo, deu três passos, o movimento permitido pelo tamanho da trela. Bloqueado, o cão insistiu obstinadamente em seguir naquela direcção. Forçou uma primeira vez, uma segunda e não conseguindo prosseguir, ladrou. O rapaz atrapalhado no seu esconderijo, com a surpresa do latido do seu cão, não se libertou do aperto da trela, procurou não ser descoberto e estando em equilíbrio instável, deixou-se cair, sobre o seu lado esquerdo, para retirar-se o mais rápido possível.

            O casal olhou na direcção do penedo, ao ouvir o ladrar de um cão.

            - Um gato – gritou Laura.

            António ainda viu o animal a esconder-se nas moitas, no lado oposto da estrada. A atenção do casal voltou a centrar-se no continuado ladrar do cão. Esperavam que este aparecesse a qualquer momento em perseguição ao gato. O latir prosseguia e aos olhos do casal apenas surgiu a parte dianteira do cão. Apesar de continuar a ladrar e a focar a moita do outro lado da estrada, o cão não avançava do seu lugar. António indicou a Laura que se refugiasse no automóvel. Em seguida, entrou dentro do carro. Arrancou. Cautelosamente, António avançou na direcção do penedo. Começou a contorná-lo e ganhou outro ângulo de visão. O cão estava só. Teimava em forçar a perseguição. António focou a trela, que desaparecia no meio da vegetação.

            - Coitado, ficou preso nos ramos.

            António prosseguiu a condução e um pouco mais à frente, pressentindo que algo de estranho estava a acontecer, fez inversão de marcha. Comentou com Laura o seu presságio. Parou o carro, dirigiu-se directamente aos arbustos. Seguiu o curso da trela e esperando encontrar um objecto a segurá-la, ficou atónito ao ver o corpo de um rapaz estendido no chão. A trela estrangulara-o. Olhou o penedo, mirou o cão entretanto sossegado e pensou: “Ora, ora, o gato matou a curiosidade.”

 

(a publicar no dia 28/10/10)

quarta-feira, outubro 20, 2010

licença

            A expectativa em torno da resposta da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), ao pedido de renovação da licença ambiental, da empresa Luís Leal & Filhos, terminou e sem grandes surpresas. Os “pareceres” negativos, apresentados pelas autarquias de Santa Maria da Feira e de S. João da Madeira aquando da consulta pública de Julho deste ano, não produziram o efeito pretendido.

            A novidade é o tempo da atribuição da referida licença, apenas dezoito meses, o que permitirá que em Março 2012, haja novo processo de avaliação, caso surja novo pedido de renovação da licença ambiental, por parte da referida empresa.

            O conteúdo desta licença é semelhante à emitida em 2005. Alguns pontos técnicos são mais alongados, daí o número de páginas ter aumentado para quase o dobro. O teor é semelhante. Continua a ser possível apresentar queixas de natureza ambiental ao operador e este é obrigado a responder, tendo inclusive que relatar essas queixas para a APA, indicando as medidas e acções desencadeadas.  

            Segundo o semanário O Regional, na sua edição da semana passada, a APA recomendou a criação de uma comissão de acompanhamento. Com este conselho pretendia-se atribuir a iniciativa aos órgãos autárquicos. A originalidade sugerida não especifica qual o enquadramento jurídico dessa comissão.

            Da sugestão nada restará.

            O mal-estar da população nos dois concelhos continuará.

            As formas de protesto devem intensificar-se.

            A deslocalização de empresas desta actividade é imperativa. É necessária uma maior intensidade nas acções, para que tal aconteça. A licença anterior terminou em Maio do presente ano, a nova licença foi atribuída em Setembro, divulgada em Outubro e durante esse hiato de quatro meses, não seria possível interpor uma providência cautelar, para evitar a laboração da empresa visada, nesse período? Confesso não saber o que está contemplado na legislação. Pelo país inteiro interpõem-se providências pelos mais variados motivos, se calhar, esta poderia ser aceite.

            Existem outras formas de protesto, por exemplo: a) a protecção civil concelhia declarar alerta amarelo, devido aos intensos odores sentidos, aconselhando idosos, grávidas e pessoas com dificuldades respiratórias a ficar em casa; b) distribuir gratuitamente máscaras pela população e num determinado dia, consagrar o seu uso em simultâneo, promovendo uma marcha colectiva.

            Estas formas de protesto devem ser divulgadas, de preferência, pela rádio nacional e mesmo pela televisão. Nos meios áudio visuais não se consegue transmitir o motivo do sofrimento dos habitantes da região, no entanto, a recolha de testemunhos em acções conjuntas e alguma dose criativa à mistura podem servir de ajuda.

            Bem precisamos.

 

(a publicar no dia 21/10/10)

quarta-feira, outubro 13, 2010

Jogo de sombras

                Eva aproximava-se da porta, rodava o manípulo e aos seus olhos aparecia sempre a luz da casa de banho acesa. Enquanto se despia, olhava-se ao espelho, compunha-se e se necessário refrescava-se. A seguir, apagava a luz, passava para a ante câmara e abria a porta de acesso ao quarto. Tudo escuro. À sua espera estava Basílio. Chegava primeiro, preparava o cenário para o final de tarde romântico. Deitava-se na cama, sem roupa e aguardava a entrada de Eva. Quando a porta se abria, a luz instantânea vinda da entrada, permitia a Basílio contemplar a silhueta da sua amante. Como combinado, Eva fechava a porta após a sua passagem e dirigia-se para a cama, sem dizer uma palavra. Uma pequena frincha era deixada propositadamente aberta na persiana, permitindo ao casal olhar os contornos do desejo, sentir os corpos e manter esta relação programada, de encontros mensais, iniciada uma noite há 4 anos atrás. No final, Basílio levantava-se, vestia-se e abria a porta do quarto e Eva observava as costas do seu amante. Basílio acendia a luz da casa de banho e passado um pouco saía sem se mostrar, nem se despedir.

                Um dia Eva faltou. Naquele mês Basílio não a viu.

                Rosa entusiasmada com a ideia de apresentar a irmã à restante família, organizou um jantar em casa do casal. À hora certa a nova descoberta da família chegou. Rosa e Basílio saíram para o exterior para receber a familiar. A luz no jardim era ténue. Uma das lâmpadas dos candeeiros apagara-se e entre o muro exterior e a porta da casa, o acesso pelo meio do relvado estava mal iluminado. Rosa descontraída, explicou o sucedido em voz alta, enquanto a irmã se aproximava. Ao seu lado, Basílio sentiu um calafrio ao reconhecer aquela silhueta, vinda do escuro, que se aproximava de sua casa. Rosa avançou para a irmã, abraçando-a. Pelo meio dos braços de Rosa, Eva viu um vulto na entrada de casa. Seria o cunhado certamente. A luz por detrás dele impedia de lhe ver as feições. Entre beijos e mais abraços, Eva viu o cunhado a virar-se de costas, respondendo ao pedido de Rosa, chamando a restante família. Aquele corpo em contra luz?! Eva reconheceu logo o seu amante. Não queria acreditar.

                Apesar da relação familiar, Basílio volta a fazer pressão sobre Eva para retomarem os encontros ao dia 16. Cansada dessa pressão, Eva toma a decisão de ir a casa da irmã, mesmo sabendo que esta não está. Está um final de tarde maravilhoso, de um dia luminoso de Outono. A luz do rio reflecte-se por Alcochete. Atrapalhado, Basílio abre-lhe a porta. Eva atravessa o jardim e decidida entra em casa, dirigindo-se para a sala. Olha o cunhado com reprovação. Mesmo estando com claridade, Eva acciona o interruptor, acendendo as luzes da sala. Dirige-se a um candelabro decorativo e acende as velas. Basílio não a entende. Eva aproxima-se das janelas. Ergue as persianas que estavam meias corridas e abre os cortinados.

                - Esquece Basílio. As trevas terminaram. Olha à tua volta. Eu quero viver com luz, ser amada à claridade e jamais por ti. Entendes?

                Basílio aproxima-se de Eva. Tenta segurá-la, com o objectivo de ela ouvir as suas explicações. Eva liberta-se, empurrando-o com força, saindo em seguida da sala e da casa. Recomposto do empurrão, Basílio sai atrás de Eva, não reparando que o candelabro aceso tinha sido derrubado, estando agora a chama das velas encostadas ao tapete da sala.

 

(a publicar no dia 14/10/10)

quarta-feira, outubro 06, 2010

O século dos militares

            A semana passada não escrevi propositadamente sobre o centenário da República. Esperei para ver as celebrações e hastear da bandeira um pouco por todo o país. Por isso, escrevo apenas a posteriori umas singelas linhas.

            Nada tenho contra o cinco de outubro, nem contra a República. Antes pelo contrário. Tenho que confessar que a república à portuguesa não é muito do meu agrado, por a considerar demasiada despesista, em matéria de órgãos de soberania. Assunto que não desenvolverei, abstendo-me de apresentar críticas em tempo de comemoração.

            Atendendo à idade do regime, não compreendo a visão histórica de associar a implantação, com os anos da I República. Os argumentos apresentados – constantes mudança de governo, elevado défice público, desordem, só para citar alguns – são reais e foram apresentados durante décadas para justificar a mudança para o Estado Novo e branquear a ditadura militar.

            Os portugueses tiveram alguma dificuldade em adaptar-se à monarquia liberal. A carta constitucional tardou a ser adaptada. Pelo meio, foram realizadas várias emendas e formados dezenas de governos, ainda durante o século XIX. No reinado de D. Carlos, verificamos que houve dez governos, um dos quais próximo da ditadura. Entre a data do regicídio e a implantação da república surgiram quatro governos, o derradeiro sinal de que a crise política, promovida pelo rotativismo dos partidos da época, era por demais evidente.

            A cedência ao ultimato inglês de 1890 e nos anos sucessivos, os gastos excessivos da coroa, são unanimemente reconhecidos como os factores decisivos para o fortalecimento da causa republicana, com a consequente tomada de poder em 1910.

            Para reforçar este ponto: o antes e depois da República diferenciam-se pelos ideais de alargamento das liberdades e a eliminação de privilégios.

            A passividade do exército português no dia 5 de Outubro, com arsenal suficiente para derrotar as hostes republicanas, continua por explicar, segundo vários historiadores. Desta forma alterava-se a história de Portugal e abria-se uma nova era, a dos militares.

            Sidónio Pais, perdão, major Sidónio Pais, um republicano destacado, exercendo cargos políticos desde a implantação, liderou uma insurreição protagonizada pela Junta Militar Revolucionária, em 1917. Assumiu o cargo de presidente da República até às eleições do ano seguinte, que viria a ganhar por sufrágio directo. No final desse ano, infelizmente, seria assassinado.

            Em 1919, Paiva Couceiro, perdão capitão, tenta a sua terceira incursão monárquica, com um movimento de tropas, depois de goradas as tentativas de restauração de 1911 e 1912. Da última vez, consegue proclamar a Monarquia do Norte, do rio Minho à linha do Vouga, chegando a ser hasteada a bandeira azul e branca em alguns concelhos, durante vinte e cinco dias. Ao fim desse tempo e porque D. Manuel II jamais mostrou interesse em regressar ao país, acabou a aventura.

            Dois factos embora um tenha terminado de forma trágica e pouco democrática, da história da I República, demonstrativos que a desordem não provinha apenas da sociedade civil.

            Depois, seguiu-se a ditadura militar. Quase meio século. Pelo meio, várias tentativas militares de mudar o regime. Até à revolta dos capitães. A revolução na rua, dois anos conturbados de disparates militares, por fim, um general eleito democraticamente Presidente da República.

             75 dos 100 anos de República são condicionados directa ou indirectamente pela acção militar. Felizmente, prevaleceu o bom senso.

            Ironicamente, no último quarto de século, as fronteiras foram abolidas e a integração Europeia trouxe um óptimo desenvolvimento a Portugal.

 

(a publicar no dia 07/10/10)

terça-feira, setembro 28, 2010

Lua_de_mel

            Devia ter parado a tempo. Ter tido coragem para explicar tudo a Clara. Já não a amo e não fui capaz de o assumir. Continuei com a farsa deste noivado, mesmo sabendo que a minha obsessão é a Emília. O casamento não se devia ter realizado. Estou aqui casado de fresco a pensar noutra rapariga. Como me vou livrar disto? Olha, mais um sms. É da Emília. Sempre a provocar-me. Sempre a enviar-me mensagens, ou a telefonar-me. Vou disfarçando o melhor que posso para a Clara não desconfiar. Invento o remetente. Leio-lhe em voz alta mensagens fictícias, sabendo que ela não se dará ao trabalho de pegar no telemóvel. E agora como saio deste casamento, sem beliscar a minha reputação social? Preciso de ficar com o dinheiro da Clara. Tenho que montar um ardil…

            - Rodrigo, anda cá baixo. Depressa!

            Chama-me. O que terá acontecido? Ontem cismou que lhe roubaram comida do frigorífico. Tive alguma dificuldade em provar-lhe que estava enganada. Desconfiada. É uma característica que não lhe conhecia. Vou descer antes que desate a berrar o meu nome.

            - Rodrigo. Desapareceu mais comida. Tenho a certeza. Não me contraries. Tenho a certeza. Não aguento isto. Desci e quando cheguei à cozinha ouvi um barulho muito estranho, vindo da cave, tens que ir ver o que se passa. Será que está por lá alguém? Ou entrará por uma porta ou janela mal fechada?

            Nem consegui argumentar. Dei por mim a descer a uma cave desconhecida, com uma vassoura na mão e na outra uma lanterna, à procura do incerto. Não esperava encontrar ninguém, por isso, fiquei surpreendido quando no extremo do foco de luz vi um rosto. Tão ou mais assustado do que eu. Consegui não gritar e ao pedido do homem para não o denunciar, percebi ter encontrado naquele estranho a solução para o meu problema.

            Subi, transparecendo tranquilidade. Assegurei ter encontrando uma entrada de ar, suficiente para derrubar uns objectos. A demora devera-se ao arrumo e ao engendrar forma de tapar aquela correnteza. Sobre o homem, nem uma palavra.

            Sosseguei-a. Tivemos um dia calmo. Um passeio pela propriedade. Consegui desviar a sua atenção. Ela explicou-me o desenvolvimento da herdade. Os dados cronológicos, as culturas, as construções surgidas, os vários trabalhadores que por aqui passaram, famílias inteiras. Depois de jantar, revimos o vídeo do nosso casamento, com imagens captadas por um amigo. Um momento a dois, que a relaxou. E permitiu não se discutir mais o roubo de comida.

            Um fugitivo na cave. Tive sorte. Fiz um acordo com ele, não o denuncio e levo-lhe comida durante uns dias. Depois vou cobrar-lhe o favor. Sem ele se aperceber, claro. Arranjo uma forma de ele fugir daqui, simulando um assalto. Leva-me o carro e finge agredir-me. Entretanto, ganho coragem e acabo com Clara. A culpa recairá sobre ele, estou certo.

            Não, não. Algo de estranho se passa nesta casa. O Rodrigo não come assim tanto. Todos os dias desaparece comida. Ele sempre a afirmar que foi ele que comeu mais um pouco. Uma ceia, enquanto eu estava a dormir. Um pequeno-almoço reforçado pela manhã, enquanto eu dormia. Não pode ser. Ele sempre comeu pouco. Tanto apetite, bolas. Os ruídos desapareceram. Mas, algo de estranho está a acontecer aqui. Vou averiguar.

            Clara desceu à cave e viu um tabuleiro com louça no fundo da escada. Habituando os seus olhos ao escuro, viu um corpo de homem dormindo. Encheu-se de coragem, pois estava em casa dos seus pais e via agora que as suas suspeitas estavam certas, abeirou-se dele acordando-o. Reconheceu-o. Era o sobrinho da antiga cozinheira. Ele explicou-lhe a sua vida. Porque tinha sido condenado, uns murros levados ao extremo, por causa de uma moça lá da aldeia. A oportunidade de se evadir e a escolha daquela casa vazia como esconderijo, foram aceites por Clara. O interrogatório prosseguiu, com esta a dar-se conta da mentira do marido. Clara percebeu que além da ocultação inicial, a alimentação continuou por vários dias. Devia existir um objectivo maquiavélico por parte de Rodrigo. Sem grande esforço, Clara obrigou o sobrinho da cozinheira a jurar-lhe fidelidade.

            Rodrigo está nervoso. Combinou com o evadido, promover a sua fuga nessa noite. Clara subiu ao quarto. Rodrigo prepara a arma para liquidar Clara, só depois abrirá a porta da cave. Entretanto, houve um carro a aproximar-se da casa. Interroga-se sobre quem será? Nem tem tempo para espreitar. Batem na porta com convicção. Rodrigo abre e vê Emília que prontamente o abraça e beija. Sem perceber o que faz a sua amante ali, vê-a a pegar no telemóvel, mostrando-lhe uma mensagem supostamente sua. Rodrigo não reconhece o seu teor. Entretanto a cara de Emília tornou-se séria, focando algo nas costas de Rodrigo. Este ao voltar-se é surpreendido com a figura do evadido, com a arma que ele tinha escolhido. Ouve-se um tiro. O sobrinho da cozinheira entrega a arma a Rodrigo e sai pela porta. Desaparece no escuro. Rodrigo olha para Emília que jaz no chão. Dobra-se sobre ela e vê o sangue a escorrer do seu corpo. Clara aparece no cimo das escadas.

            - Rodrigo. Rodrigo? Que fazes com essa arma na mão? Quem é essa mulher? Não! É a Emília. Atingiste a Emília, Rodrigo?

            - Não, Clara. Não fui eu, foi o evadido. O que se escondia na cave.

            - Rodrigo, na cave não estava ninguém. Tu próprio me asseguraste.

            Vendo-se em desespero, Rodrigo aponta a arma a Clara e dispara. Ouve-se um som estranho. Clara não cai. No alpendre da casa alertado pelo som do primeiro tiro, surge Joaquim, o encarregado das cavalariças, que sem dificuldade imobiliza Rodrigo.  

 

(a publicar no dia 30/09/10)      

terça-feira, setembro 21, 2010

Barba de domingo

            Primeiro fim-de-semana, após o inicio do ano lectivo.

            O tempo ainda está quente, propício a jornadas no exterior. As roupas leves e frescas permanecem no corpo. A pele da cara pede descanso.

            Apesar do tédio de fim de férias, os miúdos ainda estão sem espírito para a rotina do tempo escolar. Como eu os entendo.

            Sou da geração das longas férias de verão. Os três meses completos e juntava-se ainda quinze dias de Junho, mais uma semana, por vezes duas, completa do mês de Outubro. Com sorte, quatro meses – a estes acrescentavam-se as paragens para férias do Natal, Carnaval e Páscoa. Cinco meses e mais uns dias de férias. Dava tempo para tudo. Em especial, para a preguiça.

            A mudança da hora, naquele fatídico último domingo de Setembro significava o fim das férias. Dias solares mais curtos e chuva. Recomeçavam as aulas. Poucos dias depois, os horários escolares eram afixados. A preocupação de comprar os livros escolares sobrepunha-se a qualquer outra necessidade. Horas livres passadas em livrarias com atendimento desorganizado, à espera da oportunidade.             

            Uma espécie de reforma – ou uma medida com nome similar – impôs um pouco de seriedade ao inicio do ano lectivo e lembro-me de começar um ano do secundário ainda em Setembro. Entretanto, com o ingresso no ensino superior, aprendi que um semestre correspondia afinal a três meses… de aulas, claro. Por pouco tempo, reconheço que nos últimos dois anos de estudante, as aulas começaram no inicio, mesmo no inicio, de Outubro.

            Tudo isto ficou para trás.

            As férias dos meus filhos ainda são grandes. Doze semanas só no verão. Os pais têm apenas quatro. A preocupação em ocupá-los nas outras oito semanas é desgastante e por mais ofertas que haja de campos de férias, o tempo em casa de avós é sempre uma solução a recorrer. Por ligações familiares, apercebo-me do período de férias semelhante entre progenitores e filhos em países como a Alemanha, no verão, quatro para seis (com mais uma paragem durante o ano lectivo, do que o nosso calendário escolar). Hábitos culturais - diferentes dir-me-ão - e o rigor do inverno, não desculpam tudo.

            Surpreso, fiquei há dois anos, quando me informaram que o ensino superior iniciava aulas na primeira semana de Setembro, ou seja, quase em simultâneo e nalguns casos primeiro que os restantes níveis de ensino. A produtividade alcançada não pode ser equiparada. 

            A aproximação do tempo de férias dos filhos, à realidade dos pais deveria ser uma preocupação de todos os que estão ligados ao ensino. Primeiro de Setembro, primeiro dia de aulas, já ajudava a encurtar essa diferença e a promover hábitos de trabalho diferentes na sociedade portuguesa.

           

(a publicar no dia 23/09/10)

terça-feira, setembro 14, 2010

Canaviais

            Vinte minutos depois da hora marcada, o grupo arrancou. O aviso prévio foi esclarecedor: o percurso proposto não seria totalmente cumprido, era demasiado extenso e haveria demasiadas paragens, pelo que seria preferível perfazer um quarto do trajecto e assim cumprir o horário. Explicações aceites, a marcha iniciou-se. Os elementos do grupo apreciavam os equipamentos fornecidos pela organização. Testavam as suas capacidades e olhavam de soslaio para os objectos pessoais de alguns dos participantes. Duzentos metros de caminho e surge uma atarracada garça-real.

            - Um dia andava aos patos, com a arma preparada, levantou voo uma garça, só que eu não tive tempo para perceber o que era. Disparei logo. Em cheio. O danado do pássaro caiu-me em cima, com o bico a espetar-se numa das mãos (talvez a direita, procurando a ferida). Não tem carne nenhuma. Um peito pequeno. Uma colher apenas.

            As atenções viraram-se para asas que surgiam por detrás de umas moitas. Torneado o obstáculo, tratava-se de gansos domésticos, exercitando as pernas. Ao lado deles, duas jovens garças boieiras procuravam alimento, com o seu bico amarelo.

            - Estávamos três em fila, separados uns dos outros uns bons metros. Isto em 1952, a primeira vez que disparei na Ria. Aproxima-se um ganso. Ao primeiro tiro prossegue o seu voo. O meu outro companheiro atira. O ganso continua. Cinco quilos a voar. Preparo a arma, vou disparar e o bicho começa a cair.

            Com o auxílio de binóculos, passam a ser observadas uma diversidade de espécies. As páginas dos guias são abertas para confirmar a observação. Alguns dispensam pesquisa: cegonhas, patos-reais (nem os mencionei, senão levavam chumbo) e andorinhas.

            - Esta é uma andorinha-dos-beirais. Vejam a cauda – apontava um ornitólogo, carregando uma máquina fotográfica, com uma lente enorme – em “V” curta.

            Outras espécies, novas demonstrações. Andorinhões, Falcão, Alvéola (comum?), Cartaxo… - cartaz, pai? É para olharmos para o cartaz? Página 254 do Guia Fapas. Vês? Já fugiu.

            - Aqui temos um bispo-de-coroa-amarela. Introduzido – assegurava o fotógrafo, dialogando com a guia. Lente apontada ao pássaro amarelo. Um voo rápido e escondeu-se. Está ali! – diziam. Os outros apontavam binóculos. Ao fim de alguns metros, com melhor ângulo foi possível conhecê-lo. Um “abelhão gigante” – definiam os mais atentos. Parece deixar um rastro no ar ao voar, ainda ouvi. Do outro lado, uma garça branca, com o seu bico preto. O bispo está a destruir o habitat da escrevedeira – disse-nos o fotógrafo, anunciando-se como profissional, precisamente, de aves. Não lhe perguntei o nome, esqueci-me.

            - Chapim, chapim. Reconhece-se pelo chamamento. Qual será? O ornitólogo profissional saca de telemóvel e começa a reproduzir o som dos tipos de chapim. Seria este? Não, não, consensual e por aí fora, até eliminarmos todas as hipóteses. Provavelmente não era um chapim – concluiu no final.

            Um pequeno pássaro azul mostrou-se junto a um charco. Não o vi mais, por isso não pude chamar a atenção dos restantes observadores. Uma garça-vermelha com o seu aspecto velho e cinzento é decretada em extinção. Durante o resto do percurso vou ver várias, como das outras vezes que percorri a Bio-Ria. Aquele a voar é o coelheiro, vejam o pescoço esticado.

            - O coelheiro tem o bico arredondado, assegura-me o caçador, preparando-se para retirar da memória, uma qualquer estória de chumbo espalhado.

            - Um buteo – anuncia a guia, Sofia, fixei-lhe o nome. Atenção redobrada. Não descansei, enquanto não identificou a espécie. É uma águia de asa-redonda. Passados uns metros, observámos uma águia-sapeira, que sorrateiramente se escondeu no meio dos campos de arroz.

            Tempo de regressar. Fico para trás, com os meus filhos. O amarelo do bispo fica pousado a dois metros do local em que descansamos. Nem preciso de binóculos para o ver. Voa mesmo rápido. Não se afasta muito daquela zona. Temos oportunidade para o observar várias vezes.

            Juntamo-nos ao grupo. Parado a olhar para um charco. O mesmo charco do pássaro azul. É um guarda-rios. Indicações para o observar com os binóculos, no final da margem direita do charco, em cima de ramo do canavial, e como os mais pequenos não conseguiam fixar, o fotógrafo serve-se da sua máquina digital e assim proporciona a imagem a todos.

            - Não lhe deste um tiro? É tão pequeno!? – respondi, colocando o polegar e o indicador a definindo o tamanho da ave. É bonito – disse-me o caçador.

            - Ali, temos um, uma… é uma perdiz. É agora que começa o tiroteio, pensei. Afinal não é. Uma galinha – d’água, sem dúvida. Deixem ver, deixem ver, utilizava os seus binóculos e não o zoom da câmara fotográfica, enquanto os outros permaneciam na expectativa. Os membros da organização sorriam e procuravam nos guias as respectivas imagens para comprovar. Não, não é. Então? É ou não? Vire a página do Fapas, por favor, uma atrás, isso. Estão a ver, apontando para um frango-d´água, era assim mais riscado no abdómen. Isto é raro. Nunca saem dos canaviais. Isto é um troféu. Um momento único para os observadores de aves.

            - Têm as patas muito compridas, para andarem nos canaviais, diz-me o caçador, já sem munições e demonstrando um forte conhecimento ornitólogo, percebendo-se o seu gosto em estar em contacto com a natureza, propondo tréguas ao compreender que o meu relato apenas servia para partilhar observações de aves em liberdade.

            Nunca consegui caçar um flamingo, confidencia-me.

            Eu vi dezenas deles mas, não digo nada, para os proteger.

            Atrás de mim, o grande animador da jornada ornitológica explica-me como obteve uma fotografia de cria de flamingo. Contando que nascem com uma pelugem cinzenta. Penso na história do patinho-feio, só que ele remata logo: são bonitos.    

 

(a publicar no dia 15/09/10)

terça-feira, setembro 07, 2010

A noite de Carlos Gardel

            A época estival portuguesa continua a ser caracterizada pelos festivais de música. S. João da Madeira teve o seu. Com um cartaz heterogéneo, como foi amplamente divulgado, importa aqui analisar a adesão do público. Dividido em dois blocos, correspondendo a cada fim-de-semana, caracterizava-se por uma oferta inicial mais popular e terminava tendo como cabeça de cartaz um grupo argentino.

            Pelo meio, as peripécias do costume.

            Pouco público nos nomes menos conhecidos. O mesmo acontecendo em artistas recorrentes em concertos gratuitos, cada vez mais comuns em organizações de índole municipal, um pouco por todo o país. Troca no cartaz à última da hora, numa substituição já ensaiada em outros festivais, sendo o resultado final sempre igual.

            As reclamações para com a organização (apareceram várias no labor e segundo este no facebook) e as atitudes condenáveis para com a imprensa serão sempre recordados como o pior deste festival.

            A grande adesão de público no último dia permitiu esquecer os momentos menos bons do festival. O efeito de recinto cheio deixou perplexo os mais cépticos mas, permitiu encarar próximos espectáculos musicais em S. João da Madeira com outro optimismo. Mais do que o confronto entre estilos musicais, ou do gosto musical do público, ou o cunho da maioria presente em cada espectáculo, verificou-se que é possível realizar na cidade concertos de casa cheia com bandas de renome internacional.

            A receita, seguida pela organização do festival “concerto único na região norte a preços baixos”, permitirá captar público da área metropolitana do Porto e assim projectar o concelho como promotor de cultura. Algo a que o orçamento municipal dos próximos anos estará indexado, face aos projectos de construção, reconstrução, transformação, ou de requalificação de espaços culturais em curso.

            Esta captação de público é urgente, como tenho repetido ao longo dos últimos anos. A finalização de obras, mesmo sendo financiadas por programas de comparticipação comunitário, é apenas o começo. A sustentabilidade económica dos espaços, salas de espectáculo a restaurar, não pode apenas depender do orçamento municipal. A possibilidade de asfixia financeira devido a perda de receitas da autarquia, não permite destinar grandes verbas para programação cultural. O não retorno é um risco inerente e essa possibilidade é cada vez mais proibida.

            A interrogação expressa no título do labor, sobre a salvação do festival, terá a sua resposta daqui a uns tempos. Entretanto, naquela noite, o concerto do grupo de tango permitiu pensar-se na oferta cultural a partir de S. João da Madeira.

terça-feira, agosto 31, 2010

36 graus às 10 horas

            - Parecias uma prancha de surf a entrar na água.

            Terminara a transmissão dos rudimentos básicos de mergulho à minha filha, pés afastados, flecte as pernas, cabeça no meio dos braços e força, atira-te para água. A cada tentativa a melhoria era significativa, por isso decidi ser o momento de eu próprio reeditar o conceito teórico e passar à prática. O resultado foi desastroso. Poderia avançar com várias desculpas, a falta de destreza abdominal, o excesso de gordura acumulada precisamente nessa área do corpo, os ligamentos dos joelhos atrofiados, contudo, aos olhos do meu filho, já exímio a mergulhar, a minha entrada na água ficou classificada como um desastre.

            Nas férias foram várias as manhãs a malhar na água. Piscina atrás de piscina. Um estilo para um lado, outro para o regresso. Ao olhar para o fundo, vendo reflectida a minha imagem, lembro os ensinamentos recebidos. O bater de pernas constante transmitido pelo Vítor Cabral. O esticar do braço exigido pelo Augusto Macedo. Baixa a cabeça, Rui – dizia-me o Luís Ferreira. A exigência, na melhoria em nadar cada estilo, era completada pelo objectivo traçado pelo Armando Margalho: 4 estilos, tens que saber os 4 estilos. Uma máxima retida e transmitida agora aos meus filhos. Em cada ano lectivo, vou observando os seus progressos e não me espanto com as melhorias conseguidas, com o aproximar à meta inicialmente definida.

            Bolhas, bolhas e mais bolhas. Metros e metros preocupado com o borbulhar. Inspirar e passado um pouco expirar. Os efeitos profiláticos a serem alcançados. O corpo a libertar-se do atrofiamento de uma infância carregada de cortisona. Os excessos no tratamento da água, com doses anormais de cloro e os seus efeitos nocivos, eram minimizados pela boa forma física obtida. Horas naquilo, até um dia…

            - A tua cabeça não entra bem na água a nadar bruços.

            Primeiro o mergulho, agora corrige-me os erros crónicos. Aproveito a deixa, ponho-o a nadar pedindo-lhe a demonstração. Retalio. Troco de estilo, coloco-o à prova. Não sou capaz de ficar calado. Corrijo-lhe os movimentos. O reset não foi efectuado. Ficou para sempre este gosto de ensinar a nadar, mesmo sabendo pouco. E tão cedo não terei outra oportunidade.

            - Baixa a cabeça, Rui.

            No fundo da piscina a minha sombra.

            - Quando ficas de férias Luís? Só a 9 de Agosto, explicando-me o programa de treinos da Ana Rodrigues, tendo em vista os Jogos Olímpicos da Juventude.

            Hora de almoço, saio da piscina, fujo do sol, arrasador. Entro em casa. A Ana Rodrigues ganhou a medalha de bronze, diz-me a minha esposa. Feliz, relembro tudo. Toda a dedicação do meu amigo à natação. Todos estes anos passados. Os pormenores, as tabelas de tempos realizadas às escondidas, os primeiros títulos, a carreira promissora, a perspectiva internacional e o vaticínio elementar da presença nos Jogos Olímpicos de 2012.

            Olhei para telemóvel. De férias…

            - Baixa a cabeça, Rui.

            Servi de cobaia.

            No fundo da piscina a minha sombra.

 

(a publicar no dia 02/0910)

quarta-feira, julho 28, 2010

sinais do tempo

            A frase “não devemos voltar a um lugar onde fomos felizes” é a atribuída a Agatha Cristhie. Não vou ajuizar os seus escritos, até porque não conheço o contexto da qual é retirada e isso é sempre importante para entender completamente uma citação. Extractos retirados da literatura não devem ser utilizados como mandamentos. Se tenho que voltar a um lugar, regresso. Não espero encontrar o que vivi anteriormente. O tempo não volta para trás. Por isso, a expectativa ao reencontrar os espaços já visitados, é procurar novas experiências.

            Respondendo a um pedido dos meus filhos, voltei a acampar. Não o fazíamos há seis anos. Na hora da escolha do parque, não tive dúvidas. Numa aldeola da beira alta, concelho de Sátão, havia montado tenda para três, tendo o meu filho um ano e meio. Dois anos volvidos, regressei ao mesmo parque. A família com um novo elemento, estreando-se no campismo com um ano e três meses. Depois disso nunca mais armei tenda. Ingressar num parque de campismo, com todas as implicações associadas, só poderia ser no mesmo. Desta vez sem fraldas, sem sestas para crianças, sem biberões de leite, nem sopas apropriadas a idades infantis. Só poderia correr bem. E assim foi. O encantamento provocado nas crianças valeu o esforço. Sem qualquer memória de acampar, tudo lhes pareceu novo.

            Existe quem tenha reescrito a frase com que inicio este texto, modificando-lhe o sentido “devemos voltar a um lugar onde fomos infelizes”. Sinceramente, penso já ter experimentado. Não por qualquer tentativa de modificar o curso da minha vida. Por acaso, por coincidência e de todas as vezes que regressei a um desses locais, fiquei com a sensação de me sentir mal, sem perceber muito bem o motivo. Contudo, se me apercebo de estar a cometer o mesmo erro, procuro tirar a melhor satisfação do meio que me envolve, para não ficar associado a experiências negativas.

            Por falar em experiências, regresso várias vezes a algumas abandonadas no passado. Tenho a sensação que algo ficou por fazer e procuro completar. Já por aqui relatei a sensação de alegria que tive em saber a fórmula para resolver o cubo de Rubik. Experiência semelhante fui vivendo este ano, ao retirar do sótão de casa dos meus pais, o meu baixo eléctrico. As primeiras notas tocadas corresponderam a duas músicas da Joy Division. Ficaram em memória estes anos todos. Uma linha de baixo simples, do período urbano - depressivo. Recuei 20 anos, inscrevendo-me em aulas, para aprender um pouco mais sobre o instrumento e melhorar o meu conhecimento sobre música.

            Haverá outras práticas que um dia poderão ser recuperadas. Da infância, ou da adolescência, como referido e começa a fazer sentido resgatar as experiências maltratadas da primeira idade adulta.

            É curioso, até há dois anos, raramente olhava para trás.

            Pode ser consequência da passagem do tempo.

            Certo é que no dia em que se publica esta edição do labor, vou assistir ao concerto de Caetano Veloso, no Coliseu do Porto. Vinte e oito anos depois do seu álbum Cores e Nomes, um dos primeiros que ouvi insistentemente.

            Boas Férias.

 

(a publicar no dia 29/07/10)

quarta-feira, julho 21, 2010

No prelo

No prelo

                Torre norte do World Trade Center, pelas 8 horas e 45 minutos do dia 11 de Setembro de 2001. O grupo de pessoas transportadas num dos elevadores desconhece o final da curta ascensão. Dos ocupantes, três mantêm uma amena conversa e os oito restantes escutam-nos, não revelando qualquer manifestação de interesse. A conversa é entre membros de uma organização não governamental, uma minoria de altruístas, por oposição à indiferença da maioria. John Duckley, defensor da livre circulação de pessoas à escala global - “em homenagem à minha origem irlandesa”, segundo o próprio – o seu entusiasmo contagiante, esconde um ser frágil, com um passado cheio de recalcamentos. Hadiya al-Marakibi uma exilada síria - procurando argumentos para contrariar a desigualdade da condição feminina no seu país de origem - alia o exotismo a uma falsa ingenuidade, tornando-se por isso, uma consistente manipuladora e uma forte negociadora. Jim Motion, advogado especializado em legalizar clandestinos, inconformado na sua actividade, persistente e cosmopolita é o cerne da narrativa. O contraste com os ouvintes mais preocupados com novos modelos de SUV, o obrigatório consumo de combustível elevado; ou com as rentáveis aplicações financeiras não chega a ser evidenciado pelo trágico acontecimento ocorrido segundos depois. O que sobra do relato é a diferença económica no mundo. As migrações humanas. O papel da religião como incentivo à guerra entre povos. O destino irónico de três filantropos que procuravam auxílio para a sua causa – direitos humanos nos países muçulmanos. A ascensão naquela manhã pode figurar como metafórica, relacionando-a com a duração da vida humana. Com o sentido da vida humana…

 

                Umas linhas encarreiradas, preparadas para algo que exigirá um fôlego extraordinário e tempo, sobretudo, tempo para empreitadas criativas.

                Por enquanto, limito-me a preparar a mala para as férias anuais. Este ano vou incluir três volumes do escritor local Manuel Córrego. Mais uns volumes de escritores nacionais, publicados na década de oitenta e mais uns quantos de autores estrangeiros. Para todos vou continuar a utilizar a técnica de leitura dos dois marcadores. Um indica a página que estamos a ler e o segundo marca o objectivo – que pode ser o final do capítulo, ou uma determinada página. Com este método, passei a rapidamente devolver livros à prateleira. Anteriormente utilizava a técnica de navegação Bojador - Boa esperança. Fácil de explicar, as primeiras páginas eram lidas sem grande velocidade, com grande sofrimento (correspondendo aos avanços dos navegadores ao longo da costa africana no século XV), até descobrir o rumo da prosa escrita (obviamente correspondendo à passagem do segundo cabo, acima mencionado). Raro era o livro com o fio condutor a ser descoberto no inicio.

                Pode ser que haja uma melhoria pessoal na técnica da escrita e o alento para publicação de uma maior quantidade de palavras seja conquistado.

 

(a publicar no dia 22/07/10)

 

quarta-feira, julho 14, 2010

A Sul

            Falésias limitam o oceano e entrincheiram areias acumuladas. A erosão nestas rochas é visível pelos penhascos isolados no mar. Um ou outro continua ligado ao maciço, embora furado, permitindo a passagem sob um arco insustentável. A paisagem natural altera-se com outros elementos geográficos inerentes e as praias, consequentemente, surgem mais amplas e extensas. A intervenção humana condicionou os restantes elementos naturais. A ambição de construir moradias e apartamentos junto ao mar alterou toda a paisagem. Os atropelos ambientais e urbanísticos foram-se sucedendo em nome do desenvolvimento turístico. O indefensável conceito, pela ausência de qualidade, obrigou à mudança. Intervenções municipais tentam disfarçar os erros do passado. Inalterável fica a implantação de muralhas de betão, a sobrelotação na época estival, com todas as consequências intrínsecas.

            Em época baixa, a paisagem humana no Algarve é outra. Por detrás da invasão de verão, o encontro de nacionalidades é espantoso. Aprecio em menos de meia hora a passagem de indianos, chineses, outros asiáticos com turbantes na cabeça, mulheres de rosto totalmente tapado, outras com um véu na cabeça, africanos, magrebinos com as suas carpetes para venda aos ombros e peruanos, que à noite se fantasiam com penas como se fossem actores secundários num filme de Hollywood. O desfile continua com brasileiros e ucranianos. Num restaurante, cujo dono é de origem turca, os empregados portugueses conversam amenamente com o cliente de nacionalidade uruguaia, perguntando-lhe pelo número de anos de radicação. Não percebo qual é a sua actividade, fiquei a saber que por ali está há nove anos. Todos estes casos correspondem a pessoas ou seus familiares que encontraram trabalho por aquelas bandas, cruzando-se comigo num momento de pausa.

            Nas ruas, o linguajar de outros povos europeus, ouve-se a qualquer hora. Turistas de sempre. Mais audíveis e visíveis, quando os que vão “para fora cá dentro” são em menor número.

            Um holandês sabendo um dos meus apelidos – Silva – refere-me como curiosidade o número de habitantes do Sri Lanka com apelido igual ao meu, além de outros de origem portuguesa.

            A migração como um acto humano primário.

            Longe da época do turismo em volume, o clima é reconfortante.

            O mar tem a mesma cor.

            As falésias são igualmente erodidas.

            Os prédios estão vazios, os apartamentos fechados, as moradias de igual modo.

            Nas ruas, passeia-se menos gente. Nas praças consegue-se uma sombra. As esplanadas têm pelo menos uma mesa e por todo o lado ser atendido, não é um acto de desespero.

            As praias estão menos povoadas.

            Tudo isto lembra verões passados.

            Para completar a nostalgia, a recordação das noites passadas ao ar livre: em sessões de cinema ou sentado numa qualquer esplanada de um bar ouvindo Orange Juice. O mais difícil será repetir esta última experiência.

 

(a publicar no dia 15/07/10)

terça-feira, julho 06, 2010

A banhos

Nas livrarias enquanto procuro novos títulos, novas leituras de autores consagrados ou de outros mais desconhecidos, abro alguns livros e faço uma curta leitura. Por vezes, desiludo-me. Outras, chego mesmo a surpreender-me. Num livro de contos, uma colectânea de vários autores, um deles assina com o nome de família comum ao meu. Na narrativa reconheço factos pessoais, pequenos indícios da sua vida. Um primo. Confirmo por sms a autoria e coloco o livro nas escolhas.

Aprofundo, descubro obras de escritores eternos. A curiosidade faz-me ler um pequeno excerto de um conto de Italo Calvino: “Quando tomava banho numa praia ocorreu à Srª. Isotta Barbarino um desagradável contratempo. Nadava ela ao largo, quando, parecendo-lhe altura de regressar, e já se dirigia para a margem, se apercebeu de que um facto irremediável acontecera. Perdera o fato de banho”. Sorrio-o. Fecho o livro. Saio da livraria e fico a imaginar o aperto da desgraçada senhora. Não resisto a alinhavar ideias, efabular, dando sequência ao contratempo da banhista.

A primeira ideia da Sr.ª Isotta Barbarino ao ver-se sem fato de banho, foi procura-lo, no pressuposto que este estivesse a boiar nas suas imediações. Não encontrando nada, afundou-se, evitando expor a sua nudez fora de água, procurando o fato de banho submerso, durante o tempo de apneia. Desistiu da ideia, estava a ser cansativo e pouco produtivo.

Voltou-se para a margem. Por sorte o seu marido estava a borda de água. Com o braço a Sr.ª Isotta Barbarino acenou-lhe. O marido respondeu. A atenção estava captada. A Sr.ª Isotta Barbarino fez um gesto chamando-o. Primeiro com uma mão, depois com a outra, em seguida com as duas. Enquanto gesticulava, passou a chamar pelo marido: Lucas!

Na margem, o Sr. Lucas Barbarino via a esposa a gesticular e percebeu que ela o chamava, só não percebia o que dizia. Voltou a acenar-lhe. A Sr.ª Isotta Barbarino continuou com os gestos e pedia-lhe para ele entrar na água e se aproximar. Como a esposa não saía do seu local e sendo uma óptima nadadora, o Sr. Lucas Barbarino entendeu que a Sr.ª Isotta Barbarino estava aflita dentro de água. Todo aquele acenar era para o chamar, pedindo-lhe socorro.

Dentro de água, a Srª. Isotta Barbarino viu o marido a desatar a correr pelo areal até encontrar o nadador salvador. Mais constrangida ficou, quando o vigilante entrou no mar em cima de uma prancha de surf e se começou a aproximar dela.

O nadador salvador sentiu que algo de estranho se passava, pela cara embaraçada da Sr.ª Isotta Barbarino. Todo o corpo da senhora permanecia tranquilo debaixo de água e o seu único movimento foi segurar-se à prancha calmamente, com apenas uma mão. O banheiro arregalou os olhos e em pânico exclamou: Mas, a senhora está nua! A Srª. Isotta Barbarino respondeu-lhe: Por isso! Senti tanto frio.

Regresso à livraria alguns dias depois e não encontro o livro. Procuro na estante, pergunto na caixa. Nada. Além disso, tenho sempre dificuldade em lidar com o nome de livros e por vezes, até de autores. Esta inaptidão de memória torna difícil a correcta transmissão de informação para quem está a trabalhar. Poderia relatar episódios caricatos. O certo, é que até hoje, nunca mais voltei a ver aquele livro, mesmo nas mais consagradas livrarias. Acredito que um dia conseguirei encontrar o resto de enredo.

O final do banho da Sr.ª Isotta Barbarino, perpetuado pelo escritor italiano, poderá ser do conhecimento de alguns leitores. Para esses as minhas linhas poderão parecer ousadia. No entanto, a intenção era apenas recriar um pequeno apontamento de humor. Nada mais.

(a publicar no dia 8/07/10)

quarta-feira, junho 30, 2010

Sombreros

            Um interruptor é substituído por um sensor de movimento, permitindo a respectiva poupança de energia eléctrica. Solicitei essa melhoria durante anos e apesar de saber da alteração, não consigo deixar de observar à distância se as lâmpadas estão acesas. Não se trata de desconfiança, apenas um prudente hábito de economia, de tal forma enraizado no meu inconsciente, não me permitindo deixar de proceder a essa verificação a cada passagem por esse local.

            Após nove meses de ano lectivo, os meus filhos ficam de férias. As rotinas diárias alteram-se. Novos horários, sem a menor preocupação com os seus afazeres escolares. No entanto, nestes primeiros dias das suas férias, ainda me preocupo com a hora de deitar, mesmo sabendo que no dia seguinte os horários a cumprir serão apenas para os progenitores.

            Dezoito dias a seguir o campeonato do mundo de futebol, a fazer contas como defini em crónica anterior, à espera das surpresas. Entusiasmo com o excesso de jogos, sempre em dias sucessivos e de repente… surgem os primeiros dias de descanso.

            Fica uma sensação de abstinência.

            Daqui para a frente, falta a selecção portuguesa mas, mais do que isso, faltam os jogos diários. Começam as paragens no calendário, os jogos rareiam.

            Os resultados diários dão lugar às discussões antigas: as imagens vídeo para avaliar lances duvidosos; a prestação do futebolista português mais mediático no colectivo nacional; o calendário pré-definido que colocará frente-a-frente algumas das melhores selecções do campeonato, ainda nos quartos de final.

            Os próximos jogos serão mais apetecíveis, restando a dúvida se será desta que uma selecção europeia vence um campeonato do mundo, em prova disputada fora do seu continente. As outras questões como saber se o Uruguai será campeão 60 anos depois? Ou a Argentina, 24 anos depois da mão de Maradona? Ou até a própria Alemanha, 20 anos depois do penalti de Brehme? Ou se pelo contrário, o Brasil conquista o hexa? Podem criar emoção mas, nada se compara com a ideia do próximo campeão mundial ser um novo conquistador.

              O futebol é jogado nas quatro linhas. As estórias associadas ao fenómeno, por vezes têm origem em locais estranhos, perdurando no tempo. Longe da África do Sul, num dos países injustamente afastados desta fase final, a Irlanda, surgiu a reacção mais divertida ao afastamento da França. Para quem não se lembra, a França conseguiu o apuramento frente à Irlanda com o golo procedido de mão. Após a derrota da selecção gaulesa frente ao México e ficando praticamente eliminada, os festejos nas ruas e bares de Dublin foram alargados para a televisão, com um dos apresentadores a aparecer com um sombrero.

            E é isto! Na próxima semana termina este Campeonato e outros assuntos merecerão atenção.

 

(a publicar no dia 01/07/10)