Em casa dos meus avós maternos, na sala de entrada existiam dois pequenos sofás, uma mesa de apoio e encostada a uma das paredes, uma estante de pequena altura, com livros em todas as prateleiras excepto na superior, onde pousados sobre o naperon permaneciam diversos retratos. Em duas paredes estavam afixadas mais fotos. A minha mãe, as suas seis irmãs e os dois irmãos fotografados em conjunto enquanto crianças e jovens, enquadrados pelos progenitores, ou numa série de retratos individuais. Além destes, fotografias de outros antepassados - falecidos muitos anos antes - preenchiam duas paredes. No canto oposto, conservava-se a homenagem do meu avô às suas opções políticas, como convicto monárquico tinha afixado o retrato dos últimos reis de Portugal: D. Manuel II, D. Carlos e D. Luís I.
Uma prima da minha idade, com várias temporadas de férias passadas naquela casa, apurava a sua vocação – muito mais tarde tornar-se-ia professora – e lançava-me desafios de perspicácia para eu perceber quem era quem em cada fotografia, sobretudo nas colectivas. As particularidades fisionómicas das minhas tias eram assim assimiladas. Os retratos da ascendência familiar demonstravam a minha pouca competência pessoal para fixar nomes e graus de parentesco com os vivos. Mais do que baralhar-me, serviam para me tranquilizar, o mundo dos mortos estava ali afixado.
O falecimento da minha avó paterna, Florinda, evidenciou-me a naturalidade da morte dos idosos. O castelo de cartas desabava de cima para baixo. Os mais velhos, os avós, morreriam primeiro e só muito mais tarde, depois de envelhecerem uns bons anos, é que se poderia pensar em falecimentos na geração dos nossos progenitores, a segunda camada do castelo. Na base estávamos nós, os pequeninos, cheios de esperança de vida.
O baralhar de cartas foi penoso.
A lógica da vida nem sempre foi respeitada, trucidando aleatoriamente quem menos se esperava e o luto foi surgindo.
Em família e não só.
Nomes, de quem se sentou ao meu lado na escola, ficaram gravados em lápides. A presença na última homenagem a amigos ou seus familiares, companheiros de várias fases da vida ou a simples conhecidos, fizeram-me adquirir a solenidade do momento.
Apresentar condolências, escutar o dobrar dos sinos, ouvir o eterno silêncio a ser quebrado pelo raspar das pás no chão, permitiram-me saber estar durante a funesta cerimónia, mesmo quando é a nossa vez de receber os sentidos pêsames, ou a carregar a urna do ente querido falecido.
Os anos passaram. Há quase vinte anos, a minha avó Maria deixou a casa a um dos seus herdeiros. As obras de conservação, de restauro do imóvel, não destruíram a sala de entrada. A renovação do mobiliário manteve o tipo e a quantidade, até a posição original ficou inalterada. Os livros estão agora atrás das portadas de um armário de meia altura. O desajustado naperon foi retirado. Por lá continuam as mesmas fotografias, enquadradas pela mesma moldura e na disposição em que sempre as conheci. As imagens dos três derradeiros detentores do trono de Portugal continuam a fazer companhia à restante família, numa eterna homenagem ao dono da casa, mesmo não havendo entre os seus descendentes acérrimos defensores do anacrónico regime.
Percorro o resto da casa. Outras fotografias representando a história da família, outrora colocadas pelos demais compartimentos, perduram nos mesmos locais. Acrescentaram-se mais, retratando as últimas décadas do século XX. Estas a cores, contrastando com as fotos da sala de entrada, todas do tempo da fotografia a preto e branco. Por ali me demoro mais um pouco. Continuo sem saber o nome, nem o grau de parentesco com os meus avós, dos antepassados retratados. Ao som das tropelias dos meus filhos, em brincadeira no piso superior com primos igualmente crianças, apercebo-me de um retrato que há quarenta anos não existia naquele espaço, uma fotografia de um tio falecido há quase nove anos.
De regresso ao convívio familiar medito sobre a minha descoberta. Atento às traquinices dos miúdos, exteriorizando a sua energia, tão característica nas incursões à aldeia da avó. O legado familiar vai-se transmitido.
Eis-me enraizado na segunda camada do castelo de cartas.
(a publicar no dia 25/11/10)