terça-feira, maio 26, 2009

Barbeiro

            Era sábado de manhã, tinha terminado de escolher os artigos a comprar. Esperava pela conta, para pagar e ir-me embora. Pela porta da loja entrou uma pessoa, cuja cara não me era de todo estranha. Entretanto, a conta foi-me apresentada, puxei de cartão de débito e enquanto introduzia o código secreto e esperava pela ligação para validação da compra, o mesmo sujeito pagava e desaparecia na rua. Fiquei na incerteza se o conhecia ou não. Do nome não me lembrava, apenas me recordava vagamente daquela cara.

            Já com as compras colocadas no carro e iniciada a viagem de regresso a casa é que me concentrei, revendo vários pontos da minha passagem pela cidade, até encontrar uma resolução para este exercício de memória. Normalmente, quando me proponho a isso, em poucos minutos consigo recordar-me da pessoa. Embora, na maioria das vezes, desconheça o nome, lembro-me de onde a conhecia e de como a sua actividade profissional se cruzou comigo.

            O desfecho tardou. Eliminei a hipótese de um qualquer cruzamento, mais recente, numa das indústrias locais. Aquela cara trazia recordações mais antigas. Não estava ligada a nenhuma escola, nem a qualquer repartição pública. Não era de nenhum restaurante, muito menos café, nem de uma casa de vídeo - jogos.

            Apostava no comércio, numa loja, com aquela pessoa atrás dum balcão. Só não sabia de qual.   

            Recuei à infância e lembrei-me daquela fisionomia, o tom de pele moreno e os olhos rasgados. Tinha-me cruzado com o barbeiro. Recordava-me agora da sua cara, envolvida numa bata azul. Não atrás do balcão mas, junto às cadeiras do ofício. Não me consigo recordar se alguma vez vi a sua imagem reflectida. Toda aquela confusão que o espelho provocava numa criança, a mão da tesoura observada do lado esquerdo e o contrário com a mão que segurava o pente ou a escova. Não queríamos desviar os olhos daquela imagem, atentos a todos os movimentos do barbeiro e não facilitávamos a sua tarefa, recolocando a cabeça ao jeito de podermos seguir o corte, talhado no nosso cabelo. Pelo meio surgiam uns empurrões mais autoritários na cabeça e no final, seguindo as modas da época, o barbeiro descarregava a laca no cliente. De nada serviam os protestos, moda era moda e carregava-se no spray.

            Se tenho dúvidas, como atrás escrevi, se alguma vez fui seu cliente, recordo-me bem em que barbearia servia. O barbeiro trabalhava ao dobrar da esquina do prédio onde vivia. Passei pela frente daquela fachada, com ele lá dentro, centenas de vezes. Muito pequeno, para educadamente ir buscar a bola que extravasa os limites do pátio do apartamento dos meus pais e invadia as traseiras da moradia de um dos vizinhos, situada precisamente ao lado da barbearia. Poucos anos mais tarde, nos fins de tarde do Outono e Inverno, já escuro portanto, atravessar a mal iluminada Rua Júlio Dinis, com apenas lojas comerciais nas suas extremidades - sabendo-se que circulava pelas ruas da vila um tresloucado que além de apanhar beatas do chão, por vezes tinha comportamentos agressivos - ver a claridade proveniente do interior da barbearia era um sinal de segurança, para transeuntes ainda longe da adolescência e por isso, receosos.

            Nem sei durante quantos mais anos este homem trabalhou naquela loja. Habituei-me a vê-lo ali. Até que um dia deixei de passar por lá e só reparei na sua ausência quando o nome da barbearia mudou. Parafraseando o escritor Dinis Machado, este barbeiro foi um actor anónimo das ruas da minha infância. Mais existem e resistem. Vários são os vizinhos desse meu tempo de infância, que desde essa época acompanham os muitos lojistas. Enumerar uns e outros seria correr o risco imperdoável de esquecer alguém.

            Da janela do meu quarto via a rua toda. Desde o cimo, do marco do quilómetro zero da estrada nacional 227, até ao cinema. Uma rua animada. Com movimentações constantes de automóveis e de pessoas, muitas provenientes de autocarros, esvaziados de manhã cedo e que se enchiam ao fim do dia, devolvendo às freguesias vizinhas quem para aqui vinha trabalhar diariamente.

            Rua de contrastes. No mesmo dia, podia ser atravessada por um transporte de longa dimensão, carregado com alguma grande obra de metalomecânica proveniente de Vale de Cambra, obrigando a retirar e colocar cabos aéreos, e mais tarde, no sossego do fim de tarde, uma vaca transpunha o empedrado, recolhendo-se do pasto, para pernoitar, nas imediações da rua. Aos domingos, nas manhãs, o descanso era interrompido pelo altifalante da igreja evangélica. Minutos depois, um vizinho rebatia com uma música dos Pink Floyd. Nessas tardes, as ruas eram invadidas após as matines do cinema e enquanto esperavam pelo transporte, as raparigas forasteiras, algumas bem ingénuas, sujeitavam-se aos piropos atrevidos dos jovens locais, que interrompiam as suas partidas de snooker para uns minutos de diversão.  

            Tudo mudou, é certo. Acompanhei as primeiras transformações físicas da rua, em período de mudança de idade. A substituição do granito paralelepípedo pela calçada calcária, os novos canteiros, as floreiras centrais e a expansão comercial, acompanharam-me desde a minha adolescência até à idade adulta. As últimas alterações, com o consequente declínio a todos os níveis, já me apanharam de saída.

            A minha participação no quotidiano da rua limita-se actualmente a meia dúzia de passos, entre a garagem onde estaciono o carro e a porta de serventia do prédio, onde ainda moram os meus pais. Meia hora depois faço o caminho inverso, fecho a garagem, cumprimento quem ainda me reconhece e sigo pelo empedrado abaixo.

            Hoje sou eu o figurante. Nada mais posso ambicionar do que ser reconhecido, daqui a trinta anos, por um qualquer observador mais atento, como isso mesmo: um personagem sem nome, nem protagonismo na história de uma rua.