terça-feira, abril 24, 2012

Longevidade

                O desporto promovido pelas associações locais tem vivido sob o paradigma da formação.

Os clubes aproveitaram as significativas melhorias das condições de treino e de jogo, resultado dos investimentos municipais no complexo das corgas, posteriormente no pavilhão das travessas e mais tarde, na transformação do campo pelado no centro de formação desportiva. A maior capacidade das infraestruturas desportivas permitiu o aumento do número de praticantes. O recrutamento de técnicos, teoricamente melhor preparados, possibilitou a melhoria de resultados desportivos nestes escalões. O dirigismo rendeu-se às evidências e as equipas de jovens passaram a estar no topo nacional, ao contrário das suas congéneres seniores.

As competições jovens atraem assistentes à cidade. Hoje em dia, qualquer equipa visitante é acompanhada pelos respetivos progenitores e demais familiares. No último domingo de Março, pelas nove da manhã, fui assistir no centro de formação desportiva, a um jogo de futebol de juvenis C, entre a ADS e o Gondomar, já que nesta equipa joga um dos meus sobrinhos. Um jogo de treino. A assistência afeta aos visitantes fazia-se ouvir constantemente e provavelmente estava em número superior aos adeptos locais. Duas ou, no máximo, três dezenas é certo.

Não tenho outras experiências como assistente, em S. João da Madeira. A única comparação que posso fazer é com um jogo da presente época da Primeira Liga de futebol, em que o União de Leiria enquanto equipa visitante arrastou consigo 4 (quatro!) adeptos, com direito a área restrita, daí ser fácil contá-los.

Os dois exemplos servem apenas para evidenciar que o desporto, em idades de formação, é um meio mais eficaz de promoção de uma localidade. Além das dezenas de atletas que visitam a cidade semanalmente, arrastam assistência em número superior aos das equipas de escalão sénior. Seja em que modalidade for, arrisco sem pestanejar.

As dificuldades em consolidar o modelo desportivo da formação estão inerentes à duração do mandato de cada direção. É normal, nos clubes com mais visibilidade da cidade, a mudança de presidente e outros diretores, a cada dois anos. A pouca longevidade do exercício da gestão desportiva não permite solidificar os propósitos dos diretores e os sócios acabam por capitular, sem entender os objetivos a longo prazo.

Existe uma lacuna no modelo da formação. Aos dezoitos anos os jovens devem continuar a praticar desporto. A competir, tal como em idades inferiores, caso estejam interessados. O quadro desportivo é mais complicado a partir destas idades. Com as limitações no número de jogadores, os clubes não conseguem absorver, todos os anos, os maiores de 18. A rejeição atira muitos para outro tipo de complicações sociais, anteriormente impensáveis.

Só que isto não é apenas um problema das associações locais, antes pelo contrário. Aqui entra-se em outro assunto, na capacidade da autarquia de proporcionar uma vida saudável à maioria dos seus habitantes.

Tema para outra oportunidade.              

 

(a publicar no dia 26/04/12)

quarta-feira, abril 18, 2012

Crepúsculo

                Após a jornada laboral, enquanto aguardo pelos meus filhos, ocupados nas suas atividades extra escolares, concentro-me na leitura. Tenho investido umas horas em autores portugueses, alguns esquecidos e outros clássicos, que infelizmente jamais tinha lido. Livros de páginas amareladas pelo tempo, de edições com algumas décadas, que com gosto, vou reabrindo.

O prazer encontrado nesses fins de tarde prolonga-se para os dias de pausa. Entre sábados ou domingos, sento-me para o pôr-do-sol de livro na mão. Sempre que possível fico no exterior. Mesmo em dias com o anoitecer antes da hora de jantar. Se necessário, recorro a uma manta. Imitando os hábitos de repouso de Hans Castorp, quando passava as horas entre refeições, sentado na varanda do seu quarto.

Lembrei-me do personagem de Thomas Mann por esse e por outros dois motivos.

Nas tardes de semana, um dos locais por mim escolhidos para a leitura, tem uma pesada porta metálica envidraçada. Entro, instalo-me numa das mesas disponíveis, faço o meu pedido e concentro-me na leitura. Trazem-me o café ou o chá, conforme a solicitação e tudo fica tranquilo. Até que a porta bate com estrondo. Mais do que o susto, é o incómodo que me faz perder a linha de leitura. Aí, recordo as entradas no salão de jantar da bela rapariga que tanto agradou a Hans Castorp. Levanto os olhos, no sentido de apurar quem entra sem cuidado. Sendo o único por ali sentado, quem entra cumprimenta-me. Não percebo se para se desculpar, ou por mera simpatia. A cena repete-se por várias tardes, só que jamais volto a levantar os olhos, nem para reprovar o comportamento descuidado, nem para ser saudado.

Aproveitei a pausa da Páscoa para voltar à montanha. O tempo estava propício a uma caminhada. Frio, sem chuva. Conduzi para lá da Freita. Atravessei Cabreiros, Candal e subi à Coelheira. Já na serra de Arada. Uma nuvem encobria a paisagem. Visibilidade reduzida. Encostei o carro junto ao parque de campismo da Fraguinha. O termómetro marcava seis graus. Voltava para percorrer aquele trilho ao fim de doze anos. O tempo passa. Anteriormente, tinha feito aquele percurso com outras condições climatéricas. Uma primeira vez numa manhã quente de Setembro. Uma segunda vez, numa tarde repleta de neve em Abril e numa terceira e derradeira subida num ameno dia de Primavera, perdi-me.

Nunca usei meios de orientação, além de mapas. Antecipadamente observava o mapa com o percurso e memorizava o caminho. Quando se parte pela terceira vez para o mesmo percurso, mesmo sendo em três anos diferentes, não se espera nada de anormal, além das alterações climatéricas. Uma pequena intervenção humana no percurso, não me permitiu verificar que me desviava ligeiramente do trilho conhecido. Dei por mim junto a uma antena retransmissora de sinal de uma operadora de telemóvel, que jamais tinha visto por ali. Corta à esquerda, corta à direita e nada de pontos de referência. Perdido. Anos mais tarde, ao ler “A montanha mágica”, percebi perfeitamente o desespero de Hans Castorp ao ver-se envolvido pelo nevão, sem saber que rumo tomar para voltar ao hotel.

Na serra de Arada, acabei por retomar o trilho que pretendia, depois de estar completamente desnorteado. Voltei ao ponto de viragem. Percebi o que me tinha acontecido. Lá retomei o caminho. No regresso, memorizei o desvio para no futuro não me voltar a perder. Doze anos depois, tudo estava a correr bem, apesar do estado do trilho estar mais áspero. Uma ligeira aberta na nuvem que nos envolvia, permitia ver o cimo da encosta. A chegada ao planalto anunciava-se. Aí teria que ter cuidado para não cometer o erro anterior e enfiar-me num caminho errado. À distância visualizei um portão, formado por uma barra de ferro. Entendi-o como um indicador de impedimento de seguir em frente e obrigar a desviar pelo caminho pretendido. Assim o fiz. Os meus companheiros seguiram-me. Nenhum deles era nascido, da última vez que ali passei. Dei mais uns passos e encontrei uma estrada nova. Em redor, não se via nada. Tudo cinzento. Estávamos no meio da nuvem. Ouvia-se o movimento de um aerogerador, não se percebendo se estava à nossa direita ou à esquerda. A estrada era agora o caminho a seguir. Só que não sabia para onde, por isso, voltei para trás.

Ao descer, apercebi-me de como numa dúzia de anos, as pequenas intervenções humanas tinham alterado as rotas da natureza.

Como terá sido o regresso de Hans Castorp, depois de sete anos na montanha?

Nos meus crepúsculos, os livros não terminam na última página.        

 

(a publicar dia 19/04/12)