quarta-feira, novembro 27, 2013

O decote

                - Respiro o vazio, doutor.
                O psiquiatra levantou os olhos, interrompendo a leitura da ficha do cliente. Havia cumprimentado o paciente e passara a ler o seu processo, para recordar a respetiva ficha clínica. Sintomas e medicamentos receitados, estava tudo ali escrito. Ainda não se rendera à informática, preferia os velhos ficheiros personalizados, cheios de notas, que consultava sempre que tinha uma marcação. Procurava ao reencontrar um cliente, verificar sintomas do seu estado de espírito. Ao olhar para Orlando, encontrara o mesmo de sempre. Um alheamento, sem queixas padronizadas, um caso difícil, no entanto,
- Respiro o vazio,
despertara a atenção do médico.
Uma queixa, diferente das habituais de outros doentes. Das dores, das visões, das perseguições, das incompreensões, era uma novidade.
Orlando explicou o vazio. Não tinha interesses. Limitava-se a sair do emprego e a ficar em casa. Não convivia, o seu círculo de lazer era o sofá de casa, esperando pela hora de deitar. Não seguia televisão, lia o jornal da última para a primeira página e ouvia música. Desistira de ver filmes, através do aluguer no vídeo clube, pois o mais próximo de casa fechara. Jamais perdera tempo com a internet, muito menos aderira à era dos computadores pessoais.
O médico ficou atónito. Escolheu dar conselhos e suspendeu a medicação. Propôs-lhe em desafio, que encontrasse nas suas atividades, aquela recordação que o fizesse despertar sentimentos antigos.
Orlando escutou, sem reagir.
Procurou com dificuldade um disco antigo. Ouviu a voz de Richard Buttler, entoando “Pretty in Pink” e nem um sorriso esboçou. Voltou aos CDs de música clássica, a Rossini, tal como nos meses anteriores. Não fez mais nenhum esforço. Nem com um livro, nem procurando rever um filme. Olhava desinteressado para a televisão e limitava-se a ler o jornal diário.
Um final de tarde, a secção cultural do jornal anunciava um festival de cinema italiano, para uma cidade do interior de Portugal. Orlando leu o corpo da notícia, como sempre fazia com as informações culturais. O propósito, da organização deste festival, era trazer a Portugal uma diva do cinema italiano. Para a edição deste ano, a convidada de honra seria Donatella Damiani. Ao ler este nome, Orlando teve dificuldade em reconhecê-lo. Prosseguiu a leitura e encontrou a chave do mistério no parágrafo seguinte, a atriz italiana contracenou com Marcelo Mastroianni num filme de Fellini de 1980, tendo desaparecido do grande ecrã meia dúzia de anos depois.
Na memória de Orlando correram várias imagens dos filmes de Fellini, até que se lembrou de uma rapariga de pele branca, de cabelo escuro e liso. Ficara mais conhecida pelo seu peito generoso e pela sua meiga personagem no filme “A cidade das mulheres”.
Era uma oportunidade.
Conseguiu ligar para o organizador do festival, ofereceu um patrocínio pessoal, com a condição de poder conviver com os convidados de honra. O organizador, de início, recusara a ideia. Quando Orlando informou a quantia que estava disposto a oferecer-lhe, o discurso mudou. Ele próprio, organizador, o acompanharia e faria de tradutor, durante o tempo que Orlando quisesse.
Na véspera do festival, Orlando foi convidado para a sessão de abertura. Pediu para ser apresentado a Donatella Damiani. O organizador aproximou-se de Orlando, acompanhado por uma senhora morena, com um lindo vestido decotado. Aquela cara lembrava-lhe alguém, Orlando não identificava. O organizador falava italiano e ele nada entendia. A italiana sorria-lhe, expressando as suas rugas. Até que o tradutor a apresentou, como Donatella Damiani.
Orlando olhou para ela, sem expressar qualquer sorriso, nem movimento. Olhou de novo para o tradutor e disse-lhe:
- Deve haver engano. Eu procurava a filha e não a mãe.
A italiana interrogou o organizador. Este encolheu os ombros e traduziu. Falavam os dois, muito depressa, argumentando cada um para seu lado, sem olhar para Orlando. Este olhou em redor à procura da jovem atriz italiana. Encontrou um espelho, que refletia a sua imagem e a da senhora italiana. Ao ver os dois corpos, envelhecidos, Orlando interrompeu a conversa:
- Respiro o vazio, Donatella.
O organizador repetiu em italiano. Ficaram os três em silêncio.
Donatella avançou para Orlando e abraçou-o. Sentiu-se apertado. As suas mãos tocaram nas costas da italiana. Orlando sentia o aconchego daquele abraço. Uma sensação de alegria percorreu o seu corpo. Aquele afago durou uma eternidade. Orlando sentiu o forte peito de Donatella a respirar junto ao seu. No momento da separação, os olhos fixaram o decote da italiana. Orlando não podia fugir à tentação.
O tradutor lançou um grito de espanto pela ousadia do patrocinador.
Orlando esperava uma má reação de Donatella mas, para seu espanto, esta soltou enorme gargalhada, ao sentir as mãos, daquele ser estranho, agarradas aos seus seios.
 
 
(a publicar no dia 28/11/13)

quarta-feira, novembro 20, 2013

Espaços novos, problemas antigos

                A cultura foi manchete nos jornais locais nos últimos meses.

As inaugurações dos requalificados edifícios emblemáticos da cidade, intercalaram atenções com a sustentabilidade financeira de um deles e com o enquadramento orgânico das estruturas de ensino, ou de formação, de índole municipal.

            A elevação qualitativa da oferta cultural é o resultado do forte investimento municipal em estruturas físicas. Em simultâneo, desenvolveram-se competências na área das artes cénicas e tornou-se efetivo o protocolo de cedência da coleção de Norlinda e José Lima.

            O deslumbramento, transmitido pelas várias obras expostas, transportam-nos para outras dimensões, ficando a curiosidade em conhecer o restante espólio destes nossos conterrâneos.

Boas práticas, as de quem partilha e as de quem apetrecha um espaço municipal, com obras tão importantes da arte contemporânea.

A concretização, nos próximos meses, de outras valências do projeto da Oliva Creative Factory permitirão enquadrar a sua atividade cultural num patamar bem alto, ao nível das principais capitais de distrito do nosso país.

O atual estado inacabado da OCF confere-lhe um enorme potencial para a organização de eventos. Um promotor nacional, que me acompanhou na visita, projetou 15.000 pessoas em três dias, calculados para um festival de índole, digamos, gastronómico.

 O sucesso latente da reconversão dos pavilhões e arruamentos da antiga metalúrgica não esconde os problemas antigos da animação cultural da cidade.

Na mesma semana, em que o Doutor Manuel Pereira da Costa, com o seu reconhecido mérito cultural, enalteceu o trabalho do programador da Casa da Criatividade, Fernando Pinho, os jornais locais relatavam os propósitos da nova vereação relativamente a esse profissional. O contraste, entre os elogios do prestigiado escritor local à atividade do programador e as desconfianças patenteadas pela vereação, foram evidentes.

De um lado a sensibilidade artística, o gosto em comum pela arte dramática, o reconhecimento pelas capacidades de encenação, com encomendas de peças para Inglaterra, do outro o ataque político, o imiscuir-se na programação, o aniquilamento de um agente da cultura.

Não se pode exigir sustentabilidade financeira a um espaço cultural, quando este tem seis meses de vida, estando ainda a verificar o seu público-alvo, a verificar o tipo de concertos ou espetáculos adequados à população e tudo isto, dentro do enquadramento orçamental anunciado há mais de dois anos.

Existem várias equações no modelo da sustentabilidade financeira da Casa da Criatividade. Não nos podemos esquecer da conjuntura económica atual, da constante oferta de concertos de entrada gratuita promovidos por autarquias e comissões de festas, que limitam a procura a espetáculos de ingresso pago. Acredito que os 400 lugares da CC poderão não ser suficientes para gerar a receita suficiente para a despesa, em alguns espetáculos.

Por isso, considero prematuro o julgamento a que está sujeito Fernando Pinho, lembrando outras perseguições a que no passado foram sujeitos outros agentes culturais da nossa cidade. Nomeadamente Helena Cruz, após um excelente trabalho de democratização da Biblioteca Municipal Renato Araújo, permitindo o acesso à literatura nacional contemporânea, divulgando prosadores e poetas nacionais. O seu trabalho, em lugar de reconhecimento, foi reprimido pelas suas opções políticas, uma atitude pouco democrática e intolerante, afastando-a da sua atividade profissional.

  À semelhança de Nelly Santos Leite, interessada em divulgar música, em formar alunos, dentro dos exigentes padrões reconhecidos pelo Ministério da Educação e constantemente posta em causa, por algo a que não deveria estar sujeita, a gestão financeira da Academia de Música. Neste caso, de meritório desempenho pedagógico, o enquadramento orgânico desta estrutura de formação municipal, deveria ser outro. Para a Academia de Música de S. João da Madeira devia-se encontrar uma solução jurídica autónoma, atendendo às suas instalações próprias, ao seu objeto, ou fim a que se destina. Obviamente que a parceria com a Câmara Municipal deve ser mantida e privilegiada, conseguindo-se uma solução que afaste a Academia dos problemas financeiros, a que infelizmente tem estado submetida. Uma maximização de receitas, instituindo quotizações, entre outras medidas, poderão libertar a Academia de Música da asfixia a que tem sido sujeita nos últimos anos e transmitir a tranquilidade a todos os seus profissionais, incluindo a sua diretora. 

 

(a publicar no dia 21/11/2013)

quarta-feira, novembro 13, 2013

A Estátua de Cosme Damião

                Eu voto em Lisboa.
                Não como eleitor, como é óbvio.
(Reconheço que gostaria de votar em António Costa. Aguardo a oportunidade, esperando que tal aconteça num futuro próximo).
Voto no orçamento participativo da capital.
Vou explicar porquê. Estou na rede de contactos de uma Organização Não Governamental (ONG). Recebo uma série de comunicados e em outubro do ano passado, fui convidado a votar no projeto dessa ONG, inserido na iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, intitulado Lisboa Participa. Por curiosidade política, procedi à minha inscrição no site da Câmara e procedi ao meu voto. Fiquei incrédulo com a facilidade encontrada. 
Em janeiro deste ano, tive a oportunidade pública de confessar o meu ato, sem contrição, à vereadora da edilidade lisboeta, Graça Fonseca. A possibilidade de qualquer cidadão espalhado pelo país votar do orçamento participativo de Lisboa, foi assumido pela referida vereadora como um risco calculado, significando apenas 5% dos votos totais.
Na interpelação, alertei para o facto, de posteriormente ao orçamento de 2012, essa mesma ONG ter promovido uma petição para impor um estudo de impacto ambiental a um investimento imobiliário e ter recolhido 20.000 assinaturas, o que poderia significar que em próximas edições, o orçamento participativo poderia estar sujeito à capacidade de mobilização de cada projeto concorrente, podendo conseguir-se votos maciços e externos a Lisboa. Como tal jamais tinha acontecido, nas anteriores cinco edições, tal situação não foi encarada como um fator adulterante do processo.
Na edição de 2013 voltei a repetir a graça. Processo idêntico. Recebi o apelo da mesma ONG, acedi ao projeto proposto para este ano. A edição deste ano tinha uma novidade, o voto por SMS gratuito, procedi à votação calmamente.
A participação facilitada trazia maiores riscos, pois a origem de alguns votos não podia ser controlada. Fiquei curioso para saber os resultados. Estes foram divulgados a semana passada.
Houve vários vencedores, dois para valores acima de 150.000 euros e catorze para a categoria até ao mesmo valor.
Nenhum deles recebeu o meu voto.
Segundo a Câmara Municipal de Lisboa foram contabilizados 35.952 votos, a maior participação de sempre.
Entre os projetos vencedores, na categoria com menor orçamento, encontra-se a estátua de Cosme Damião. Para os mais distraídos, Cosme Damião é o fundador do Sport Lisboa e Benfica. Importa referir a oportunidade proporcionada por esta iniciativa da autarquia lisboeta e aproveitada pelos adeptos do referido clube, através de pouco mais do que 1.000 votos, o que motivou uma reação de protestos de clubes antagónicos.
Uma sovinice, poderia defender o adepto Ricardo Araújo Pereira, ou como em tempos escreveu António Lobo Antunes, continua-se com falta de sentido estético.
A deturpação do orçamento participativo surgiu por onde eu menos esperava. A participação de projetos associativos é um risco a calcular, podendo este exemplo servir de alerta, para quem quer lançar-se em atos semelhantes de envolvimento da população na gestão do município.
 
(a publicar no dia 14/11/2013)

quarta-feira, novembro 06, 2013

A posse

                A finalização do processo do eleitoral autárquico é consumada na tomada de posse dos eleitos.

                Tenho seguido aleatoriamente alguns desses processos, com a devida atenção, num exercício de curiosidade social e política.

As coligações, ou entendimentos pós eleitorais, para os executivos municipais são notícia de âmbito nacional, atendendo à dimensão das autarquias e às parcerias conseguidas. Assim, exemplificando, foi badalada a coligação em Sintra, entre PS, PSD e CDU. Do mesmo modo, que no Porto, a lista de Rui Moreira teve necessidade de entendimento com o PS local. Para finalizar, em Gaia, o partido vencedor, o PS, para formar executivo maioritário, convidou uma vereadora do PSD, que nos anos anteriores tinha exercido essas funções, numa confortável maioria liderada por Luís Filipe Menezes.

A necessidade de entendimento pós eleitoral é transversal à democracia portuguesa, em consequência do pluralismo político existente.

Destas eleições de 2013, em consequência da reorganização administrativa territorial autárquica, à qual aludi faz quinze dias, é interessante recolher informação do processo de instalação dos órgãos eleitos. Em causa, além dos resultados eleitorais, está o entendimento democrático resultante da agregação de freguesias. Sabendo-se que nalguns casos, as listas eram encabeçadas por elementos de freguesias vizinhas, é importante perceber socialmente, como evoluiu o bairrismo, dentro da nova realidade jurídica territorial.

É evidente que a notícia do jornal O Regional, da semana passada, relatando o desentendimento entre eleitos na vizinha Arrifana, para a constituição da junta de freguesia, permite verificar que o problema não se limita às freguesias agregadas.

Outros casos, como na União das freguesias de Lobão, Gião, Guisande e Louredo, da qual fui recolhendo informações, a junta não é instalada por incompatibilidades de eleitos… oriundos da mesma freguesia.

Ou seja, não é conclusivo, por ora, quais os efeitos da União de freguesias nas relações sociais dos habitantes de localidades vizinhas.

A consequência da falta de entendimento político e pessoal é o ultrapassar do prazo – 20 dias – para a instalação do órgão, de acordo com a lei eleitoral dos órgãos das autarquias locais, o que implica a marcação de eleições intercalares, para um prazo de seis meses.

No próximo meio ano vamos ser bombardeados com notícias dessas eleições.

Em S. João da Madeira, o erro processual da Junta de Freguesia levantou questões e insinuações acerca da irregularidade na eleição da Mesa, nomeadamente pelo não cumprimento do prazo para instalação do órgão. Entre a lei reportada e o regimento próprio, todas as dúvidas devem ser esclarecidas, para o melhor funcionamento dos órgãos autárquicos locais e obviamente para a legalidade permanecer.

 

 

(a publicar no dia 06/11/13)