A boa gastronomia é um motivo para deslocações a qualquer ponto do país. Restaurantes existem que são mais afamados do que a localidade onde estão inseridos. Noutros casos é a própria região sobejamente conhecida e qualquer restaurante tem clientela à porta e dentro dela.
Comensais organizam listas alfabéticas indicando para o nome de cada terra, os respectivos restaurantes em que é imperativo comparecer, caso haja ocasião no caminho, ou então fazendo-o propositadamente.
Com esta intenção fiz-me à estrada, percorrendo o percurso idêntico ao dos peixes fluviais, isto é, partindo junto da foz do Rio Vouga e serpenteando por estrada os seus meandros dirigi-me para montante. Segui pela nova A25 até sair junto a Macinhata do Vouga, local onde a CP instalou um Museu Ferroviário para eternizar o simpático e regional Vouguinha, da minha infância.
A hora nocturna já não permitiu visitar as bielas, cambotas e locomotivas a carvão. Segui pela estrada a caminho de Sever do Vouga. Deparei-me com a ponte ferroviária do poço de Santiago. Um ex-libris do concelho para onde me dirijo e a maior obra da engenharia ferroviária construída no século passado na região – “mais alta (28,5 metros) ponte do país construída em pedra. Com 165 metros de comprimento, é constituída no seu todo por 12 arcos de tamanhos vários. O maior, de forma parabólica, abraça firmemente as margens do rio Vouga, tendo de altura 27 metros e de vão (comprimento da base) 53 metros. O fecho deste arco, o central, apresenta apenas 90 cm de espessura. Os restantes 11 arcos partilham da base do arco maior, havendo uma duplicidade de soluções geométricas e de engenharia verdadeiramente arrojadas”.
Mais uns quilómetros, umas curvas, umas construções à beira rio e chegamos a Pessegueiro. Uma escada de acesso descendente, anunciam o restaurado edifício, outrora cais de barcos. Entramos precisamente na “Quinta do Barco”.
Do cardápio surgem as eventuais sugestões características da zona: a vitela de Lafões e a lampreia, porque a época era propicia.
A escolha foge da tradição local, os quilómetros percorridos merecem uma nova aventura gastronómica - espetada de polvo -, seguindo a sugestão confidenciada por familiar. Renego qualquer tentativa de ingerir o pitéu das águas doces, pela dificuldade em explicar aos meus filhos que aquela aparência horrível, é apetitosa.
Durante o jantar, numa das mesas em frente à escolhida pela família sentam-se dois casais. Uma das caras não me é estranha. Não gosto quando isto me acontece. Rostos conhecidos das televisões, ou dos jornais, fora do seu contexto habitual, tornam-se difíceis de se identificar prontamente.
Uma terrível coincidência, estarmos no mesmo local com pessoas que sabemos quem são e não reconhecemos. A menos daqueles bastante conhecidos, como uma vez em Montemor – o – Velho, em que na mesma sala se encontrava Pedro Santana Lopes. Sempre simpático e bem disposto, mostrando o seu lado divertido, partilhando com os seus companheiros de mesa, as memórias cinéfilas, em especial, o cómico “Tea for two”.
Desta vez junto ao rio Vouga, não conseguia identificar aquela cara. Não acredito na ideia provinciana de que temos sistematicamente de encontrar pessoas conhecidas, como se o país fosse pequeno. De qualquer forma, estava perante uma peça de xadrez fora do seu lugar no tabuleiro. Uma espécie de bispo colocado na diagonal errada, longe do seu correcto posicionamento, que estar ou não em jogo, nada acrescenta no desfecho do mesmo.
Prosseguimos a refeição, incluindo uma soberba sobremesa de mirtilo. O indispensável o café foi bebido a correr, porque os miúdos tinham atingido a sua hora de saturação e só pensavam em portar-se mal. Primeiro escondendo-se debaixo da nossa mesa, depois alargando a área de brincadeira às mesas mais próximas. Enquanto esperava por finalizar o pagamento, o grau de aborrecimento e algazarra foi crescendo. Nesta fase fez-se luz na minha memória. Preparava-me para revelar a minha inquietação e confrontar as dúvidas, quando os meus filhos se dirigiram para a mesa do ilustre “não identificado”. Preparava-me para pedir desculpas pelo incómodo a provocar e receber uma ajuda, via uma qualquer reprimenda dada aos garotos. O gesto, precisamente do famoso cliente deixou-me desarmado. No lugar da esperada recriminação, o incentivo ao mau comportamento através da entrega de um rebuçado. O troféu foi transportado até à mesa dos pais, em sinal de vitória. Como qualquer criança, não se contentaram só com um e voltaram à mesa dadora até receberem o último. Depois foram incomodar outra e mais outra mesa, pedindo sempre rebuçados.
Finalmente, acertei as contas e consegui sair. Nem me lembro se os meus filhos trouxeram os rebuçados. O interesse era mais desafiar o pai, do que adoçar a boca.
Passado uns dias, numa qualquer quinta-feira seguinte, estava a ler a crónica quinzenal de António Lobo Antunes, provavelmente a da solteira, do seu amante careca, que lhe fazia companhia durante os serões, antes de regressar ao seu lar de casado e dissipei todas as dúvidas surgidas em Pessegueiro do Vouga. O rosto famoso era certamente o cronista.
Se era lógico ser ele, não posso avaliar. Fica sempre a incerteza se aquela cabeça a tender para careca, os olhos claros por baixo de uma testa engelhada, que são aspectos físicos comuns a várias pessoas, era capa da invulgaridade da escrita.
Importante, mais do que eventualmente ter-me cruzado com o escritor, é poder um dia repetir o repasto, pois o que espero relativamente a tão ilustre pessoa é poder continuar a deliciar-me com a sua prosa...
(a publicar no dia 08/02/08)
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