Conheci Américo Tomás numa tarde amena de Verão. Eu estava com dois companheiros a saciar a sede numa loja no lugar de Rio de Frades, concelho de Arouca. Tínhamos chegado a pé, vindo de Cabreiros, percorrendo o bastante desnivelado caminho do carteiro, João de seu nome. O exclusivo dos seus passos na encosta tinha sido quebrado nessa tarde. Talvez por isso, a dona da loja esmerou-se na preparação duma refeição, umas latas de atum acompanhadas por cebola às rodelas. Provavelmente, a única refeição preparada para uns forasteiros. A recordação de outros tempos abriu caminho para a generosidade, ou talvez a misericórdia, pois ainda teríamos que subir a íngreme encosta.
Entre tragos, a conversa. Tendo como objectivo a procura de vestígios do passado mineiro. Para além dos túneis, dos escombros, dos edifícios vandalizados, os testemunhos físicos da epopeia vivida pela 2ª Guerra Mundial, queríamos ouvir uma história qualquer, para compreender o apogeu daquela povoação, quando ali viviam alemães. Sem pensar na comparação com a presença dos ingleses, em idêntica laboração a menos de cinco quilómetros.
Ao ouvir o rumo das perguntas, apresentou-se o homónimo do ex-almirante e ex-presidente da República. Habilmente, com a experiência de mais de sessenta anos, encaminhou a conversa para dias mais recentes. Entre as peripécias causadas pelo seu nome, contou a infelicidade que o Estado provocou a uma professora primária de Espinho, colocada precisamente naquele lugar no inicio da sua carreira e terminou expondo a sua dúvida, como teria chegado ali o ser humano. Sem tempo para mais e já a pensar no esforço físico a desenvolver para alcançar o automóvel, não nos demorámos nas procuras arqueológicas do nosso interlocutor.
Cinquenta anos depois do grande conflito mundial, nesta aldeia serrana a memória do seu passado glorioso, embora com fins extremamente sangrentos, era escondida. Uma opção que a ser seguida, possivelmente apagará para o futuro, a envolvência do concelho na grande guerra. Por vergonha, por ignorância, ou por desconfiança, assim se vão perdendo os legados do passado e daqui a muitos anos a estratificação humana, juntamente com a natural, remeterá tudo ao esquecimento.
As dificuldades em procurar a história recente, não são comparáveis à tentativa de compreensão do passado remoto.
No dia em que subi a uma das torres do Castelo da Feira, o grande ícone das Terras de Santa Maria, não tive nenhum cicerone. Ninguém chamado Afonso Henriques, nem Sancho, nem com algum dos nomes dos sucessivos condes e senhores do castelo.
A história disponível do castelo explica uma série de pormenores de arquitectura militar, no entanto, apesar disso tudo, não aclara quanto à sua disposição, nem a proximidade ao mar. Nas repetidas leituras e dos acontecimentos históricos associados à reconquista cristã, verifiquei a ausência de qualquer dado para esta região acerca da conquista muçulmana da península e consequente defesa.
Consta em variados textos, que provavelmente o castelo terá sido construído no período da reconquista sobre uma fortaleza existente. Mais baralhado fiquei. Estar dentro de muralhas e avistar o mar, inquietou-me. O recuo do oceano, a formação do cordão de areia com inicio no Carregal em Ovar e estendendo-se até Mira é assumido pela geografia. A semelhante distância à linha de costa tal como os Castelos de Óbidos, ou Aljezur permitiu-me imaginar: um possível alinhamento de fortificações para defesa da costa. Durante meses agarrei-me a essa ideia. No entanto, descobri ser aceite, que por volta de século XI, a costa marítima na zona de Ovar deveria estar situada precisamente nas imediações da actual linha de caminho de ferro. Bem distante, portanto, da fortificação.
Apesar do desalento surgido e eliminada a possibilidade marítima, concentrei-me na questão da disposição.
Voltei às invasões muçulmanas.
Num parágrafo apresentam-se os factos cronológicos: em 711 os muçulmanos dão início à invasão árabe da Península Ibérica; em dois anos conquistam todo o território peninsular com excepção da província Asturiana; passados 5 anos, em 718 Pelagio das Astúrias um nobre visigodo é eleito rei e avança sobre o exército árabe, iniciando a reconquista Cristã; entre avanços e recuos comandados por sucessivos Reis, depois de conquistada a Galiza em 750, é finalmente tomada a cidade do Porto em 888; em 1066 é conquistada Coimbra e a partir de 1139 entramos já na história de Portugal.
Um parágrafo, quatro séculos. Lendo melhor, entre a conquista do Porto e a de Coimbra quase dois. Durante este período, que infelizmente se encontra numa nebulosa, sem grandes trabalhos e investigações históricas para esta zona, pouco ou nada se sabe. Cristophe Piccard, historiador francês publicou em 2000, no livro “Le Portugal Musulman”, a noção de que existiria uma linha de defesa e de fronteira, perfeitamente delineada ao longo do rio Douro. Um historiador nacional, Correia de Campos (em 1970), refere mesmo uma linha de defesa composta por uma série de fortificações e castelos ao longo de todo o trajecto do rio Douro, no espaço que é hoje o território português: “Antes da constituição do reino, o fosso do Douro serviu, (...) num determinado período, a linha de fronteira entre a Cruz e o Islão. Uma cortina de fortes ou castelos estendia-se por toda essa linha de alturas, começando, também para defesa da costa, no Castelo da Feira, Castelo de Paiva, Cinfães, Cárquere, Lamego, Penedono, Numão, Castelo Rodrigo e Pinhel, para só nos referirmos aos principais.”
Tudo isto se encaixava na série de dúvidas por mim formuladas sobre a disposição do Castelo da Feira: virado para Norte, com possibilidade de visão sobre poente.