quarta-feira, maio 18, 2016

Da Musgueira ao Marquês

                Estes dias de festa, no futebol, fizeram-me reencontrar a minha história. Ao ser recordado da conquista do último tricampeonato conquistado pelo Benfica na temporada de 1976/77, verifiquei que apesar de o ter vivido, não me lembrava de nada. É certo que na anterior conquista de feito idêntico, em 1972/73, tinha dois anos de idade e não podia ter qualquer memória. No episódio seguinte, nos meus seis anos, recordava-me apenas de antigos posters alusivos ao feito dessa equipa, colado nas paredes de casa dos meus pais, mais uma caderneta de cromos dessa época desportiva, guardada numa gaveta, além de me recordar desses jogadores, que continuariam muitos mais anos no clube. Memórias avulsas, provavelmente reconstruídas pelos anos seguintes.

No fundo, tenho que reconhecer, a minha aproximação ao futebol nasceu nesse ano de 1977. A devoção por essa época desportiva, tão especial, acompanhou-me durante alguns anos, já que houve um hiato, até o Benfica voltar a ser campeão, ou qualquer outro clube tricampeão. Esse saudosismo fez-me conhecedor das épocas mais remotas e reconhecer em Eusébio, o símbolo da história do clube.

Essa imagem, de um africano equipado de vermelho, a que eu só tinha acesso através de cromos ou posters mais antigos, já que os jornais apenas publicavam fotografias a preto e branco e as lembranças da televisão eram todas monocromáticas, foi a melhor forma de eu entender o clube e o seu lema, “E Pluribus Unum”, que surge no latim através de uma frase de Virgílio, adaptada para a nossa língua como, “De muitos, um”.

Ao fim destes anos todos, entusiasmo-me sempre que um jogador, de pele mais morena, equipa de vermelho, seja qual for a nacionalidade. Assim foi com Renato Sanches. Reparei nele pelas imagens televisivas de um final dum atribulado jogo, quando enfrentou sozinho o banco do adversário, de um campeonato nacional de juvenis. Anos mais tarde, viu-o em campo em Santa Maria da Feira e apreciei a sua entrega ao jogo. Após o último dia 25 de Outubro, como solução para contrariar o apocalipse, vestindo a pele de “treinador de bancada”, protagonizei a sua entrada para a equipa principal do Benfica. Quando tal aconteceu, o futebol passou a ter outra atenção. E magia.

O resto é conhecido de todos: uma sucessão de vitórias para o campeonato nacional, interrompidas num jogo em atraso e nova sucessão de resultados positivos, interrompidas à 22ª jornada e daí até ao final, sempre a ganhar. Resumindo-se numa 2ª volta com apenas 3 pontos perdidos, o que em termos de estatística dá um valor engraçado, 94,1% de pontos conquistados.

Renato Sanches é um jovem da Musgueira, bairro de Lisboa, catalogado de problemático e normalmente notícia pelas piores razões. Renato é um símbolo da inclusão social, que é possível fazer-se pelo desporto. Um bom exemplo a seguir para todos aqueles jovens, que vivendo em bairros sociais e que muitas vezes são confrontados com o vazio de oportunidades, preferem fazer a sua escolha de vida, longe da hipótese de obter dinheiro de forma fácil e por meios ilícitos.

Na noite de comemoração do título, depois de ter vindo ao aperto da Rua João Deus, um momento nos festejos que já merecia ter passado imagens para órgãos de informação nacional, tamanha é a grandiosidade, retirei-me para casa para assistir, pela televisão, à festa na Rotunda do Marquês de Pombal. Da festa retive a imagem de Renato Sanches a correr o palco todo, a animar a vasta plateia de microfone na mão e a certa altura, destacado do resto da equipa, a empunhar uma grande bandeira alusiva ao Benfica, com a indicação precisamente da Musgueira. O envolvimento da Alta na Baixa da capital, o reconhecimento da transversalidade social do futebol, passando essa imagem para o país inteiro.

O rapaz das tranças está de saída. É um miúdo, só assim se compreende a entrada da mãe no relvado na tarde de domingo a agradecer ao treinador a oportunidade que deu ao seu filho. Fazendo lembrar as despretensiosas histórias de tantos, incluindo as de Eusébio.

Espera-se que o seu exemplo faça despontar novos valores, que se orgulhem do equipamento vermelho e branco e que sejam igualmente desinibidos e efusivos nos festejos, não esquecendo as suas humildes origens.

 

(a publicar no dia 19/05/16)