sexta-feira, março 28, 2008

20 ANOS

As minhas recordações são mais antigas do que a idade atingida pelo Jornal Labor. Não posso, por isso, cair na tentação de, ao elogiar a longevidade deste periódico, repetir aquele lugar comum: aprendi a ler nas suas páginas.

A oportunidade oferecida foi precisamente outra, a possibilidade de escrever.

Se nos anos 90, elaborei textos monotemáticos, relatando as facetas da secção de xadrez da AEJ e posteriormente, servi-me do Labor - como carinhosamente é conhecido este Jornal - para divulgar comunicados e expressar pontos de vista enquanto Presidente de Direcção da referida associação, chego a esta importante data na vida do Jornal, na qualidade de colaborador assíduo.

A duração desta relação espelha essencialmente um facto extremamente importante, a abertura ao longo destes vinte anos, das várias redacções e da direcção do jornal à comunidade onde está inserido.

Em dia de aniversário, resta-me desejar ao Jornal Labor as maiores felicidades.


(a publicar no dia 01/04/08)

quarta-feira, março 19, 2008

Velhos hábitos

P. G. Wodewouse, autor de mais de cem livros, é conhecido como o mais brilhante escritor britânico do género cómico, do século passado. Da sua vasta obra, destacam-se os livros relatando as peripécias de Bertie Wooster, auxiliado pelo seu mordomo Jeeves. As suas aventuras por serem tão hilariantes foram adaptadas, passados quarenta anos, para uma série de televisão, precisamente Jeeves and Wooster. As principais interpretações foram protagonizadas, respectivamente por Stephen Fry e Hugh Laurie (este último mais conhecido do público pela sua encarnação em Dr. House, na série norte-americana com o mesmo nome).

O escritor britânico tinha uma capacidade de exposição formidável. O seu método de escrita era tão peculiar, que querendo expor num novo livro um acontecimento já relatado anteriormente, não se cingia a fazer uma referência bibliográfica. Por forma a situar os leitores na narrativa, pedia desculpa aos que já conheciam todos os pormenores descritos e apresentava um breve resumo, para os leitores que pela primeira vez tomavam contacto com as suas personagens. Desta forma, colocava todos no mesmo momento da história e continuava a descrever as confusões, em que normalmente envolvia o personagem Wooster. Com esta técnica, a vida de quem escreve uma sucessão de textos quer em crónicas, quer avulsos, seja em jornais ou noutro qualquer formato, fica facilitada.

Todo este intróito serviu para preparar os leitores para o tema que irei desenvolver.

Em tempos descrevi as minhas dificuldades em comprar água tónica. Como devem ter percebido, este relato não é totalmente inédito. Assim, aplicando a técnica atrás descrita e por forma a não incomodar os leitores que já leram esta passagem, abreviarei o mais possível no próximo paragráfo, o sucedido.

Preparava-me para beber um gin tónico numa sexta-feira à noite, depois de uma árdua semana de trabalho, quando deparei não ter água tónica em casa. Os restantes ingredientes não faltavam, apenas tinha acabado a água com quinino. Procurei nos cafés das redondezas e nada. Fui de porta em porta, obtive sempre a mesma resposta e dei por mim, numa grande superfície a comprar as garrafas de 20 cl de rótulo amarelo e letras pretas. Acreditei numa troca de hábitos em meios mais pequenos e que a água tónica, tivesse sido substituída pelas novas águas com sabores.

Posteriormente, durante as férias, exercitei por alguns lugares por onde passei a ingestão de tal bebida. Sendo em bares, o gin tónico lá me era servido, no entanto, tinha que aguardar um pouco, para diligenciarem a água tónica. Gin não faltava. Mesmo a marca de garrafa azul estava exposta, em lugar de destaque. Tónica é que estava sempre inacessível. Ou noutro balcão, ou nas arrecadações, se fosse o caso. Pensei sempre tratar-se de um problema de gestão de stock, em que a reposição momentânea não tivesse sido efectuada.

Há dias tive a prova que me faltava. Num local normal, de porta aberta ao público até depois da meia noite, quando pedi o obrigatório gin tónico, lamentaram informar-me que só tinham água tónica, o gin tinha terminado.

Compreendi estar perante um problema de geração. Afinal, as minhas suposições sobre hábitos urbanos em terras pequenas e a questão dos stocks não tinham sido problemas pontuais. Algo mais profundo tinha acontecido.

Os hábitos nocturnos, de quem maioritariamente frequenta os espaços abertos ao público alteraram-se. Aquilo que na minha geração era frequente, beber Gin Tónico, perdeu-se com o tempo.

Confrontei pessoas mais entendidas do que eu na matéria, ligadas à restauração e após alguma análise concordam.

Velhos hábitos que não nos tornam velhos de idade mas, identificam-nos.

Para cúmulo do exotismo indicam-me que existe uma mistura de Gin, pela apreciação de quem me informou divinal, apenas à venda numa determinada loja “Gourmet”.

Pelo menos em casa, desde que previamente se trate de aprovisionar os respectivos ingredientes, ainda se consegue beber em tranquilidade.

No meu caso, de preferência, acompanhando a narrativa de Wodehouse. Ambas em dose adequada, é claro. Sem excessos.

A propósito, aproveito para desejar uma boa Páscoa a todos os leitores.

quarta-feira, março 12, 2008

Satisfação

Dois estudos promovidos por duas entidades distintas, indicaram S. João da Madeira como um dos concelhos com maior qualidade de vida. As duas análises tiveram em comum o cruzamento de diversos dados estatísticos oficiais e diferenciavam-se na metodologia, pois o promovido pelo INTEC – Instituto de Tecnologia Comportamental –, baseou-se ainda em entrevistas telefónicas às populações locais.

Em ambos os estudos, este concelho ficou no pódio, i.e., nos três primeiros lugares, só tendo sido superado pelo concelho de Albufeira. Com este lugar no ranking nacional, vários foram os comentários, as interpretações e até sugestão de outros indicadores.

Houve quem preferisse não dar importância às conclusões de qualquer um dos estudos. Do rol de argumentos depreciativos não surgiu a normal visão redutora da função média: “se duas pessoas tiverem vencimentos anuais de 5.000 e 50.000 euros, em média auferiram 27.500 euros”; ou a mais conhecida: “se um fulano não comer uma refeição e o outro comer duas, em média ambos comeram uma e o desgraçado que ficou com fome, estatisticamente ficou satisfeito”. O cruzamento de vários dados estatísticos e a elaboração de rankings por domínios tratados, permite não se cair na tentação fácil de denegrir a análise estatística.

O facto das apreciações finais dos estudos terem sido semelhantes, confere idoneidade às metodologias utilizadas e sabendo-se que nove dos doze municípios financiaram o estudo do INTEC, em nada altera, na minha opinião, os resultados divulgados. Só seriam suspeitos se a amostra fosse menos homogénea e o ranking final colocasse, precisamente, os financiadores nas primeiras posições.

Com tudo isto, sabendo-se de todas as carências que existem na cidade, os problemas sociais incluídos, ligados obviamente aos dados “paradoxais” como bem englobou este Jornal na semana passada, o que ressalta dos resultados das entrevistas telefónicas é a satisfação global dos habitantes de S. João da Madeira.

Para os municípes deste concelho as áreas que funcionam menos bem são: saúde, ambiente, urbanismo, habitação, turismo, diversidade e tolerância. Em contrapartida, os aspectos positivos são: cultura; lazer; economia e emprego; ensino e formação; acessibilidades e transportes.

A felicidade é o grande trunfo da cidade. Subjectivamente, claro.

O trecho retirado do estudo do INTEC, segundo o Jornal Regional de 28-02-08 é o paradigma da análise subjectiva “(...) salienta a facilidade de mobilidade e curtos tempos de deslocação, assim como o fácil acesso a cidades como Porto e Aveiro, que disponibilizam equipamentos e serviços que escasseiam localmente, o que, segundo os autores do estudo, ajuda a explicar as boas avaliações dos munícipes nos domínios da saúde e educação e formação(...)”. Numa só frase, eis o resumo para a boa localização geográfica do concelho. Poderia evidenciar o paradoxo contido no texto transcrito, que elimina dois aspectos positivos do concelho mas, essa tarefa deixo-a para os leitores.

Voltando às preocupações da população, de todas as enumeradas, a eleita para análise pelo poder político foi friamente o turismo (ver texto “Turismo com nota negativa”, publicado no Jornal Labor de 06/03/08). Este desfasamento entre as dificuldades da população e a actividade política são a dura realidade nacional.

A satisfação dos Sanjoanenses é claramente elevada e distante do poder político municipal. Se verificarmos os domínios tratados classificados com nota positiva, nos recordarmos do Plano de Actividades da Câmara Municipal para o ano 2008, focados na capacidade de concretização do programa eleitoral do actual executivo municipal, ficamos sem palavras.

Estes documentos, os rankings divulgados podem ser criticáveis pelos indicadores eleitos, no entanto, retratam, pela abrangência de temas, a relação dos munícipes com os seus concelhos. Se alguns são demasiado cépticos, outros conformados e outros optimistas, os resultados obtidos, em especial, pelas entrevistas telefónicas permite obter-se uma análise social sobre a generalidade das suas expectativas.

Esse é o desafio para os próximos anos.

(a publicar dia 13/03/08)

segunda-feira, março 03, 2008

Táxi

Entrou no táxi já atrasado, pelo que teve logo de ouvir: “Estive quase para ir-me embora, se não fosse pela consideração que tenho por si, já tinha arrancado.”
Correu-me mal esta noite, foi a resposta ao taxista. Este olhou pelo espelho e logo reparou no lenço entre a mão e a cara, provavelmente a estancar uma ferida aberta.
Quer que o leve ao hospital? – perguntou. Prontamente respondeu: Ao daqui não! É melhor ao lá de baixo, fica a caminho do nosso destino habitual.

O taxista apesar de discreto, resmungou algumas palavras sobre o fecho de urgências dos hospitais. Passado uns metros fez a inevitável pergunta, da qual não queria obter resposta, sobre as urgências que afinal não fechariam. Assunto em voga na semana e que colocava em causa, todos os protocolos assinados. Enquanto o taxista dissertava a sua sabedoria sobre o assunto, o conduzido, embalado pelas palavras ouvidas e pelo andamento do táxi, reviu os acontecimentos da noite.

Seria uma noite normal de fim de semana. Para começar, o costume, uma partida de snoocker, seguida da viagem por táxi, frete combinado frequentemente, só com ida até ao casino, ceia e aqui variaria o programa: a sua condição de homem disponível e a vontade de passar momentos com corpos femininos, macios e perfumados, podiam-no reter numa noite em agradável companhia, ou então, o regresso solitário a casa, num qualquer carro de praça disponível.

Desta vez, não seria assim. O adversário nas bolas coloridas, era um daqueles chatos, batoteiros e conflituosos, ainda por cima familiar do dono do salão de jogos. A partida estava a correr bem, até que uma palavra mal medida, virou em ameaça. Daí até à violência física foi um pequeno passo. Levou uma cabeçada do energúmeno, mais um par de socos, ficando com a cara aberta e sem hipótese de defesa. Apoiado à mesa de jogo, olhou em redor à procura de um objecto para se defender e igualar o “combate”. Quando viu que o taco estava longe do seu braço, lembrou-se do filme “Guerra das Estrelas”, da saga dos Skywalker e pensou no poder da levitação. De repente, o taco estava na sua mão. Sem acreditar sentiu-se um guerreiro Jedi e investiu sobre o opositor. Um golpe aqui, outro ali, mais duas fortes tacadas e desembaraçou-se da situação criada. Uma voz disse-lhe para fugir, que o encobria. Percebeu ser de alguém que o tinha ajudado e atirado o taco naquela hora difícil. Mais aliviado, percebeu que a força não estava com ele.

O taxista expelia bairrismo por todos os poros. O tom de conversa não estava agradável... Decidiu interrompe-lo, precisava da sua ajuda no hospital. Explicou que teriam de representar, dramatizar mesmo, para conseguir dar entrada nas urgências, sem grandes questões. Ao taxista agradou-lhe a ideia de ludibriar o sistema nacional de saúde, uns penetras na urgência dos outros.

Como cliente agradeceu e pediu para esperar por ele. Esta noite voltava a casa, mal tivesse o curativo, que pagaria o que fosse preciso pelo tempo de espera, mais a viagem como se fosse para o destino previsto. O taxista ficou satisfeito, a vida não estava fácil, como já tinha dito várias vezes, àquela hora só poucos trabalhavam e ele próprio queria estar em casa.

Encostado no banco de trás, compreendeu o vazio da sua vida. Enganava-se no jogo nocturno, onde ganhava muito mais do que perdia. Esta pequena satisfação nunca lhe trouxe felicidade, antes pelo contrário. Separação. Visita do filho apenas de vez em quando. Uma vida desenraizada, sem qualquer ligação social. Só, no mundo.

Antes de chegar ao hospital disse ao taxista: o que é necessário é alargar a rede de urgências dos Hospitais Psiquiátricos. O condutor indignado tentou percebê-lo. Focou-o pelo retrovisor, para seguir as ideias do cliente, pedindo-lhe para se explicar melhor. Este continuou, pausadamente: ouvi-o atentamente e não percebo como se pode trocar um serviço de urgência por uma ambulância especial; como é que algumas populações ficam a aguardar a construção de novos hospitais, enquanto para outras são logo reduzidos os cuidados de saúde garantidos pelo Estado. Tudo isto é confuso, não se percebe o critério e deixa qualquer um baralhado. Mas, não pense que é por isso que falei nos hospitais psiquiátricos. Estou cansado de fingir. Se fosse fácil entrar num desses hospitais, seria para lá que iríamos agora.

Nota: esta estória foi originalmente publicada no blogue “Escrita Irregular”. Reeditar este texto, adaptando-o às circunstâncias actuais é uma justa homenagem a leitores, comentadores assíduos do recentemente encerrado blogue. A eles agradeço toda a atenção dispensada ao longo destes últimos 17 meses.

(a publicar no dia 06/03/08)