quarta-feira, outubro 27, 2010

Passeio de Outono

            O rapaz passeava com o seu cão por um velho trilho do bosque. O cão seguia à solta, uns passos à sua frente. O dia amanhecera seco. Folhas amareladas ou castanhas jaziam no chão, sem sinal de humidade. Muitas árvores mantinham folhas nas copas, embora fossem raras as verdes. Escutava-se o piar de pássaros, o voar de insectos, o abanar dos ramos de árvores e de pequenos arbustos devido ao vento contínuo que se sentia, quando o som de um motor ecoou pelo bosque. O rapaz assustou-se com o ruído estranho, manteve-se em sobressalto, até se aperceber que se encontrava perto de uma estrada. Nisto o barulho abrandou. Voltou o silêncio, prontamente quebrado por um som metálico. Uma porta de um automóvel a fechar – pensou o rapaz. Logo de seguida o som repetiu-se. Chamou o seu cão. Segurou-o. Fez-lhe um sinal para que não ladrasse. O rapaz ficou à espera de mais algum som, para perceber melhor o que estava a acontecer. Um carro tinha parado na estrada, situada no cimo da encosta, muito perto dele. Quem seria? A curiosidade cresceu. Sussurrou umas palavras de prudência ao seu cão. Colocou-lhe a trela e começaram a subir, atalhando pelo meio da densa vegetação. Rodeavam os picos dos arbustos, para evitar mazelas. Quebravam teias de aranha, minuciosamente construídas para apanhar mosquitos. Passavam rente a cogumelos, que cresciam encostados às árvores, aparentando formas curiosas, que noutra ocasião, teriam sido motivo para atenta contemplação.

            O acesso tornara-se mais íngreme e por isso bastante mais difícil de subir. Tinha que ter cuidado para não ser visto, nem o seu cão, seu companheiro inseparável. A custo foram subindo e vozes foram-se tornando audíveis. Aproximou-se mais e percebeu tratar-se de um homem e uma mulher. Distinguia as tonalidades da voz de cada um. Não os conseguia ver. Estavam ainda acima dele. O rapaz concentrou-se, tentando reconhecer aquelas vozes. Não as identificou. Ouvia-se risos. O homem falava e a mulher ria-se. A curiosidade aumentou. Cada vez mais queria ver quem tinha parado no bosque. Descobrir o que faziam e de que falavam, eram interrogações momentâneas do rapaz, além disso, o riso divertido da mulher aumentava o interesse na observação do casal.

            O rapaz procurou um local para uma melhor observação. De forma alguma, gostaria que o vissem. Seria difícil de explicar a sua presença no meio das moitas. O seu cão não podia aparecer aos olhos de quem estivesse na estrada. Segurava-o, por prudência, não lhe dando hipótese de fugir, mantendo-o em silêncio. Qualquer ruído poderia denunciá-los. Precisava de subir um pouco mais, para ter hipótese de visão. Do seu esconderijo avistou um penedo mesmo perto. Mediu a sua altura, acreditando que, em cima dele teria possibilidade de visão sobre o local onde estava parado o automóvel. O acesso era tranquilo. Na ascensão não seria visto. Enquanto trepava, o rapaz não largou a trela da sua mão direita, com medo que o cão lhe fugisse. O cão deu uns passos à esquerda. O movimento ascendente do rapaz colocou a trela por cima do seu ombro esquerdo. Finalmente, o rapaz conseguia ver a estrada. Todo o cuidado seria pouco. Avistou o casal. Estava demasiado próximo e só o penedo o escondia. Concentrado na observação do casal, ambos encostados ao automóvel, o rapaz procurava absorver os seus detalhes. Com isto, perdeu a noção da inquietação do seu cão, não se apercebeu que este se pusera em movimento, se deslocara para a sua direita e que a trela se enrolara no seu pescoço. O cão farejou algo, deu três passos, o movimento permitido pelo tamanho da trela. Bloqueado, o cão insistiu obstinadamente em seguir naquela direcção. Forçou uma primeira vez, uma segunda e não conseguindo prosseguir, ladrou. O rapaz atrapalhado no seu esconderijo, com a surpresa do latido do seu cão, não se libertou do aperto da trela, procurou não ser descoberto e estando em equilíbrio instável, deixou-se cair, sobre o seu lado esquerdo, para retirar-se o mais rápido possível.

            O casal olhou na direcção do penedo, ao ouvir o ladrar de um cão.

            - Um gato – gritou Laura.

            António ainda viu o animal a esconder-se nas moitas, no lado oposto da estrada. A atenção do casal voltou a centrar-se no continuado ladrar do cão. Esperavam que este aparecesse a qualquer momento em perseguição ao gato. O latir prosseguia e aos olhos do casal apenas surgiu a parte dianteira do cão. Apesar de continuar a ladrar e a focar a moita do outro lado da estrada, o cão não avançava do seu lugar. António indicou a Laura que se refugiasse no automóvel. Em seguida, entrou dentro do carro. Arrancou. Cautelosamente, António avançou na direcção do penedo. Começou a contorná-lo e ganhou outro ângulo de visão. O cão estava só. Teimava em forçar a perseguição. António focou a trela, que desaparecia no meio da vegetação.

            - Coitado, ficou preso nos ramos.

            António prosseguiu a condução e um pouco mais à frente, pressentindo que algo de estranho estava a acontecer, fez inversão de marcha. Comentou com Laura o seu presságio. Parou o carro, dirigiu-se directamente aos arbustos. Seguiu o curso da trela e esperando encontrar um objecto a segurá-la, ficou atónito ao ver o corpo de um rapaz estendido no chão. A trela estrangulara-o. Olhou o penedo, mirou o cão entretanto sossegado e pensou: “Ora, ora, o gato matou a curiosidade.”

 

(a publicar no dia 28/10/10)

quarta-feira, outubro 20, 2010

licença

            A expectativa em torno da resposta da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), ao pedido de renovação da licença ambiental, da empresa Luís Leal & Filhos, terminou e sem grandes surpresas. Os “pareceres” negativos, apresentados pelas autarquias de Santa Maria da Feira e de S. João da Madeira aquando da consulta pública de Julho deste ano, não produziram o efeito pretendido.

            A novidade é o tempo da atribuição da referida licença, apenas dezoito meses, o que permitirá que em Março 2012, haja novo processo de avaliação, caso surja novo pedido de renovação da licença ambiental, por parte da referida empresa.

            O conteúdo desta licença é semelhante à emitida em 2005. Alguns pontos técnicos são mais alongados, daí o número de páginas ter aumentado para quase o dobro. O teor é semelhante. Continua a ser possível apresentar queixas de natureza ambiental ao operador e este é obrigado a responder, tendo inclusive que relatar essas queixas para a APA, indicando as medidas e acções desencadeadas.  

            Segundo o semanário O Regional, na sua edição da semana passada, a APA recomendou a criação de uma comissão de acompanhamento. Com este conselho pretendia-se atribuir a iniciativa aos órgãos autárquicos. A originalidade sugerida não especifica qual o enquadramento jurídico dessa comissão.

            Da sugestão nada restará.

            O mal-estar da população nos dois concelhos continuará.

            As formas de protesto devem intensificar-se.

            A deslocalização de empresas desta actividade é imperativa. É necessária uma maior intensidade nas acções, para que tal aconteça. A licença anterior terminou em Maio do presente ano, a nova licença foi atribuída em Setembro, divulgada em Outubro e durante esse hiato de quatro meses, não seria possível interpor uma providência cautelar, para evitar a laboração da empresa visada, nesse período? Confesso não saber o que está contemplado na legislação. Pelo país inteiro interpõem-se providências pelos mais variados motivos, se calhar, esta poderia ser aceite.

            Existem outras formas de protesto, por exemplo: a) a protecção civil concelhia declarar alerta amarelo, devido aos intensos odores sentidos, aconselhando idosos, grávidas e pessoas com dificuldades respiratórias a ficar em casa; b) distribuir gratuitamente máscaras pela população e num determinado dia, consagrar o seu uso em simultâneo, promovendo uma marcha colectiva.

            Estas formas de protesto devem ser divulgadas, de preferência, pela rádio nacional e mesmo pela televisão. Nos meios áudio visuais não se consegue transmitir o motivo do sofrimento dos habitantes da região, no entanto, a recolha de testemunhos em acções conjuntas e alguma dose criativa à mistura podem servir de ajuda.

            Bem precisamos.

 

(a publicar no dia 21/10/10)

quarta-feira, outubro 13, 2010

Jogo de sombras

                Eva aproximava-se da porta, rodava o manípulo e aos seus olhos aparecia sempre a luz da casa de banho acesa. Enquanto se despia, olhava-se ao espelho, compunha-se e se necessário refrescava-se. A seguir, apagava a luz, passava para a ante câmara e abria a porta de acesso ao quarto. Tudo escuro. À sua espera estava Basílio. Chegava primeiro, preparava o cenário para o final de tarde romântico. Deitava-se na cama, sem roupa e aguardava a entrada de Eva. Quando a porta se abria, a luz instantânea vinda da entrada, permitia a Basílio contemplar a silhueta da sua amante. Como combinado, Eva fechava a porta após a sua passagem e dirigia-se para a cama, sem dizer uma palavra. Uma pequena frincha era deixada propositadamente aberta na persiana, permitindo ao casal olhar os contornos do desejo, sentir os corpos e manter esta relação programada, de encontros mensais, iniciada uma noite há 4 anos atrás. No final, Basílio levantava-se, vestia-se e abria a porta do quarto e Eva observava as costas do seu amante. Basílio acendia a luz da casa de banho e passado um pouco saía sem se mostrar, nem se despedir.

                Um dia Eva faltou. Naquele mês Basílio não a viu.

                Rosa entusiasmada com a ideia de apresentar a irmã à restante família, organizou um jantar em casa do casal. À hora certa a nova descoberta da família chegou. Rosa e Basílio saíram para o exterior para receber a familiar. A luz no jardim era ténue. Uma das lâmpadas dos candeeiros apagara-se e entre o muro exterior e a porta da casa, o acesso pelo meio do relvado estava mal iluminado. Rosa descontraída, explicou o sucedido em voz alta, enquanto a irmã se aproximava. Ao seu lado, Basílio sentiu um calafrio ao reconhecer aquela silhueta, vinda do escuro, que se aproximava de sua casa. Rosa avançou para a irmã, abraçando-a. Pelo meio dos braços de Rosa, Eva viu um vulto na entrada de casa. Seria o cunhado certamente. A luz por detrás dele impedia de lhe ver as feições. Entre beijos e mais abraços, Eva viu o cunhado a virar-se de costas, respondendo ao pedido de Rosa, chamando a restante família. Aquele corpo em contra luz?! Eva reconheceu logo o seu amante. Não queria acreditar.

                Apesar da relação familiar, Basílio volta a fazer pressão sobre Eva para retomarem os encontros ao dia 16. Cansada dessa pressão, Eva toma a decisão de ir a casa da irmã, mesmo sabendo que esta não está. Está um final de tarde maravilhoso, de um dia luminoso de Outono. A luz do rio reflecte-se por Alcochete. Atrapalhado, Basílio abre-lhe a porta. Eva atravessa o jardim e decidida entra em casa, dirigindo-se para a sala. Olha o cunhado com reprovação. Mesmo estando com claridade, Eva acciona o interruptor, acendendo as luzes da sala. Dirige-se a um candelabro decorativo e acende as velas. Basílio não a entende. Eva aproxima-se das janelas. Ergue as persianas que estavam meias corridas e abre os cortinados.

                - Esquece Basílio. As trevas terminaram. Olha à tua volta. Eu quero viver com luz, ser amada à claridade e jamais por ti. Entendes?

                Basílio aproxima-se de Eva. Tenta segurá-la, com o objectivo de ela ouvir as suas explicações. Eva liberta-se, empurrando-o com força, saindo em seguida da sala e da casa. Recomposto do empurrão, Basílio sai atrás de Eva, não reparando que o candelabro aceso tinha sido derrubado, estando agora a chama das velas encostadas ao tapete da sala.

 

(a publicar no dia 14/10/10)

quarta-feira, outubro 06, 2010

O século dos militares

            A semana passada não escrevi propositadamente sobre o centenário da República. Esperei para ver as celebrações e hastear da bandeira um pouco por todo o país. Por isso, escrevo apenas a posteriori umas singelas linhas.

            Nada tenho contra o cinco de outubro, nem contra a República. Antes pelo contrário. Tenho que confessar que a república à portuguesa não é muito do meu agrado, por a considerar demasiada despesista, em matéria de órgãos de soberania. Assunto que não desenvolverei, abstendo-me de apresentar críticas em tempo de comemoração.

            Atendendo à idade do regime, não compreendo a visão histórica de associar a implantação, com os anos da I República. Os argumentos apresentados – constantes mudança de governo, elevado défice público, desordem, só para citar alguns – são reais e foram apresentados durante décadas para justificar a mudança para o Estado Novo e branquear a ditadura militar.

            Os portugueses tiveram alguma dificuldade em adaptar-se à monarquia liberal. A carta constitucional tardou a ser adaptada. Pelo meio, foram realizadas várias emendas e formados dezenas de governos, ainda durante o século XIX. No reinado de D. Carlos, verificamos que houve dez governos, um dos quais próximo da ditadura. Entre a data do regicídio e a implantação da república surgiram quatro governos, o derradeiro sinal de que a crise política, promovida pelo rotativismo dos partidos da época, era por demais evidente.

            A cedência ao ultimato inglês de 1890 e nos anos sucessivos, os gastos excessivos da coroa, são unanimemente reconhecidos como os factores decisivos para o fortalecimento da causa republicana, com a consequente tomada de poder em 1910.

            Para reforçar este ponto: o antes e depois da República diferenciam-se pelos ideais de alargamento das liberdades e a eliminação de privilégios.

            A passividade do exército português no dia 5 de Outubro, com arsenal suficiente para derrotar as hostes republicanas, continua por explicar, segundo vários historiadores. Desta forma alterava-se a história de Portugal e abria-se uma nova era, a dos militares.

            Sidónio Pais, perdão, major Sidónio Pais, um republicano destacado, exercendo cargos políticos desde a implantação, liderou uma insurreição protagonizada pela Junta Militar Revolucionária, em 1917. Assumiu o cargo de presidente da República até às eleições do ano seguinte, que viria a ganhar por sufrágio directo. No final desse ano, infelizmente, seria assassinado.

            Em 1919, Paiva Couceiro, perdão capitão, tenta a sua terceira incursão monárquica, com um movimento de tropas, depois de goradas as tentativas de restauração de 1911 e 1912. Da última vez, consegue proclamar a Monarquia do Norte, do rio Minho à linha do Vouga, chegando a ser hasteada a bandeira azul e branca em alguns concelhos, durante vinte e cinco dias. Ao fim desse tempo e porque D. Manuel II jamais mostrou interesse em regressar ao país, acabou a aventura.

            Dois factos embora um tenha terminado de forma trágica e pouco democrática, da história da I República, demonstrativos que a desordem não provinha apenas da sociedade civil.

            Depois, seguiu-se a ditadura militar. Quase meio século. Pelo meio, várias tentativas militares de mudar o regime. Até à revolta dos capitães. A revolução na rua, dois anos conturbados de disparates militares, por fim, um general eleito democraticamente Presidente da República.

             75 dos 100 anos de República são condicionados directa ou indirectamente pela acção militar. Felizmente, prevaleceu o bom senso.

            Ironicamente, no último quarto de século, as fronteiras foram abolidas e a integração Europeia trouxe um óptimo desenvolvimento a Portugal.

 

(a publicar no dia 07/10/10)