quarta-feira, junho 19, 2019

Os sete ofícios

Com entusiasmo li o livro “Carlos Alberto da Costa – Um Olhar de São João da Madeira”, da autoria de Daniel Neto e José Duarte da Costa. 
A obra é um retrato do evoluir da localidade ao longo do século XX, aproveitando a perspetiva do trabalho fotográfico de Carlos Alberto Costa, o biografado. 
Sem complexos os autores retratam muito bem, a importância do lugar das Vendas no dia-a-dia da outrora aldeia de São João da Madeira. De tal forma, que a leitura do capítulo indicia que a perda da designação do nome do lugar em detrimento da Praça, surge não com o batismo toponímico atual, mas pela instalação naquele espaço do carro para aluguer de Francisco Luís da Costa, pai do homenageado. Aliás, aparece na página 30 do referido livro, um recorte de imprensa com a publicidade aos seus ofícios e num está um claro “Automóveis de Aluguer – Francisco Luiz Costa”, completando na linha de baixo “Praça – S. João da Madeira”. Um automóvel de aluguer era um carro de praça. Ainda hoje, em épocas de Uber e outras companhias, persiste esta designação provinciana para referir os táxis. A associação entre o carro de Francisco Luís e a Praça era tão grande que nas suas memórias, João da Silva Correia refere “o nosso Chico da Praça”, recordando a compra por este de um novo automóvel, numa passagem transcrita neste livro. Para completar este raciocínio, recorde-se que Luís Ribeiro faleceu em 1913 e que a atribuição do seu nome à Praça não deve ter sido imediata, por isso, a terminologia popular imperou, substituindo as Vendas pela nova função do automóvel de aluguer e vingou com a toponímia, impondo-se a verbalização de apenas a curta designação, sem referência ao benemérito sanjoanense.
A perspetiva de evolução da povoação é narrada no livro de um modo peculiar. Há as referências aos empreendimentos que envolveram a população e que imprimiram grande dinâmica urbanística a S. João da Madeira, incluindo a sua faceta industrial e empresarial, suportada pelas fotografias de Carlos Alberto Costa, mas há um cuidado em focar os momentos de lazer da população. Neste capítulo a referência às casas de espetáculo são obrigatórias: o teatro da Vista Alegre e anos depois as salas de teatro do Chico Folheteiro, o Cinema Central, culminando no Teatro Avenida. No livro de José António de Araújo Pais Vieira, “Manoel Vieira Araújo – a sua vida, a sua obra, a sua terra” havia referência às exibições de peças de teatro, encenadas e interpretadas pelos habitantes locais. O livro de Daniel Neto e José Duarte da Costa dá um enquadramento físico a essas apresentações, sendo um importante contributo para se perceber a história cultural da povoação. Mas, os autores não se ficam pelas primeiras décadas do século passado. Ao longo da cronologia que escreveram vão fazendo referências aos vários grupos amadores que foram surgindo no teatro, indicando as suas exibições e intenções de angariação de fundos.
Outro destaque do livro é a referência às eleições presidenciais de 1949. Não a perspetiva habitual de mencionar os apoiantes de Norton de Matos, ou a publicação dos documentos fotográficos dos comícios realizados no Teatro Avenida, cuja exploração estava a cargo de Carlos Alberto Costa. A curiosidade da referência é ter sido uma mulher a liderar a sessão. Conceição Silva Duarte teve coragem e determinação para assumir tão importante papel na reunião progressista. A referência de um dos autores do livro à sua avó materna, é completada por igual referência à sua avó paterna, Olívia da Costa Amorim e mesmo a sua mãe, Zulmira Duarte. Estas homenagens não se limitam à perspetiva da simples vida doméstica, antes pelo contrário, há a demonstração da participação ativa na vida empresarial, na sociedade local e com o exemplo atrás referido, um grande envolvimento de cidadania, com manifestações de preocupação de cariz social, nunca descorando a devoção cristã.
Estão de parabéns os autores por conseguirem imprimir tão importante documento para a interpretação da história de S. João da Madeira. Eu esperava encontrar os dados biográficos de Carlos Alberto Costa, os seus sete ofícios, as suas fotografias - tão importantes retratos da evolução da povoação (sem elas não havia boa memória), a menção aos seus filmes, com a exibição de alguns diapositivos e claro, a expressão da sua sensibilidade artística, pelas fotografias da ria a preto e branco e também pela construção dos seus trabalhos em pedaços de madeira. É certo que encontrei tudo o que esperava, mas as expectativas superaram-se quando vi outros aspetos em relevo, os quais atrás mencionei. 
No livro, há uma recolha de vários e importantes depoimentos acerca da vida e da obra de Carlos Alberto Costa. Há uma questão implícita que propositadamente fica por abordar, será que já se fez tudo para homenagear o fotografo de S. João da Madeira? Será o livro do seu filho em coautoria com Daniel Neto o último capítulo?
Em novembro de 2017, no rescaldo das promessas da campanha eleitoral para a autarquia, nas páginas deste jornal lancei o assunto de forma indireta. Ao compromisso do eleito presidente da Câmara Municipal de S. João da Madeira, em desenvolver a “Casa da Memória”, relembrei o espólio de Carlos Costa, os seus filmes, suas fotografias, acrescentando agora, os seus trabalhos em raízes secas, além de acervos de outros privados que se encontram dispersos pela cidade. Este livro pode ser a “primeira pedra” para apetrechar a “Casa da Memória”, porque o património humano da população deveria ter um espaço próprio e condigno, para preservar a memória coletiva.
 
(publicado a 19/06/19)

quinta-feira, junho 06, 2019

A última aula.

Armando Margalho chegou a S. João da Madeira para jogar basquetebol na Associação Desportiva Sanjoanense. Quase em simultâneo, ficou indexado pela antiga Direção Geral dos Desportos, como técnico de Natação, no Tanque Piscina construído nas traseiras da Escola Primária do Parque. Durante a década de 70 e princípio da seguinte, várias crianças, jovens e alguns adultos tiverem Margalho como professor, monitor, ou técnico de natação. A longevidade neste ensino permitiu-lhe ensinar a nadar a pelo menos duas gerações de sanjoanenses. Aproximando-se nalguns casos, a três gerações.
Amante da atividade física, do desporto, Margalho - como o próprio gostava de ser conhecido e tratado, sem o titulo de professor, procurando o relacionamento próximo – procurou envolver-se na comunidade local. Apesar de atleta da ADS, foi um grande impulsionador do associativismo, estando no grupo dos dinamizadores d’os Kagados, quando a atividade desta coletividade era em torno do Parque da Nossa Senhora dos Milagres. Nos anos 80, foi um dos fundadores da Associação Estamos Juntos e seu primeiro presidente. No final do século, foi um dos grandes incentivadores para ser criada a Associação É Bom Viver.
 Ainda neste capítulo, recordar a alegria que emanava nas suas de aulas de adaptação ao meio aquático, junto das crianças do infantário e a criatividade ao idealizar os exercícios, em que à falta de equipamento adequado, surgiam soluções incríveis, para as crianças fazerem os mergulhos e habituarem-se a ter a cabeça debaixo de água. Assim também era nas aulas de “ginástica“ no infantário (IOS), onde era incentivada a flexibilidade e agilidade de movimentos. Abro umas linhas, para recordar umas aulas no antigo Jardim do Sol, numa cave e com uns colchões, onde se aprendia a dar umas cambalhotas e outras piruetas e às vezes, o Margalho levava-nos em grupo a passear pela Vila. Fui assim que conheci os caminhos do açude até ao Parrinho, o monte das Travessas, um belo pinhal no Espadanal, os moinhos dos Fundões e os da encosta de Casaldelo, quem desce para o Roupal. 
No desporto, tudo mudava. Margalho era um técnico exigente fisicamente. A doçura que transmitia às crianças, transformava-se em dureza. A responsabilidade era diferente. Assim treinou os jovens basquetebolistas da ADS e também os nadadores do mesmo clube, ainda no Tanque Piscina. Anos mais tarde, quando abriu a piscina municipal das corgas, liderou uma equipa da AEJ. Nessa época, 1988, atendendo à melhoria das condições de treino, preconizou que S. João da Madeira haveria de ter um atleta Olímpico. 24 anos depois, Ana Rodrigues conseguiria esse feito. Apesar de se ter afastado dos treinos de Natação, Margalho manteve-se como treinador de basquetebol e enveredou pelo hóquei em patins, durante umas épocas. É no basquetebol, antes da viragem do século que recupera a mística da ADS, organizando um torneio de homenagem ao malogrado Cassiano Inácio e aproximando antigos jogadores ao clube, condição em que tem funcionado a direção da modalidade, desde essa época.
Margalho é claramente recordado como atleta de basquetebol. Na ADS foi capitão de uma equipa que em 3 épocas subiu da 3ª à 1ª Divisão. Ainda foi jogador da AEJ e voltou a jogar como Master na ADS, já nesta década.
Pelo exposto, há várias formas de perceber a importância que Armando Margalho teve no Desporto e na atividade física em S. João da Madeira. 
Há ainda duas vertentes que importa referir para perceber a sua total participação na comunidade. A ocupação de tempos livres no período de férias escolares, sendo um dos  primeiros dinamizadores do Campo de Férias Estamos Juntos, atividade pioneira na região surgida em 1982. A outra menos conhecida, é a de divulgação cultural. Além de um programa de rádio, Margalho foi um dos organizadores do festival de artes Adeus ao Verão, realizado em 1989, na Praça Luís Ribeiro, onde se exibiram durante um dia vários artistas da cidade, das mais variadas expressões musicais, além de dança, teatro e pintura.
Na passada sexta-feira, dia 31 de Maio, pelas 17 horas, realizou-se a última aula de Natação de Armando Margalho. Milhares de pessoas foram seus alunos. Mais de 40 anos a trabalhar no desporto local, não deixam ninguém indiferente. 
Felizmente, escrevo esta homenagem sabendo que Margalho irá continuar ligado à comunidade. 
Haverá, no futuro, outros assuntos para serem descritos.
Se não for pela sua dinâmica desportiva, será certamente pelo acompanhamento familiar aos seus três filhos, ou então, aos netos e netas.
 
(publicado  a 06/06/19)