quarta-feira, dezembro 30, 2009

Sucessão

            O ano termina hoje. O calendário obriga à apresentação do balanço da actividade política de S. João da Madeira.

            O ano de 2009 ficou marcado pelas eleições autárquicas. Não pelo resultado, espectável, sem grandes surpresas, por isso, não sendo assunto apelante.

            Da invulgaridade dessas eleições destaca-se as leituras surgidas, no imediato, mais vocacionadas para a sucessão do actual Presidente, antecipando o que só acontecerá em 2013.

             A constituição das listas do partido vencedor das eleições tornou-se no primeiro acto dessas conjecturas. A ausência de determinado vereador compensada com a inclusão, em lugar de destaque, de um empresário local passou a ser alvo das mais variadas interpretações. Tudo foi examinado. No inicio, as preocupações estavam centradas na hipotética chamada para o Governo do cabeça de lista. Depois de infundadas pelo resultado eleitoral das eleições legislativas, as apreensões viraram-se para a atribuição da vice-presidência autárquica. Como a lógica partidária imperou e nada de especial aconteceu, a distribuição de pelouros, tranquila e sem surpresas parecia ser o último acto da formulação de hipóteses para a sucessão. No entanto, uma série de noticias relatando o desempenho político de deputados nacionais eleitos pelo distrito de Aveiro, onde se inclui o atrás referido antigo vereador, veio alimentar a tese supramencionada no anterior parágrafo.  

            Do lado da oposição, o ano de 2013 é fundamental. Em primeiro lugar, pela necessidade de rectificar os últimos resultados. Em segundo lugar, pela oportunidade de concorrer em igualdade de circunstâncias com o partido que lidera o executivo camarário, desde 2001. Pela amostra dos primeiros meses do actual mandato, o PS é único partido da oposição que está a preparar-se para a maratona. Mais participativo, pretendendo ver as suas propostas eleitorais incluídas em Orçamento, faltando apenas quantificá-las para tecnicamente melhor defendê-las, é visível um estado mais afoito, contrastando com a letargia a que esteve submetido nos últimos oito anos. Se a tudo isto juntarmos propostas alternativas, bem fundamentadas, pode-se dizer que em 2013, tudo será mais sério.

            Até lá, passando já para as projecções do próximo ano, o executivo camarário terá que cumprir as suas promessas eleitorais. Cumprir o seu plano de obras, inspeccionar a execução de empreitadas lançadas e esperar pelo cumprimento de promessas do Estado, feitas por antigos governantes. Neste inicio de legislatura atribulado, com a oposição parlamentar cheia de vontade de corrigir decisões do Governo anterior, seria uma terrível ironia que a auto-estrada A32 fosse vetada no parlamento.

            Nem só de obras vive a população.

             O orçamento municipal, com o respectivo plano de actividades, continua a ser preparado como carta de intenções, ficando sem se perceber quais dessas ideias serão reais para a autarquia. O que é lamentável, por razões de rigor e também pela expectativa criada durante o último ano, em que a acção social foi eleita como a grande preocupação municipal. 

            Por agora as atenções estão concentradas no imbróglio criado em volta do Hospital.

            Tudo demonstrando que a perspectiva para próximo ano não será muito animadora, como o próprio Presidente da Câmara admitiu recentemente.

            Não posso terminar sem desejar a todos os leitores votos um Bom ano de 2010.

 

(a publicar no dia 31/12/09)

quarta-feira, dezembro 23, 2009

A montra

No caminho para a escola primária era paragem obrigatória. Passava minutos a olhar para aqueles brinquedos expostos por detrás do vidro, daquela montra. Adorava os carrinhos de brincar, cuja marca chamava-se Matchbox e deve ter sido das primeiras palavras de língua inglesa que aprendi a pronunciar correctamente. Eram vários os modelos em exposição na Tabacaria Glória. Lá dentro, junto à entrada, do lado esquerdo, tinha uma vitrina, com imensas caixinhas apetecíveis, contendo as miniaturas de vários modelos, das mais variadas marcas de automóveis. Até chegar ao momento da compra, juntando o dinheiro necessário, eram várias as visitas de contemplação. Quem estava atrás do balcão envidraçado tinha sempre boa receptividade, não se incomodando com a minha presença. Desde cedo me habituei ao sorriso da D. Glória e à cara séria do seu marido, tão bem perpetuados para memória futura, nos retratos colocados no interior da renovada tabacaria.

Os meus interesses em matéria de brinquedos repartiam-se pelas peças de Lego. Apesar das montras que expunham esses produtos serem afastadas do percurso para alcançar a escola, o regresso a casa era feito por caminhos mais alargados e muitas vezes em bicos de pés contemplava as últimas novidades da marca dinamarquesa. O processo era semelhante ao dos carrinhos, acumulavam-se tempos de espera até se conseguir a desejada aquisição.

Numa época de mudança, com novos hábitos de consumo, maior poder de compra generalizado, a introdução de novas marcas de brinquedos fez atrasar a minha saída da infância. A adolescência ficava para depois. Era preciso aproveitar a oportunidade.

O último de todos os meus brinquedos foi o cubo mágico, o de Rubik. O objecto da mudança de idade. Por um lado o fascínio das cores, por outro lado o desafio de encontrar a solução para o quebra-cabeças.

Há dias, contribuindo para uma acção de solidariedade, fiquei com um cubo desses na mão. Passei-o para os meus filhos e lembrei-me da frustração de jamais ter “feito” um cubo completamente (era esta a gíria). Aprendi a fórmula até aquilo que se designava de 2ª camada, porque numas férias a pessoa que me estava a ensinar, perdeu o apontamento da solução das fases posteriores e como no dia seguinte voltava para casa, as minhas lições ficaram por ali. A arte e o engenho necessários para o resto escaparam-me sempre… A mudança de idade pode ter prejudicado também.

Nesta nova era de informação, não descansei enquanto não encontrei o resto da solução. Ainda me lembrava do que tinha aprendido. Daí até ao final, faltavam apenas 4 passos, extremamente mecanizáveis e simples de fazer, o que me permitiu fechar um ciclo com mais de vinte e sete anos.

Mais do que a minha perseverança, do testemunho da infância desafogada, importa realçar que a geração a que eu pertenço, assistiu à transformação do conceito da Quadra que atravessamos. Entre os vários exageros que se cometem hoje e a espiritualidade de outrora, haverá certamente um ponto de equilíbrio mais justo. Este é o momento de encerrar o ciclo actual.

BOM NATAL.

(a publicar dia 24/12/09)

quarta-feira, dezembro 16, 2009

Entre a espada e a dor

             É impossível não gostar de música, exclamou o Maestro José Ferreira Lobo, enquanto procurava as melhores palavras para convencer pais ou avós a sossegar os filhos ou netos assistentes, na plateia do Coliseu do Porto, num Concerto Promenade. Astutamente citou Mozart, com uma frase secular sobejamente conhecida e o seu propósito foi conseguido. Até ao final, o silêncio imperou na histórica sala de espectáculos, podendo toda a plateia deliciar-se com o som da Orquestra do Norte. Como prémio, no final houve a oportunidade para todos os espectadores participarem no concerto, ora trauteando uma música de Bizet, ora marcando o ritmo com palmas, em ambos os casos, sendo dirigidos pelo Maestro.

            Horas antes, no mesmo local, o concerto de Rodrigo Leão & Cinema Ensemble terminava da mesma forma: fortes aplausos, palmas de um público participativo enquadradas nas melodias e por fim, a assistência cantando em coro o tema “Pasíon”, acompanhando a voz de Celina da Piedade, a acordeonista de serviço.

            A interactividade do público, nos dois concertos a que tive oportunidade de assistir foi o mote para as primeiras linhas deste texto. Um apanágio do público daquela sala, recebendo calorosamente os músicos que por ali actuam. Impondo silêncio entre parceiros, quando o ambiente ainda está tenso, sem a festa instalada e depois de repente, tudo muda. A participação passa a ser palavra de ordem.

            Voltando ao concerto de Rodrigo Leão, durante uma hora, o público reagia, batia palmas no final de cada música, incentivando os músicos. Tudo mudou no 1º encore. Se a voz de Ana Vieira é mesmo perfeita para os arranjos criados pelo próprio líder do grupo, o grande momento da noite foi a presença em palco de Gomo, cantando o tema Cathy, originalmente escrito para ser cantando por Neil Hannon, a voz dos The Divine Comedy. Na segunda passagem pelo palco, já em encore, Gomo excedeu-se na prestação e transmitiu ao público o instante sublime do espectáculo.     

            É difícil escrever sobre música, digo eu. É fácil adjectivá-la. Descrever sonoridades duma época ou mesmo relatar concertos, procurando indicar o correcto alinhamento e a história do artista, ou do grupo são operações fáceis. Do mesmo modo, enaltecer o virtuosismo dos músicos, mesmo sem grande conhecimento técnico é quase obrigatório em exercícios de escrita musical. A parte árdua e pouco acessível, é a linguagem de perito, o desmanchar da música: em ritmos, harmonias e notas musicais, que bem utilizadas podem enriquecer mais um artigo ou comentário do que qualquer figura de estilo. Essa capacidade só está acessível a alguns, que pouco se dedicam à escrita sobre música.   

            Meses de dedicação à música, enquanto pai acompanhando e investindo na formação musical dos meus filhos, como apreciador adquirindo trabalhos de autores, lendo em “2666” devaneios sobre a música de Leonard Cohen - saber qual a importância do coro feminino na sua música, embora prefira vibrar com o seu som, como se fosse sempre a primeira audição, em “The Stranger Song”, como executante voltar a estudar o instrumento abandonado na adolescência e assistir ao excelente concerto de Rodrigo Leão, considerado por Pedro Almodovar como o melhor compositor da actualidade e nada conseguir escrever além de trivialidades, ficando como no título desta crónica.      

 

(a publicar no dia 17/12/09)

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Mensagem

A mão esquerda segurava no rato, com o dedo indicador posicionado sobre o botão canhoto. No monitor do computador, a seta do cursor estacionava sobre a palavra “enviar”. A dúvida permanecia. Enviaria a mensagem ou não. Ponderava as hipóteses, as consequências para a sua vida, ao cometer tal ousadia.

            Já tinha preenchido o assunto para este mail, que constava do seguinte teor: “Naquela manhã só faltava eu tomar banho. Como sempre tinha ficado para o final. O nosso grupo, composto por quatro casais amigos, ia tomar um café, antes de regressarmos de fim-de-semana, bem prolongado. Convosco alinhou a minha esposa. Fiquei sozinho na casa e após o corte matinal dos pêlos faciais, meti-me dentro da banheira. A água quente vaporizou toda a casa de banho. As fases do banho: encharcar, ensaboar, enxaguar e por fim enxugar. Saí da banheira, esfreguei o cabelo e ao retirar a toalha, vi-te. Estavas à minha frente. Assustado, tapei-me prontamente por instinto. Estou quase a sair, disse-te. Um sorriso apareceu na tua cara e não dizias uma palavra. Hei, gritei. “Podes sossegar, pois não está cá ninguém. Inventei um pretexto para voltar para trás” – disseste, quebrando o teu silêncio, sem retirar o sorriso. Não me parecia correcto, nem contava com uma iniciativa daquele género, nem concebia que pudesses pensar, sequer, em tal atitude. Procurei chamar-te à razão. Não te demovi, aproximaste-te. Com o teu puxar, a minha toalha caiu ao chão. Senti os teus braços a agarrarem-me e tentei demover-te a bem. Não desistias, segurei os teus braços, com alguma força, para resistir… e nisto tocou o despertador. Acordei, olhei para o relógio: seis horas e quarenta minutos. Levantei-me, tomei o pequeno-almoço, seguido do banho e depois das despedidas matinais, saí para trabalhar. Não resisti a contar-te o meu sonho. Tem um bom dia.”

            Leu o texto mais uma vez. Pensou no efeito deste, nas alterações a provocar na sua relação com a amiga e também na sua própria casa. Por agora, pensava apenas na amiga… como interpretaria ela o facto de ele ter sonhado com ela? De a ter imaginado infiel? De estar a fazer considerações sobre o seu comportamento? Não era fácil explicar-lhe, tal leviandade. Não estava preocupado, por agora, com o marido dela, pois eram distantes, relacionavam-se, mas por intermédio da amiga.

            O dedo indicador levantou-se do botão do rato. Ela perceberá a ideia, certamente – pensou. Fez uma pausa. Imaginou uma reacção negativa, um telefonema imediato a cortar relações, mais outro para a esposa dele a contar o sucedido. Ficou um pouco atrapalhado. Em casa, neste cenário as consequências eram imprevisíveis. As desculpas de fidelidade, mesmo em sonhos, iriam parecer desajustadas.

            Hesitou de novo.

            Começou a descer o dedo, encostando-o ao botão, sem olhar para ele.

            Não acreditou em tal reacção da amiga. Tanta cumplicidade vivida em conjunto, resultado de anos de bom relacionamento, não permitiriam afectar a amizade. Decidiu-se: Assim seja! Num rápido clique carregou em enviar. No monitor apareceu uma pequena caixa indicando: Tem de haver pelo menos um nome ou lista de distribuição na caixa “Para”, “Cc” ou “Bcc”… Tinha-se esquecido do destinatário.

            Sorriu, olhou para o monitor e pensou: quem era a destinatária?

            Surpreendido pela ausência de receptor, conduziu o rato para o lado oposto do monitor. Ali, no canto superior, carregou na cruzinha do lado direito, apontou para o “não” na box, entretanto surgida no ecrã e assim eliminou a mensagem.

 

(a publicar dia 10/12/09)

quarta-feira, dezembro 02, 2009

Hipermercado

            Vasco deambulava pelos corredores do hipermercado, empurrando o carrinho à procura dos produtos que constavam da lista de compras, timidamente escondida na mão esquerda, quando os seus olhos fitaram uma cara conhecida. Não muito longe, à sua frente, estava a sua primeira namorada, Marina. Sem perceber bem porquê, quase instintivamente, Vasco cortou logo à esquerda para uma qualquer artéria, de artigos semelhantes com marcas e cores diferentes, fingindo não ter reparado. Vasco ficou com a ligeira impressão de ter sido visto, por isso, colocou-se em atalaia, posicionado de forma a lhe permitir, de soslaio, observar o entroncamento do corredor principal com a artéria em que se encontrava.

            Esperou uns segundos e verificou que não se tinha enganado. Enquanto passava, o olhar de Marina permanecia fixo em qualquer ponto vago no fundo corredor, sem virar a cabeça para o local onde Vasco se encontrava. A técnica de quem não quer ver. Ambos estavam a jogar o mesmo jogo.

            É certo que se passaram muitos anos. “Provavelmente ela terá casado, tal como eu e possivelmente terá filhos” – pensou Vasco. Seria mais fácil adoptar uma atitude de dois velhos conhecidos. Um cumprimento efusivo e depois das formalidades do presente, recordar o passado em comum. Seria bom recordar um ou outro episódio esquecido, provavelmente confundir com situações vividas com outra qualquer pessoa e usar aquela expressão "e daquela vez...". No final a despedida até um dia incerto, até qualquer dia, ou até à próxima. É extremamente difícil ter abertura suficiente para recordar certos momentos de intimidade. Mesmo tendo sido os primeiros momentos, no caso de ambos. A virgindade a fugir, a inexperiência de adolescente. A atrapalhação do movimento. O gosto de correr riscos, característico da juventude.

            Vasco voltou para trás. Ficou nas costas de Marina. O seu olhar focou o seu corpo. Oportunidade para comparar com aquele que tinha tocado no passado. A esta distância Vasco não conseguia distinguir os indicadores da passagem do tempo: as rugas e claro, o aparecimento de cabelos brancos. A silhueta de Marina estava diferente? Como estaria corpo dela, com a transformação do passar dos anos? Vasco pensou na sua própria alteração, imaginou a gordura acumulada em certas partes do corpo de Marina, noutras as estrias conquistadas com a perda de massa, ou nos músculos dela mais flácidos, com a celulite nas nádegas e nas pernas… Marina virou à esquerda para a secção dos detergentes. Afinal, ao contrário dele, Marina estava bem conservada.

            Vasco optou por prosseguir na procura dos artigos da lista de compras. Enquanto escolhia os seus artigos e os colocava no carrinho, ele apercebeu-se que todo este jogo de escondidas era uma estupidez, por isso, tinha que a cumprimentar. Imaginou virar duas vezes à esquerda e entrar no mesmo corredor e aproximar-se para, fingindo surpresa, exclamar: Olha quem está por aqui! Há tanto tempo!

            Arriscou, ia correr bem. No momento da segunda viragem, Vasco parou. Provavelmente, Marina estaria acompanhada. Marido ou filhos, ou outro familiar e por isso, não o queria enfrentar. Se calhar ainda não tinha casado. Vasco penaliza-se, podia ter sido lesto a reparar nas suas mãos. Lembrou-se dos pais dela. Detestavam-no. Não admira, a filha a entrar em casa a horas diferentes das habituais, a não dormir algumas noites, ou a recebe-lo às escondidas lá em casa. Parecia estar sozinha. Mas, estava a voltar para trás, por isso o seu plano tinha falhado.

            Na lista de Vasco faltavam dois produtos, do lado oposto à direcção que ela tomou. Seguiu para eles. Colocou-os no carro de compras e decidiu enfrentar o passado, sem compromisso para o presente e para o futuro. Sabia que tinha ficado mais alguma coisa, além do sexo desajeitado e juras de amor eterno, quebradas numas férias. A ideia da infidelidade, a traição, o novo romance sempre agradou a Marina.

            O seu telefone toca. O filho acrescenta um pedido à lista, alterando de novo o seu rumo. Acrescentado o artigo extra aos restantes, Vasco parte para a procura. Quer encontrá-la. Faz os corredores de uma ponta a outra. Costa a costa, duas vezes. Roupas – bebidas, bebidas - roupas. Nada. Procura no corredor das caixas. É engraçado, a memória da primeira vez. Pensamento malicioso. Os corpos nus. Uma nudez total conquistada por etapas. O desejo falou mais forte.

            Chegou à última caixa e nada. Volta para trás, percorre as caixas pela ordem numérica inversa. Focaliza cada pessoa, em cada uma das filas. “Não sei porque a recordei a traição” – pensava Vasco. “Tendência para recordar as mágoas, houve mais do que isso e no entanto, parece que ficou uma ferida para a vida inteira. Relações de adolescente, só isso, nada mais. Naquelas idades não temos a noção do que é a vida, o mundo. Até do que é o amor…” - prosseguiu Vasco.

            Primeira caixa e não há sinais de Marina. Vasco desiste, coloca-se numa fila, com poucas pessoas. “Paciência, perdi-a. Fico sem saber nada do que se passou com ela, ao longo destes anos todos” – resignava-se Vasco.

            Passado uns minutos, entalado na fila, Vasco vê Marina a passar já no lado das lojas. Olha para ele, mostra-se surpreendida por o ver, sorri, cumprimentando. Vasco retribui, a surpresa e o cumprimento. À sua frente, um outro cliente a proceder ao pagamento junto à caixa está parado, a rapariga da caixa não pode avançar, um produto está sem código de barras, sem preço marcado, por isso, empata Vasco no meio da fila. Não consegue alcançá-la. Faz um gesto, mostrando o seu desespero. Vendo a situação dele, Marina, a sua primeira namorada, encolhe os ombros e diz-lhe:

            - Tenho pressa, tenho gente à espera!

            Vasco tenta reagir. Abandonar ali o carrinho, passar para o outro lado, voltar atrás, sair pela passagem destinada a clientes sem compras. Chama-a. Ela olha para trás e sem intenção de esperar, responde-lhe:

            - Fica para a próxima! Vai aparecendo.

            Ele segue-a com o olhar, desesperado pela situação. Pretende descobrir algo sobre a vida dela. Esqueceu-se de olhar para as mãos, bolas!

            Uma voz interrompe a sua faceta de detective: Boa tarde, tem cartão cliente?

            Vasco olha para a caixa, entrega o cartão e volta a focar o corredor, de onde lhe retiraram a atenção. Nada. Já não há sinais dela.

            - É tudo? São 67 euros e 34 cêntimos - ouviu ao fim de alguns minutos, interrompendo os seus pensamentos.

 

(a publicar dia 3/12/09)

 

quarta-feira, novembro 25, 2009

Patamar

            Nos últimos dias, atendendo à compilação editada no livro Caleidoscópio, reli as crónicas de Renato Figueiredo publicadas no jornal labor. A grande maioria dos seus textos, estava bem presente na minha mente, não só pela proximidade da edição do original, como pelo talento patenteado ao longo das várias crónicas publicadas. Surpreendeu-me por isso, a referência ao meu nome surgido na página duzentos e vinte e seis do referido livro. Mais do que a honra por tal distinção, importa aqui colmatar a ausência de qualquer menção à sua pessoa, que até hoje, por manifesta inibição pessoal não me atrevi a fazer.

            Abstive-me de qualquer tentativa de escrever, dando o lugar a outros, por considerar terem melhores e mais bonitas palavras para prestarem a justa homenagem. Entre estes encontravam-se os meus pais. Não posso esquecer a longevidade da sua vizinhança, mais de quarenta anos, separados por um patamar. O Doutor Renato a habitar o 2º esquerdo e os meus pais o direito. Uma relação de amizade com respeito e admiração mútua, como demonstrado na página cento e dez do livro agora editado. Com diferenças ideológicas, ao jeito do lado do patamar que residiam. Uma forte convivência, bem democrática, fazendo lembrar e retirando o exagero burlesco, alguns momentos dos filmes de Don Camillo e Peppone.

            O patamar, do 2º piso na porta 49 da Rua da Liberdade, também teve direito a página, a cento e quarenta e dois, uma alusão “são passos curtos: os que nos levam a abrir a porta, a recolher o jornal, a ler.” Várias manhãs abri a porta, tendo ali dois jornais, para a porta da esquerda sempre o Jornal de Notícias e para o meu lado, O Primeiro de Janeiro - com as aventuras do “Príncipe Valente” - e alguns anos depois, substituído pelo Público. Eu, por inerência, fui seu vizinho vinte e sete anos. Em miúdo, juntamente com os meus pais, passei alguns serões em sua casa. Fascinava-me o efeito espelho dos apartamentos. Antes de adormecer, embalado pelas conversas de quatro adultos (ainda era viva a sua mãe), jogava mikado e contemplava a paciência feita com cartas em miniatura, interrompida devido às visitas e espalhada em cima de tabuleiro apropriado.

            Seguiram-se anos e anos. Fui crescendo naquele prédio. Todos os exageros de criança, os ruídos de adolescente, as noitadas em adulto foram sempre toleradas por este vizinho, sem qualquer comentário, nem queixa aos progenitores. A discrição total. Nunca interferiu na minha educação (e que eu saiba na dos meus irmãos). Oferecia-nos livros sem qualquer ideologia associada. Tudo isto para dizer, que em todos os meus anos de vizinhança, não tive qualquer conversa com Renato Figueiredo sobre ideologia política, nem muito menos sobre literatura. Durante três anos coincidimos nas páginas deste jornal. Nesse período, cruzei-me com o Doutor Renato várias vezes na escadaria do prédio onde viveu. Jamais trocámos uma palavra sobre os textos um do outro. Manifestamente, por falta de à vontade da minha parte para puxar o assunto. Ao iniciar os meus primeiros passos neste mundo das palavras escritas, com o receio típico de quem aqui não pertence, recebi da sua parte, claro que indirectamente - através de comentário positivo transmitido aos meus pais, um dos primeiros incentivos para prosseguir este caminho.  

            Um filme de família, recuperando imagens da década de 1970, relembra os momentos com amigos. A aparição, natural, do Doutor Renato, mostra-o brincalhão, interagindo com um dos meus irmãos. Nessa sequência, minutos depois, surge a sua imagem solitária, antecipando em alguns anos a crónica “Era Domingo”, compilada na página setenta e seis do livro Caleidoscópio. Essa e outras imagens é que sempre me fascinaram: a opção pela solidão. O isolamento familiar, numa vida recheada de amigos.

            Hoje subo as escadas do prédio da minha vida, alcanço o patamar do 2º andar. Falta um vaso à esquerda. A porta desse lado está fechada. Atrás dela, tudo está vazio. Não se avistam sombras de movimento. Advinham-se as paredes expostas. Não se sente o cheiro a tabaco. Se de noite, a escuridão no vitral acentua o estado solitário.

            Por ali, ao falarmos naquela que seria a última vez, à minha pergunta sobre o seu estado de saúde: “Está mais composto?”; Renato Figueiredo respondeu-me com o seu habitual humor: “Estou, é decomposto”.       

 

 

 

terça-feira, novembro 17, 2009

Paisagens desobedientes

            Acontece-me por vezes ter que explicar a quem não tem a vida centrada em S. João da Madeira e, portanto, não é leitor do labor, sobre quais os assuntos que elejo para publicar em texto. Começo a resposta invocando a memória colectiva, as experiências pessoais, os “micro” contos e obtenho uma reacção de interesse. Quando avanço um pouco mais na explicação, acrescentando o quotidiano, mais a análise da actividade política local, o desinteresse instala-se e invariavelmente a conversa muda de assunto.

            Não sei se acontece o mesmo com os leitores do labor, isto é, se a indiferença varia conforme o assunto do texto. Sendo impossível criar consensos, mesmo nestas páginas, limito-me a exercitar a escrita - se disciplinarmente - em ritmo semanal.

            Como é fácil constatar, colo-me ao calendário de eventos nas oportunidades devidas ou necessárias. Para as outras semanas, adopto a técnica da incerteza, pretendendo criar algum efeito de surpresa sobre o leitor no desenrolar de cada texto. Dentro deste princípio de tema aleatório, no exagero não escrevo nada, procurando aumentar as perplexidades para futuras edições.

            Vai longa a introdução e urge centrar-me no assunto a partilhar com os leitores na edição desta semana do labor.

            Por estes dias de chuva intensa, sentindo-se humidade até à medula, aproveitar as tréguas da chuva, contemplando a transformação dos elementos da natureza que nos rodeiam, para quem gosta de momentos calmos, pode trazer momentos únicos.

            Na cidade, nas cidades, os apreciadores de botânica procuram os seus parques e jardins, para examinar o comportamento de espécies e descobrir dados novos. Os leigos deliciam-se com as folhas em tons avermelhados, ou castanhos, resistentes nas árvores. Apreciam avenidas e praças entrincheiradas com essas cores. Em parques ou jardins, as alamedas enchem-se de folhas. As ainda esticadas, caídas sobre o verde de um relvado, provocam sorrisos. Por cima, árvores despidas contrastam com outras de folhas mais resistentes, apesar de a sua perenidade não lhes permitir ser indiferentes ao vento e à forte chuva. Voltando ao chão, nem só folhas causam surpresa. Pesquisando um pouco, conseguem-se encontrar cogumelos, com cores e aquelas formas desajeitadas.

            Apesar dos quinze dias de chuva, o excesso de água, incomodando e provocando estragos, ainda não foi suficiente para transbordar os rios. Margens rurais tomadas pelas águas, com troncos emergindo sem terra à volta, tudo envolvido pelo ruído do forte caudal, são imagens e sons que recordo das cheias de alguns rios, mencionados na geografia de Portugal. Longe do perigo, quem já teve a oportunidade de observar, a partir do castelo de Montemor-o-velho, o rio Mondego depois de galgar margens, campos e alagar tudo o que estava ao seu alcance, percebe a imagem. Paisagem que não se repete todos os anos, devido à desobediência da estação outonal.

            Mais frequente é o mau tempo no mar. O retrato da nossa costa, com mais ou menos paredão pelo meio, é ondas ou vagas de dimensão e frequência elevada, sob um céu cinzento. Pela tarde, nas horas de tréguas da chuva, uma aberta e o céu fica em tons alaranjados, reflectindo essa cor para as águas cinzentas do mar. Fotografia comum captada pela estabilidade de várias lentes, à qual eu regresso, sistematicamente, para a observação natural, sentindo o encanto da força da natureza.

            Água, chuva, água, é o que se retém destes dias. Não adianta descrever outras paisagens Outonais, que o pensamento tende para o excesso de chuva. Quando a meteorologia o permitir alargarei horizontes, procurando captar outras rebeldias. 

 

(a publicar dia 19/11/09)

terça-feira, novembro 10, 2009

Enigmas

            - Discreta, é a minha palavra favorita e tem as quatro letras do meu nome. O desafio estava lançado. Ouvindo isto, Alfredo mentalmente preparado para as palavras cruzadas, pensou: Dina, não. Dora, não. Quatro letras? Ficam de fora uma série de hipóteses de nomes começados por D: Dalila, Dulce, Diana, Daniela. Inventou alguns, divertindo-se com as variantes imaginadas.

            A rapariga repetiu: discreta, é a minha palavra favorita e tem as quatro letras do meu nome. Numa alcoolizada noite académica Alfredo não se esforçou mais. Não se podia pedir-lhe muito, tal era o seu estado. Naquele momento estava a simpatizar com a rapariga. Aquele desafio motivava-o a permanecer ali mais um pouco, até desvendar o mistério, sem lhe fazer qualquer pergunta, verificando quanto tempo demoraria o jogo.

            - Rita, chamo-me Rita. Alfredo sorriu. Malditas palavras cruzadas que lhe bloqueavam o pensamento. Ninguém lhe tinha dito qual a letra inicial. Achou piada à forma arrojada de Rita se apresentar. Apesar do seu estado alterado, focou a cartola dela, comum naquelas noites universitárias, não se recordando da respectiva cor. Por ali se demorou mais um pouco, ria-se das conversas da Rita. A reciprocidade acontecia, Rita estava encantada. De tal forma, que aqueles que a acompanhavam e que Alfredo não conhecia, sabendo apenas que com eles estava uma irmã de Rita, perceberam que estava a acontecer algo engraçado com a amiga e trataram de simpatizar com ele. Entre mais cerveja, menos cerveja, Alfredo foi assimilando o contexto em que estava envolvido, não se recordando como tinha iniciado contacto com aquele grupo.

            Rita repetiu, a minha palavra preferida é discreta… e é o que eu gosto de ser. Depois da advinha nas apresentações, Rita demonstrava as suas preferências quanto à forma de estar. A Alfredo agradava-lhe, sempre procurou vencer a timidez mas, como não conseguia, tinha dificuldades em relacionar-se, evitando uma vida social activa, preferindo recolher-se em recatados momentos de pouca confusão.

            A folia da noite académica prosseguia, com um qualquer artista cantando em cima do palco e uma série de estudantes a repetirem o exaustivo refrão, encenando danças colectivas, em abraços de grupo com muitos elementos. Muitos deles não mais se soltavam, para não correrem o risco de cair e ficarem pelo chão o resto da noite, até acordarem, ou serem reconhecidos por um qualquer colega, um pouco mais sóbrio. Alfredo procurava não agravar o seu estado alcoólico, para não causar má impressão. A companhia de Rita era desafiadora, ainda por cima, o facto de ser finalista de um curso universitário, obrigava Alfredo a pensar em ter um comportamento mais sóbrio. Preocupações da sua educação e duma vida sem relações sérias nos últimos meses. No entanto, não recusou nenhuma cerveja que lhe passou pelas mãos, vendo-se ele próprio obrigado a comprar algumas para retribuir a generosidade.

            Entretanto, Rita voltou a dizer o quanto gostava de ser discreta. Alfredo ouviu novamente com um sorriso e ficou pensativo. Ele naquele momento, não conseguia perceber porquê mas, algo estava errado ali. Falou com dois ou três dos seus acompanhantes, para perceber quem era quem, o que estudavam, onde dormiam, ou melhor, onde tinham residência, para ganhar alguma afinidade com o grupo, retribuindo a conversa com os seus dados, estudante de história, finalista, embora pouco dado a rituais académicos, a viver em casa de familiares.

            Alfredo tentava perceber melhor Rita, em que estado se encontrava. Se estava bêbada como ele, ou estava apenas a defender-se. Numa ida tipicamente feminina de duas irmãs à casa de banho, Alfredo ouviu de novo aquela frase, que já caracterizava a noite de Rita.

            Aproveitando o afastamento das duas raparigas, Alfredo prontificou-se a ir buscar mais cerveja às distantes bancas de venda. Olhou para o rio e sorriu. O contra-senso de Rita fora subtilmente compreendido.

            Alfredo eliminara as suas ilusões. Levantou a sua cerveja e já não voltou para junto do grupo.

 

(a publicar dia 12/11/09)

             

 

terça-feira, novembro 03, 2009

Direito à diferença

Direito à diferença

 

            Entrei na idade adolescente na primeira metade da década de 80. A sociedade portuguesa vivia na ressaca do seu recente passado. Contavam-se histórias do anterior regime; da guerra colonial; da revolução de Abril e anos consequentes; do regresso de África.  

            O presente não existia.

            A juventude vivia sobre o espectro da igualdade. A moda colectiva imponha-se e qualquer jovem ambicionava usar calças de ganga, botas “de celeiro” e um casaco de penas, assemelhando-se no tronco ao logótipo da conhecida marca de pneus franceses.

            Os interesses tendiam para o colectivismo. A audição de música suportava-se num programa semanal de televisão, que impunha uma lista de vendas, com a exibição dos vídeos, dos Singles e Lps mais vendidos. A música de qualidade tinha sempre como referência o passado: grupos que já não existiam e a ícones, entretanto, falecidos.

            Havia a rádio - programas alinhados com esse som mais comercial e outros mais de autor, preocupados em divulgar novas bandas, novos sons, novos caminhos.

            Eu fui por aqui.

Descobri no jornal Blitz uma espécie de top alternativo, com o título de “lista rebelde”. Adorei o nome. Referia-se a um programa chamado “Som da Frente” era publicado no jornal, ao lado da lista do top televisivo e assim passei a conhecer uma série de grupos, entretanto esquecidos: Shierkback, The Chameleons, Scritti Polliti, The Cassandra Complex, Love & Rockets, Anne Clark, Propaganda (tendo assistido ao seu concerto em Cascais em 1985). Não apenas grupos desconhecidos do grande público mas, outros que perduraram no tempo como: The The, Bauhaus, Echo & Bunnymen, New Order, The Smiths, Talking Heads e os próprios U2, entre outros, não sendo o propósito deste texto enumerá-los exaustivamente.

Era autor desse programa António Sérgio, falecido no passado dia 31. Divulgava pelos anos 80, grupos de forma pioneira. Um precursor de estéticas musicais. No intróito do programa reclamava  o seu direito à diferença. E por essas e por outras, em idade adolescente, passei a usar sapatos pretos e nas estações da chuva ou do frio, as inevitáveis gabardinas ou os sobretudos de tons escuros.

Cruzei-me com ele, pelo menos uma vez. No Rivoli, assistia na primeira fila ao concerto dos norte-americanos Suicide, quando ouço ao meu lado, no intervalo de duas músicas, a sua voz meio cavernosa e bem característica. Sempre a incentivar os dois músicos em palco, reconhecendo as músicas e cantando parte delas, António Sérgio abandonou a plateia, perto do final, quando em palco, Alan Vega simulava uma cena escabrosa de sexo. A sua saída indignada serviu para me aperceber que afinal Ian Dury, que anos antes tinha cantado “Sex, Drugs & Rock’n’Roll”, estava enganado. Sem qualquer tipo de moralidade, serviu-me o exemplo, para saber distinguir os limites da trilogia e ouvir muita música, sem enveredar pelo consumo de qualquer substância.

Neste Verão, assisti à sua passagem pelo programa “5 para a meia-noite”. Entrevistado por Fernando Alvim, reconheci-lhe a graça de outrora, a rebeldia, o gosto pela independência, a vontade de divulgar, de ousar chocar, sem ofender.

Conta-se que quando perguntavam a António Sérgio se o seu gosto pela música não o levaria a tocar algum instrumento, ele referia que tinha em casa um baixo eléctrico, sem o respectivo amplificador, do qual sabia tocar apenas 3 notas. Não me lembro se as notas eram de qualquer música em especial, ou se, três notas soltas. Gostava de acreditar que as três notas pertenceriam a “Bela Lugosi’s Dead”, em jeito de homenagem à noite em que faleceu.

 

(a publicar dia 04/11/09)

quarta-feira, outubro 28, 2009

19981 Eleitores

            Em Março do presente ano, o jornal labor anunciava o aumento do número de eleitores em S. João da Madeira, ultrapassando-se a barreira dos 20 mil inscritos. Em concreto, de acordo com o Mapa n.º 6/2009, publicado em Diário da República, 2.ª série — N.º 43 — 3 de Março de 2009, a 31 de Dezembro de 2008 existiam no concelho 20.272 cidadãos em condições de exercer o seu direito de voto. No artigo dessa edição do labor, assinado por Anabela S. Carvalho, explicava-se a evolução do aumento anual de eleitores: entre 2005 e 2007 - cerca de 1% e entre 2007 e 2008 - o aumento atingiu os 5%, o que foi justificado pela nova lei de recenseamento, automatizando a inscrição na base de dados eleitoral, visando, sobretudo, jovens com mais de 18 anos, que apesar de maiores tardavam em recensear-se.

            Nas eleições ocorridas já neste Outono, o site com resultados eleitorais da Direcção Geral da Administração Interna (http://www.legislativas2009.mj.pt) apresentava para o concelho de S. João da Madeira, para as eleições legislativas de 27 de Setembro, 20.068 inscritos. Quinze dias decorridos, para as eleições autárquicas, o mesmo site indicava um novo valor, passando a constar para este concelho 19.981 eleitores.

            Se nos sustentarmos nos relatos dos jornais locais a seguir a cada eleição, verificamos no labor para as legislativas, a apresentação de resultados suportados em 20.068 eleitores e em O Regional, para as autárquicas, refere-se à existência de 20.081 eleitores.

            Minimizando e relativizando qualquer erro de impressão, ou de cálculo aritmético, ou de indução - pelo facto inesperado de se ver reduzida a bitola dos 20 mil - importa aqui realçar a diminuição de eleitores verificada no presente ano.

            Em nove meses, o concelho viu-se amputado em 291 cidadãos, correspondente a menos 1,43%. O mais estranho é que entre as últimas eleições, ou seja e reforçando, num intervalo de quinze dias, o concelho perde 87 eleitores.

            Este período anómalo de decréscimo será a evidência da aplicação da nova lei eleitoral incorrectamente? O crescimento de 5% do número de eleitores estaria inflacionado, falhando o processo automático de recenseamento? Ou pelo contrário, assistiu-se neste ano em S. João da Madeira a uma emigração eleitoral? Estas são algumas perguntas que se podem formular, atendendo aos dados divulgados pela Direcção Geral da Administração Interna (DGAI). Provavelmente, poucas serão as explicações oficiais, para a barreira dos 20 mil eleitores, afinal não ter sido ultrapassada. O processo automático de recenseamento, os óbitos e as mudanças de residência esclarecem certamente todos os números. Todas as dúvidas.

            A consequência da ultrapassagem dos 20 mil eleitores, além de envolver maior transferência de verbas para a junta de freguesia – apenas um pouco mais, ressalve-se -, permitiu à Assembleia de Freguesia sanjoanense passar a eleger mais seis membros, de acordo com a Lei n.º 169/99 de 18 de Setembro.

            Segundo os Artigos 5º, 5ºA, 7º e 8º da Lei Nº11/96, de 18/04 desse ano, ficaram estabelecidos os abonos e remunerações dos membros da junta de freguesia, tendo como último escalão as freguesias com mais de 20 mil eleitores. Isto significa que os eleitos para uma freguesia deste escalão recebem mais 3% do que os de uma freguesia com menos de 20 mil e mais de 10 mil eleitores.

            É evidente que os dados oficiais da DGAI devem ter partido de pressupostos errados, só que deveriam ter sido prontamente corrigidos pela respectiva comissão recenseadora, a bem da clareza política.

             No futuro espera-se outro tipo de cuidado, de forma a salvaguardar de qualquer suspeita os eleitos para estes órgãos autárquicos.

            Obviamente, tal suposição não é intenção deste meu texto.

 

(a publicar dia 29/10/09)

quarta-feira, outubro 21, 2009

Badaladas

            Lá por onde durmo, o altifalante de uma das capelas, imitando um sino, interrompe o silêncio, indicando o horário do dia. Emite som todas as meias horas, das 7 da madrugada às 22 horas. Estas badaladas enquadram-se perfeitamente no bucolismo campestre reinante. Por estes dias, últimos da hora de verão, o primeiro toque matinal com o toque mariano, serve para acordar um estremunhado e hesitante galo, que ao ver tudo escuro à sua volta, desconfiado cacareja a alvorada.

            Quem vive nas imediações de uma igreja, aprende a escutar o sino.

            Desde pequeno habituei-me ao toque do sino da Capela Santo António. Acompanhou-me na atenção prestada nas salas de aula da escola primária, ali no Jardim do Sol. Nas minhas brincadeiras em casa, nas traseiras da Rua da Liberdade, ou mesmo em casa de amigos, estava dentro do alcance sonoro do sino. Mesmo no seu adro, passei horas a brincar, chegando a jogar à bola, embora sem nenhum pormenor digno de apontamento, ou seja, um apontamento sem qualquer importância. Mais sério foi sair dali na procissão, num domingo de Maio, até ao pavilhão, para a sua enchente anual de crianças a perpetuar a fé cristã.  

            Na adolescência, com a mania do “homem livre”, optei por tirar o relógio do pulso. Se na escola, a sucessão de toques impunha o horário, no tempo livre, muito dele passado na Praça Luís Ribeiro, as espreitadelas ao relógio da Capela eram inevitáveis. E se o relógio não estava visível, com ouvido habituado desde criança, bastava contar as marteladas do sino. Permanecíamos horas na Praça, a passar o tempo. Com a ilusão de que éramos pioneiros, que jamais outros jovens ali tinham estado com as mesmas ideias, a mesma vontade. E a maior baboseira era prever que, depois de nós, a Praça nunca mais seria a mesma.

            Fiquei horas e horas de domingos, do mês de Julho, alguns de Agosto e menos de Setembro, enquanto estudava preparando os derradeiros exames da Faculdade, em silêncio, com a ideia da cidade estar vazia, a banhos. O estudo por vezes consistia na aplicação de fórmulas, que atendendo à mecanização dos exercícios, poderiam ser acompanhados na audição de qualquer música – as preferências ficavam muitas vezes para os Talking Heads e o seu arranjo mais que perfeito The Lady don´t mind (fica aqui a referência, para puxar o saudosismo). Outras matérias exigiam silêncio. O passar das horas era sentido pelo tocar do sino. Só que nesses dias… da Praça Luís Ribeiro começavam os testes de som para o espectáculo nocturno. Irremediavelmente escutava: som, som, experiência, um, dois, som! Vezes sem fim até perder a paciência e a capacidade de concentração.

            Dos outros sinos da cidade, recordo-me do da Capela do Parque, ouvido nos dias de Julho, enquanto participante nos Campos de Férias aí ocorridos, ou então nos dias com forte vento de sul, que vim a aprender ser motivo para alteração climatérica, tendo como resultado a maçadora chuva. Da Igreja Matriz, o inquietante dobrar dos sinos sobrepõe-se a qualquer outra recordação de toque. Das restantes capelas não tenho lembranças. Aliás, o chamamento associado ao sino, há muito deixou de me interessar.

            Um destes dias estive uma tarde de fim-de-semana no centro. Janela aberta virada a norte para a Praceta Júlio Dinis e voltei a ouvir as badaladas do sino da Capela Santo António. Fiquei com a ideia que o toque estava duplicado a cada quarto de hora mas, sentir de novo o silêncio urbano, ouvir aquele som do passado, fez-me sentir tão tranquilo, que adormeci.

 

 

(a publicar dia 22/10/09)

 

terça-feira, outubro 13, 2009

A frieza dos números

            No passado domingo, os resultados eleitorais das eleições autárquicas em S. João da Madeira seguiram a tendência nacional da bipolarização partidária.

            Antes do dia 31 de Julho já havia dois tipos de candidaturas partidárias. CDS-PP, CDU e BE apresentaram os seus cabeças de lista aos respectivos órgãos autárquicos antes de férias, sobretudo, antes da paragem para descanso das redacções dos jornais locais. Por seu lado, PS e PSD preferiram manter os eleitores em dúvida, divulgando apenas o candidato à Câmara Municipal, até aquela data.

            Estas estratégias tiveram consequências ao nível da homogeneidade dos resultados. Nas três eleições desta semana, a variação dos partidos menos votados oscilou pouco, conforme se pode ver de seguida, apresentando-se os valores pela importância do órgão autárquico: BE – 2,66%, 4,32%, 4,21%; CDU – 5,76%, 6,29%, 6,61%; CDS-PP - 7,15%, 8,13%, 8,52%; Por força política, o intervalo de variação foi de 1,5 a 1,8%, com tendência para ir aumentando à medida que o grau da eleição diminuía (com a excepção do BE, que ao assumir como objectivo a eleição de um deputado municipal, condicionou o seu resultado).

            Nos partidos ditos da bipolarização houve resultados diferentes. PS acompanhou os partidos anteriores com o número de votos a aumentar por eleição de órgão autárquico, tendo um intervalo de variação de 3,9%, ou seja, 26,39/%; 30,12%; 30,3%, respectivamente para Câmara Municipal, Assembleia Municipal e Assembleia de Freguesia. Por seu lado, o PSD teve uma intenção de voto diferente: 55,95%, 48,74%, 47,63%; o que significa um intervalo de variação de 8,3%, em sentido contrário ao dos restantes partidos.

            As consequências práticas da diminuição do número de votos do PSD para os órgãos autárquicos não executivos não são nenhumas. A estratégia delineada por Castro Almeida funcionou plenamente. Mesmo a aposta, inerente na exposição do candidato relativamente ao restante partido teve algum significado no número de votos obtidos, só que os 1.000 votos a menos para as eleições das Assembleias, foram ainda suficientes para manter as maiorias nesses órgãos autárquicos eleitos.

            Do lado do PS, ao ousar concorrer às eleições autárquicas, utilizando a mesma estratégia do PSD, uma candidatura centrada no cabeça de lista à Câmara Municipal, correram-se riscos demasiado grandes. O primeiro seria a comparação do perfil de Pedro Nuno Santos com o de Castro Almeida. Obviamente, ponderando-se a experiência individual na política nacional e o currículo de cada um na política local.

            Sendo certo que os resultados finais de ambas as forças são extremamente elucidativos, convém não esquecer a tal variação de 3,9% de votos, para cada órgão autárquico. Os eleitores do PS penalizaram, ou não entenderam, a estratégia montada por Pedro Nuno Santos. Para a Câmara Municipal, o PS teve quase menos 500 votos do que na eleição para a Assembleia Municipal. O mesmo acontecendo para a da Assembleia de Freguesia.

            Considerando que o PS conquistou mais um vereador, igualando neste capítulo resultados obtidos em 1989, 1993, 1997 e superando os desaires de 2001 e 2005, digamos que foi cumprido o serviço mínimo.

            Comparando com 2005, o PS aumenta a sua votação. Conseguiu captar mais alguns dos votos dos seus simpatizantes, sobretudo, dos eleitores do concelho que votam neste partido nas eleições legislativas e quando se esperava que, o apelo de comiseração inerente pelo resultado da sondagem publicada no labor, tivesse como consequência uma maior votação na aposta feita pelo partido, o escrutínio colorido das urnas veio apurar o contrário.

            Prevaleceu o voto de honra.  

quarta-feira, setembro 30, 2009

A evidência do cachucho

            Na sexta-feira passada, Pedro Mexia, conhecido escritor e comentador nacional, iniciou no seu blogue – Lei Seca - a justificação da sua intenção de voto do seguinte modo: “Podia glosar José Mário Branco e dizer que voto à esquerda moderada nas sindicais, voto no centro moderado nas deputais e voto na direita moderada nas presidenciais. Não bate totalmente certo, mas ficam com uma ideia, e além disso soa bem (…)”.

            Sempre esperei citar o cantor portuense, ao longo destes anos de colaboração com o labor. Acreditei que ao fazê-lo, iria derivar para um qualquer assunto proclamado nessa música indescritível chamada FMI. Evocar “Distingue bem o Mortimor do Meirim” ou então, “Marrazes, Marrazes”, “Lourosa, Lourosa”, poderiam servir para descobrir o que é feito de António Medeiros (treinador de futebol da década de 70 do Estoril, Belenenses e mais tarde do Amora) ou para compreender as idiossincrasias duma população, ávida de democracia, para fechar estradas e protestar por causa dos resultados do futebol.

            Não se encerram nestes capítulos as singularidades da letra da canção referida, que começava por comparar o cachucho ao lagostim.

            A menção à divisão de voto nos vários actores do espectro político, permanece actual no ideal português. Cada eleição, um sentido de voto. A famosa frase proferida por um ex-presidente da República: “Os Portugueses não gostam de colocar os ovos todos no mesmo cesto”, é ainda hoje, a melhor forma de definir o conceito de equilíbrio democrático tão ao nosso jeito.

            Os resultados nacionais destas eleições legislativas de 27 de Setembro, quando se cruzarem com os das próximas eleições autárquicas de 11 de Outubro serão a evidência do desapego de grande parte dos Portugueses à ideologia e fidelização partidária. (O nível de abstenção começa a demonstrar o abandono dos eleitores à causa democrática, muito embora, esse seja assunto para outro tipo de considerações). Por agora, mantendo-me dentro do tema da harmonia popular, veja-se as preferências dos eleitores de S. João da Madeira ao longo das várias eleições:

a) Nos últimos 25 anos, nas eleições legislativas de 1985, 1987, 1991, as maiores votações pertenceram sempre ao PSD. A partir de 1995, o PS ganhou sucessivamente as eleições legislativas nas urnas colocadas em S. João da Madeira (1995, 1999, 2002, 2005, 2009).

b) Durante esses anos, o CDS venceu sempre às eleições autárquicas (1985, 1989, 1993, 1997) até à passagem de testemunho ao PSD (vencedor em 2001 e 2005).

c) Pelo meio houve uma série de eleições europeias e presidenciais, com resultados diversos, conforme o tipo de eleição e os candidatos concorrentes que pela sua especificidade, não reportarei os resultados.

            Esta tendência de voto, historicamente e maioritariamente repartido por três partidos e com resultados originando vencedores diversos, prova que o voto dos eleitores locais não obedece a nenhuma estrutura partidária. Aos votos militantes, acresce-se por eleição centenas de votos flutuantes, produzindo os resultados eleitorais atrás referidos.

            Determinar e estudar quem são esses munícipes oscilantes, quais as suas motivações eleitorais, percebendo o seu enquadramento social, seria importante e determinante para quem ambiciona estar na política local e procura captar votos. Uma análise importante podendo retratar esses eleitores locais, à semelhança dos estudos nacionais que definiram o “centrão”.

            Podemos concluir que a lógica dos resultados advém da independência dos eleitores. A motivação para o voto em cada eleição escapa ao controlo da militância. Se uma determinada concelhia pretender reclamar a intenção de voto dos eleitores locais, corre o risco de na eleição seguinte, normalmente de âmbito diferente, cair no ridículo, pois os votos poderão fugir-lhe.

            A sensatez do universo dos eleitores é a prova da sua sabedoria no exercício da democracia.

 

 

(a publicar dia 01/10/09)

quarta-feira, setembro 16, 2009

Adeus ao Verão

            Em Setembro de 1989, na Praça Luís Ribeiro, a Associação Estamos Juntos promoveu um espectáculo com artistas locais. A iniciativa começou de manhã, com uma prova de atletismo, em simultâneo com a realização de um painel, por vários pintores da região. De tarde e até à noite, passaram pelo palco uma série de músicos locais, além de grupos de dança e de uma peça de teatro, promovida para o efeito. Por se realizar na passagem da estação, o espectáculo foi designado de “Adeus ao Verão”.  

            Evocar este acontecimento, precisamente vinte anos depois, serve para recordar a ousadia da organização em promover um alinhamento diversificado, com momentos de grande qualidade sonora, numa época em que os concertos nesse palco eram escassos, quase sempre com artistas aclamados e sobretudo, com muita assistência, enchendo semana após semana, a Praça.

            Já neste século foi organizado um evento semelhante – Raízes – com meios técnicos ajustados aos tempos actuais e com uma maior facilidade de recrutamento, reconheça-se, como resultado da formação ministrada ao longo dos anos, pelo aparecimento de novos valores e pela aposta de vários habitantes locais em esforçadas carreiras artísticas.

            Tal como o “Adeus ao Verão”, este evento não teve continuidade.

            É certo que durante o ano, nos novos palcos entretanto surgidos pela cidade, vários concertos e várias actuações são promovidas com artistas locais. O ciclo “Musicatos”, o “Festival da Juventude”, a “Cidade no Jardim”, entre outros, promovem essas actuações e provavelmente é difícil encontrar agenda e vontade em organizar um evento específico, destinado a impulsionar a divulgação dos artistas locais, nas mais variadas especialidades de artes de palco e não só.   

            A cultura foi aposta forte na cidade nos últimos anos e pelos projectos apresentados, continuará a receber grande atenção, devido à construção de arquipélagos culturais na cidade. Durante vários anos a política cultural esteve vocacionada para o apoio à formação, com o Centro de Arte e a Academia de Música a serem o rosto mais visível dessa vontade, através das suas aulas e claro, pelas respectivas exposições, concertos ou concursos de Piano, como o referenciado “Florinda Santos”. O posterior aparecimento do Museu da Chapelaria e dos Paços da Cultura – com peças de teatro, concertos em ritmo mensal - permitiram diversificar o empenho da autarquia, enquanto agente promotor de cultura. A isto junte-se as novas iniciativas dinamizadas, algumas mencionadas no parágrafo anterior, mais outras como a insistente “Poesia à mesa” e teremos o retrato cultural da cidade.

            Apesar de todo o esforço, é muito reduzida a importância de S. João da Madeira no panorama nacional em todo este domínio.

            Cientes disso mesmo, os actuais autarcas lançaram-se à obra. Dois avultados investimentos estão previstos. O primeiro, já com mais de dez anos, a reconversão do Cinema Imperador, deverá ficar concluído no próximo ano. Apresentado durante anos como o espaço capaz de “alavancar” o nome de S. João da Madeira nos meios culturais, não terá tempo de ser consolidado, absorvido e assimilado pela população, pois um novo projecto - a reconversão da antiga Oliva - tende a ofuscá-lo.

            Esta sucessão de anúncios de novos espaços culturais, retirando importância aos existentes, aos inaugurados recentemente e àqueles que a curto prazo deveriam ficar operacionais, revela alguma descoordenação e sobretudo, uma falta de conhecimento sobre os hábitos culturais da população da cidade.

            Bem, é ainda Setembro, o Verão termina na próxima semana. Só depois será Outono.  

 

 

(a publicar dia 17/09/09)

quarta-feira, setembro 02, 2009

Da tradição ao vazio

            A actual dicotomia entre a tradição e a modernidade na sociedade Portuguesa não é original. O nosso país tem sofrido, ao longo dos vários séculos, com as duas visões antagónicas.

            A história assim o relata.

            A literatura também e na poesia de Camões, a figura do “Velho do Restelo” ficou para sempre eternizada como símbolo da oposição ao progresso.

            Infelizmente, a menção à alegoria camoniana banalizou-se - na argumentação política, qualquer posição tida como discordante duma maioria, relativa ou absoluta, é prontamente rotulada dessa forma, evitando-se a procura de melhores razões. Neste particular, é bom referir, entra-se facilmente na contradição dos dois pólos de discussão, mediante o número de votos obtidos numa determinada eleição. É usual vermos defensores da tradição a transformarem-se em arautos da modernidade e vice-versa.

            Em S. João da Madeira, a conjugação destes dois vectores, a tradição e a modernidade, conheceu vários momentos. Em geral, a modernidade tem-se sobreposto ao lado conservador. Uma perspectiva que tem fortalecido a identidade da localidade, quando comparada com o desenvolvimento dos concelhos vizinhos e em particular com as suas cidades - sede.

            A busca incessante da modernidade tem conhecido, nos últimos anos, interessantes projectos: a tentativa de cobertura de internet sem fios pela cidade; o Centro Empresarial e Tecnológico; o futuro Creative Factory Oliva, ou para não ferir susceptibilidades, a intitulada Aldeia Criativa. Não se pode esquecer também a procura constante em tornar mais airosas várias artérias da cidade, bem como, o restauro de alguns equipamentos municipais tornando-os mais apelativos.          

            Nos últimos anos um terceiro vector sobrepôs-se, a qualidade de vida. Medida, quantificada e excelentemente posicionada, obrigou a alterar o discurso oficial da cidade, passando-se a utilizar este argumento como cartão-de-visita.

            Tudo isto, conhecido e assimilado por todos, juntamente com o novo centro de compras e de lazer – o shopping 8ª Avenida, mudaram a face da cidade mas, não produziram a desejada melhoria económica, nem tão pouco o crescimento demográfico esperado.

            O emprego continua a estar suportado nas indústrias tradicionais.

            Numa cidade produtora de calçado e de componentes para a indústria automóvel, essencialmente em regime de mão-de-obra intensiva, é curioso que os artigos produzidos, com maior visibilidade, sejam oriundos de processos antigos e exclusivos no nosso país: feltros para chapéus e lápis.

            Compreender este paradoxo é projectar a arqueologia industrial da cidade para a modernidade. Esta é a tarefa mais importante daqueles que se propõem agora a ser eleitos. Não renegar o passado laborioso da cidade, é honrar a capacidade empreendedora dos seus empresários e o esforço colectivo dos seus trabalhadores.             

            No âmbito económico, não podemos esquecer o comércio de rua. Sem rodeios e directamente na jugular, numa das páginas do último livro de Armistead Maupin, o narrador tem o seguinte desabafo: “ (…) Há um pequeno centro comercial óptimo à saída de todo o lado. Já só há centros comerciais! (…)”. Projectar mais grandes superfícies, shoppings e afins para locais com boas acessibilidades e retirados da zona habitacional será uma tendência, a fazer fé no escritor norte-americano, global. A consequência é esvaziar as ruas de peões, permitir a rápida circulação de automóveis, o que permitirá alcançar rapidamente as zonas periféricas.

            As cidades tornam-se impessoais.  

            A fazer fé na escolha de alguns partidos políticos, optando por divulgar os seus candidatos através de grandes cartazes, colocados em locais dirigidos essencialmente para automobilistas, em S. João da Madeira o processo é irreversível.

 

 

 

(a publicar dia 03/09)

quinta-feira, julho 30, 2009

Preocupações sociais

            “Visito, poto, cibo, redimo, tego, colligo, condi”. Do latim, a referência aos sete deveres de caridade. Para enquadramento dos leitores, sirvo-me da tradução de Luísa Benvinda Álvares no livro de David Camus “A Demanda do Cavalheiro Morgennes”: “ (…) visitar os doentes, dar de beber a quem tem sede, alimentar quem tem fome, salvar os cativos, vestir os nus, acolher os estrangeiros e fazer os serviços religiosos em honra dos defuntos (…) ”.

            O mote dos mesteres das boas acções cristãs poderá ajudar-nos a perceber melhor as divergências entre os partidos locais no que concerne à existência, ou não, de acção social.

            Ambos os lados têm razão, embora tenham perspectivas diferentes para os mesmos problemas. Sucintamente, a oposição, mais pelas palavras dos membros do PS, acusa a inexistência de aplicação de políticas socais. Por seu lado, o partido de poder, o PSD, rebate com uma série de apoios concedidos aos mais desfavorecidos.

            Os militantes do PS, apoiados pelas políticas sociais desenvolvidas pelos sucessivos governos do mesmo partido, defensor do conceito do “Estado social”, pretendem ver consagradas na autarquia políticas estruturadas de apoio social.

            A tudo isto, o PSD local, sem qualquer experiência significativa do seu partido nesta área, enquanto governo nos últimos catorze anos, tem pouco onde se suportar. O dilema liberal de redução da importância do Estado está sempre presente no discurso deste partido, obrigando os seus autarcas a recorrerem ao artifício da caridade, concedendo vários e avultados apoios, embora fazendo-o de forma desestruturada e pontual.

            Sem entrar em mais pormenores e porque socialmente a época é de crise conturbada, o período de pré-campanha eleitoral pode ser óptimo para o lançamento de várias promessas de apoio aos mais desfavorecidos.

            É normal.

            Em todos os quadrantes políticos, os programas eleitorais procuram soluções para apoio aos desprotegidos.

            No léxico dos partidos políticos locais, deveria surgir algo mais do que as habituais promessas de auxílio aos grupos sempre visados: os idosos, as pessoas com muito baixo rendimento e, neste ano difícil, os desempregados.  

            É necessário falar-se abertamente dos excluídos – pessoas de faixa etária entre os 40 a 60 anos, com poucas habilitações curriculares e profissionais – para os quais, a mudança no tipo de emprego existente na cidade, os deixou numa situação periclitante e pouco sustentável. Para estes a inclusão social deve prever a rápida reconversão profissional, em parceria com o Instituto de emprego e Formação Profissional (IEFP) local, sem tiques de caciquismo, nem afrontamentos ridículos.

            Sem ser exaustivo existem outros assuntos, que deveriam ser colocados na “ordem do dia”.

            A promoção da igualdade de género não pode ficar apenas patente nas listas de candidatos eleitorais, embora ao abrigo da lei da paridade. O associativismo neste particular deve ser promovido e incentivado, de forma que na vida pública não haja restrições à igualdade de oportunidades para homens e mulheres.

            Este assunto permite recordar o elevado índice de violência doméstica no concelho. Segundo o relatório anual de Segurança Interna de 2008, S. João da Madeira era o terceiro concelho de Portugal continental com mais queixas apresentadas. Se nos lembrarmos do indicador “Taxa de criminalidade”, que colocou S. João da Madeira em 4º lugar dos concelhos de Portugal, segundo dados de 2006 - embora nos remeta para questões de segurança, não deixa de ser a consequência de vários problemas sociais da cidade e freguesias vizinhas – verifica-se que do outro lado da “Qualidade de vida”, o aspecto da cidade é sombrio.

             Não posso terminar sem referir a desigualdade no acesso ao desporto. Nenhuma associação do concelho promove o desporto para pessoas e crianças com deficiência física. A marginalização social neste capítulo permite constatar que o estigma da “diferença”, ainda não favoreceu a integração destes indivíduos na vida da cidade.

            Aproveito as linhas finais para desejar boas férias aos leitores, prometendo retomar a partir de Setembro o contacto mais assíduo, a fim de manter viva a opinião e o direito de cidadania.

 

(publicado dia 30/07/09)

terça-feira, junho 23, 2009

Proveitos com a abstenção

            Em ano de três actos eleitorais, vários agentes políticos apelam à fusão de duas eleições num só dia. Para as últimas europeias, houve pressão para se antecipar as eleições legislativas para o mesmo dia. No actual momento, de indefinição quanto às futuras datas dos próximos actos eleitorais, surgem outras vozes solicitando a coincidência das próximas eleições. Os argumentos apresentados incidem sobre a forte poupança dum acto único. Este é o raciocínio mais conhecido e prevalece sobre os demais, camuflando uma série de jogadas tácticas, que visam confundir eleitores e retirar proveito em benefício partidário. Várias vezes, quem defende a fusão eleitoral, esconde manobras de candidatos e de facções partidárias, que se refugiam no alto valor de uma eleição para conseguir os seus intuitos, baralhando os eleitores com essa simultaneidade.

            A redução de custos nas eleições pode e deve ser conseguida.

            A eleição realizada no passado dia 7 de Junho custou 9,74 milhões de euros, segundo o Correio da Manhã, desse dia. Se traduzirmos este valor em termos de salários, corresponde a 21.645 salários mínimos nacionais. Caso se verifique, cada uma das próximas eleições a realizar-se em datas diferentes, teremos um custo estimado para o ano de 2009 a ascender aos 30 milhões de euros.

            É, convenhamos muito euro.

            Do valor apresentado para a eleição passada, apenas 47% são gastos com os membros das mesas de voto (4,65 milhões de euros, segundo o mesmo jornal). Cada pessoa destacada recebe 76,32 euros pelo dia de eleições. Isto significa que cada mesa de voto, com cinco membros, custa ao País 381,6 euros. Pelo quociente destes valores, ficamos a saber que foram montadas 12.205 mesas de voto, para um total de 9.562.141 eleitores.

            Para quem não sabe, cada mesa de voto deve corresponder a sensivelmente 1.000 eleitores de cada Assembleia de Freguesia. O facto do número de mesas ser superior à esperada proporção, justifica-se por algumas Freguesias terem muito menos que o milhar de eleitores.

            Se me seguiu até aqui, vai ver que os números seguintes são fáceis de entender.

            A crónica abstenção permite reduzir os custos das eleições.

            Siga-me.

            Nas últimas eleições europeias a ausência dos eleitores nas urnas ascendeu os 60% e em 2004, para as mesmas eleições, também. Não existe uma grande justificação para tal afastamento. Se desta vez se falou da chuva, em 2004 justificou-se com o sol, o calor e um grande dia de praia. Estas contradições climatéricas servem pouco como argumento. O desinteresse, mais a pouca idade dos abstencionistas, a falta de esclarecimento e o absentismo técnico, justificado com mudanças recentes de residência, óbitos, etc., são todos verdadeiros, mas explicam a parte e não o todo.

            Observe-se os números do absentismo das eleições realizadas nos últimos anos em Portugal: em 2006 – Presidenciais = 38,47%; em 2005 – Legislativas = 35,74%; nesse mesmo ano – Autárquicas = 39%. Este último valor permite concluir que a proximidade do eleitor ao eleito não é o principal motivo para se ir votar. Ou então, a conhecida centralidade do Estado é implícita no conceito participativo da população, ocorrendo mais às urnas nas eleições legislativas, por sentirem que a resolução dos seus reais problemas, são efectivamente atendidos pelo Governo central.

            Perdoem-me os entendidos em estatística por tamanha ousadia, nas três últimas eleições nacionais a “média” da abstenção foi 37,7%. Com estes valores, enraizados, injustificados como verificamos, é de se propor a revisão dos artigos que regem as várias Leis Eleitorais no que concerne à Mesa de Voto. No lugar de “sensivelmente 1000 eleitores” devia-se prever o mesmo número, mas de votantes, o que significava reduzir, pela estatística, em 35% o número de mesas de voto. No total teríamos teoricamente 7933 mesas, o que significava um custo com a totalidade dos seus membros de 3 milhões de euros. Só aqui conseguia-se uma poupança aos cofres do Estado de 1,6 Milhões de euros, por eleição.

            No ano de 2009, o custo com os membros das mesas de voto poderá ser 13,95 Milhões de euros. Para sermos realistas, nas eleições europeias, com o valor consagrado de abstenção, bastavam, para as filas não serem muito longas, metade das mesas de voto. Fazendo cálculo com base no valor histórico ou estatístico de votantes, poder-se-ia num ano eleitoral excepcional como o actual, poupar 5,6 Milhões de Euros (18%), libertando 980 pessoas por eleição, para outras actividades complementares nesses domingos.

            O mesmo se pode dizer dos boletins de voto: 12 milhões foram realizados para a última eleição, no que se traduz num custo aproximado de 300.000 euros. As contas são agora fáceis de seguir e embora os valores sejam mais baixos, sempre permitia poupar mais uns milhares de euros.

            Se algum dia a tendência da abstenção se inverter, passando a haver mais eleitores a votar, é só verificar os novos valores da abstenção, podendo-se ajustar as mesas e boletins de voto à real procura dos eleitores.

            Enquanto esta tendência se mantiver e o voto electrónico não for uma realidade, seria fácil reduzir os custos de um acto eleitoral, orçamentando-o de acordo com a participação dos Portugueses. Se assim se fizer, em próximos anos, a tentativa de fusão de eleições num só dia, terá que ser melhor justificada… a bem da democracia.  

 

(a publicar no dia 25/06/09)