terça-feira, fevereiro 17, 2009

Metamorfose

            O relato efectuado pelo labor, na sua última edição, da troca de argumentos mantida numa sessão da Assembleia Municipal, acerca da construção de um hipotético parque subterrâneo na Praça Luís Ribeiro, deixou a cidade em suspenso e pouco esclarecida.

            Os anos da gestão autárquica de Castro Almeida têm sido marcados pela defesa do bem-estar da população, do interesse público, das contas da autarquia. Neste sentido foram realizadas uma série de obras, enquadradas dentro de um programa eleitoral, que evidenciavam um projecto para a cidade de S. João da Madeira, a curto e médio prazo.

            É apanágio dos autarcas efectivar obras, no sentido de perpetuar o seu mandato e torná-lo visível aos olhos dos eleitores. Por seu lado, os eleitores ao avaliarem o mandato de autarcas, tendem similarmente a apreciar o trabalho realizado, comparando os avaliados com os seus antecessores.

            A separação da forma do conteúdo, no exercício do cargo político, foi a principal alteração introduzida no primeiro mandato de Castro Almeida, relativamente ao seu antecessor. A dinâmica evidenciada, muito suportada no cuidado da imagem, permitiu alcançar uma folgada vitória para um segundo mandato. Apoiado pelo seu partido e por grande parte da sociedade civil, a maioria política acreditou e convenceu-se da unanimidade em torno das ideias do presidente do executivo municipal.

            Alertadas no devido tempo, as restantes forças políticas modificaram a sua forma de agir, passando a questionar e a debater ideias sobre a cidade. Efectivamente, o que se espera de uma democracia.

            Da tal sessão da Assembleia Municipal os argumentos, a favor da construção do mencionado parque, oscilaram entre a vacuidade e a contradição. O de primeiro tipo porque não existiu um argumento favorável válido: não existem estudos; não se analisou a actual situação após a construção dos outros dois parques; não se decifrou o que falta na Praça para captar o interesse das pessoas. Por outro lado, segundo o labor, foi referido que será necessário criar condições para “libertar as ruas para os peões” - uma vontade oposta à da última intervenção efectuada na zona pedonal, em 2007.

            O inexplicável desempenho em rectificar esse erro, não permite compreender o empenho da autarquia no alinhamento de rotundas, separadores centrais e outros condicionantes de trânsito, em artérias não essenciais ao regular fluxo do tráfego na cidade. A sucessão de intervenções nas vias públicas, mais o retirar de pedras, noticiadas recentemente, fazem recordar os idos de 90, ainda hoje incompreensíveis para os eleitores, pela forma espontânea como eram executadas a maioria das construções, obrigando a questionar a sua utilidade, assim como a prioridade e a importância.

            Nestes tempos difíceis de convulsão económica, há que ponderar entre o interesse pelos arranjos ou pela desejada harmonia social. As políticas sociais do município resumem-se a donativos, amplamente divulgados e pouco concretizados, mais uma série de organizações com idosos.

Em simultâneo, na indústria, as principais empresas empregadoras da cidade estão em agitação. Os seus trabalhadores vivem momentos de incerteza. Por sua vez, o comércio tradicional sofre com a deslocação dos clientes para o centro comercial. Os números sobre a população activa divulgados pelo centro de emprego são significativos. Mais preocupante é que o número de empregos começa a diminuir.

A cidade está sobredimensionada com mais habitação do que moradores, com mais pavilhões industriais do que empresas, com mais lojas do que comércio.

            O poder político prefere ignorar este estado devoluto, arrepiando caminho com o lançamento de mais obras, de pouco ou nenhum interesse público. 

            Curioso nestes tempos difíceis é assistirmos à reconciliação da primitiva forma com o conteúdo. Um retrocesso, tornando o quotidiano político banal e sem qualquer motivo de interesse para o futuro.

 

(a publicar dia 19/02/09)

 

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Vazio

A separação da família, a caminho do divórcio, atirou-o para fora de casa. Longe da ex-mulher, dos filhos, deixou as lágrimas à porta do seu lar familiar e recomeçou a vida numa nova condição.

O árduo trabalho mantendo-o ocupado, as noites bem passadas em casa de amigos – recentes e antigos, as saídas e programas de fim-de-semana com os filhos, não lhe fizeram lembrar o passado.

A inquietação que permanece no final de uma relação, a dúvida da opção tomada: onde tinha ficado, antes de… não tinha ainda surgido no seu novo dia-a-dia.

O destino, numa noite terminada demasiadamente cedo, levou-o de volta ao local do seu tempo de juventude. Deviam ter passado uns treze ou talvez catorze anos, desde a última vez que cruzara a porta de serventia daquele bar e subira os degraus daquela escada. Tudo estava semelhante. O mesmo dono, homem atrás do balcão, com uns cabelos brancos, recordando a passagem do tempo e umas rugas complementares na face. Não saberia se seria reconhecido e não pensava encontrar ninguém do seu tempo por ali.

Após os cumprimentos com o dono do bar, com a conversa de circunstância interrompida pelos pedidos dos outros clientes, olhou em redor e fitou algumas caras que o reconheciam. Amigos não eram, apenas conhecidos, companheiros de alguma noite, de alguma jornada colectiva, de copos e uns charros.

Trocados os olhares, apertadas as mãos, um abraço nalguns casos, verificou que o ritual se mantinha, copos de cerveja, gargalhadas, conversas ocasionais e umas saídas ao exterior, para umas passas numa mortalha bem lambida.

No meio de tantas recordações, lembrou-se do seu esquema de engate, mantido naquele estabelecimento, durante alguns anos, com uma conhecida. Uma forma de estar com alguém, sem estar. Nunca mais se tinha lembrado dela, nem ousava perguntar por ela, nem pelo seu estado. Eram coisas do passado, da adolescência tardia, ou da idade jovem de adulto. Nunca tinha percebido como aquela relação tinha durado tanto tempo. Era inexplicável. Nada sentia pela fulana, nada sabia dela. Além do sexo, nada mais lhe interessava.

No meio destas reminiscências, alguém o convida para umas passas, ele acede. Na rua, um disfarce menos rigoroso do que no seu tempo, embora as semelhanças fossem evidentes. Entrar num carro, num local pouco concorrido, numa rua escura, ou num parque mal iluminado. Regressar ao bar, mais uns copos e umas risadas. Estava completamente fora de si.

À sua frente surgiu uma cara feminina. Era ela. Não queria acreditar. Como era possível? Conversa animada, uma mudança de bebida. E um convite para prolongarem a noite os dois…

Quando acordou, viu que estava acompanhado e com dificuldade lembrou-se do que tinha acontecido. A ressaca impediu-o de focar melhor a mulher que estava com ele. Olhou para o relógio e preocupou-se. Os seus três filhos chegariam dali a pouco acompanhados pela ex-mulher e seria complicado explicar o seu estado e a presença de outra pessoa com ele. Pronunciou o nome da sua companheira nocturna e pediu-lhe com bons modos para acordar, explicando-lhe a pressa e desculpando-se pela situação.

À sua frente surgiu uma cara desconhecida, num corpo desconhecido.

- Estive a noite toda a ouvir esse nome, pensei que fosse da tua ex-mulher e descubro agora que não é, por isso não me importei – disse-lhe a desconhecida.

Focou melhor. Aquela cara era-lhe mesmo estranha, nem o seu nome sabia. A necessidade de a despachar dali, enchia-lhe a cabeça. Tentou pôr-se de pé mas, cambaleou com a ressaca. Nada de gestos bruscos, pensou.

A companheira continuava a falar e ele não ouvia nada. Abriu a persiana, a luz solar feriu-lhe os olhos. Procurou um comprimido para evitar o mal-estar. Tinha que se apressar e sobretudo, tirar aquela sujeita dali. Quem seria afinal?

Engoliu o comprimido e procurou o chuveiro. Debaixo de água, sentiu-se melhor. Saiu da banheira, secou-se e apercebeu-se de movimentações no quarto. Menos mal, pensou. Regressou ao quarto, sem saber se havia de surgiu nu, se com o roupão. Optou pela primeira opção, a mais sensata depois da noite vivida. No quarto, a fulana já estava vestida. Perguntou-lhe se não queria tomar banho. Nem ouviu a resposta… enfastiado, não conteve o vómito e teve que ir de volta à casa de banho.    Recomposto, vestido, ofereceu café e uma refeição ligeira, mais por educação do que por consideração. Como seria possível ter uma pessoa completamente desconhecida em casa?

Procurou novamente apressar a companheira, falando no aproximar da hora de chegada dos filhos, na necessidade de arrumar a casa e limpar o que fosse possível. Que não, que não, fazia tudo sozinho – disse agradecendo a gentileza pela oferta da sua ajuda. O que mesmo pretendia era ficar sozinho, para se preparar, desculpou-se.

Não sabia o que dizer. Não tinha vontade de a ver de novo. Tentou explicar-lhe o embaraço mas, não foi necessário. A sua companhia nocturna percebeu tudo. Disse-lhe que sairia já, já. Estava a tentar ser simpática. Não queria atrapalhar. Não esperava encontrá-lo de novo, nem que ele a procurasse. Não era nenhuma profissional, apenas engatava desconhecidos e bem-parecidos, naquele bar apenas, à procura de prazer apenas. E ao sair, rematou: essa fulana com quem me confundiste toda a noite, deve ter sido muito feliz contigo, não?

O telemóvel tocou, era a ex-mulher, pedia desculpa estava super atrasada, só chegariam à hora de jantar e portanto, ele tinha a tarde toda livre. Arrumou tudo direitinho, limpou o que havia a assear e continuando mal disposto, expeliu o que o estômago continha.

Tentou reconstituir a noite, o jantar em casa dos amigos, a ida ao bar e resto já descrito. Ligou para casa dos amigos e engasgado lá explicou o sucedido. Ficou surpreendido quando do outro lado do telefone lhe disseram: Esse bar fechou há mais de cinco anos, pá! Precisamente quando o dono faleceu. Onde era esse bar, agora é um estabelecimento comercial, que encerra às 19 horas, como os outros todos nessa rua. Aliás, nas imediações não há nenhum bar. Quando saíste daqui já ias um pouco torto, pá. Eu bem te disse para não pegares no carro. Afinal por onde andaste?
 
(a publicar dia 12/02/09)

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Último desejo

            O dia tinha amanhecido muito brilhante. Júlio, que despertara com a luz matinal, permanecia há alguns dias acamado, num dos quartos de sua casa, por causa de uma doença prolongada que lhe causava um grande mal-estar e sofrimento. Naquela manhã acordara sem as dores que o apoquentavam, sentia-se melhor. O brilho no quarto era intenso, sinal de que o céu devia estar limpo, com uma forte luminosidade, pouco comum nos dias anteriores, cinzentos, frios e chuvosos. Estava a ser um Inverno “à antiga” - todos que o vinham visitar contavam-lhe as peripécias da meteorologia; a já referida chuva, incomodara muitos dos seus amigos e familiares; a neve divertira de início mas, a sua queda constante era sinal de frio e desconforto e pelo que Júlio se apercebia, apesar de estar doente, estavam todos fartos de dias assim.

            Júlio notou uma alteração na luminosidade do quarto. Parecia que uma nuvem passara em frente ao sol. O doente tentou rodar a cabeça para tirar as suas dúvidas. Apesar do esforço, não se mexera. Tentou de novo e nada. Estava com dificuldade em mover-se. Pensou em levantar a cabeça, apoiar as mãos para erguer o tronco e não conseguia fazer qualquer movimento. Tentou, estando deitando de barriga para cima e por isso sem fazer qualquer esforço, mexer os dedos da mão, os dos pés e nada. Nenhum músculo reagia, nenhum osso se movia.

            O quarto ficara mais escuro. Júlio concentrou-se no seu corpo. Ainda ouvia a sua respiração e percebia que o seu coração pulsava. Tentou abrir a boca para pedir ajuda e não conseguiu. Quis soltar um grito, não teve forças. Procurou acalmar-se e chamar normalmente os seus familiares, só que nada aconteceu.

            Júlio estava inerte. Não queria acreditar que vivia os seus últimos momentos. A luz do quarto era já muito ténue. Havia um silêncio incomodativo. Não se ouvindo qualquer ruído da rua, do exterior da casa, ou vindo dos outros compartimentos. Seria o fim?

            Queria despedir-se dos seus familiares, pedir-lhes pela última vez os seus desejos. A sua vontade era que alguém fizesse um discurso de homenagem na cerimónia fúnebre, antes de se fechar a sua urna. Sempre que começava a formular esse desejo, a conversa era interrompida pelo seu interlocutor. Ainda é cedo, para falar em morte - diziam-lhe. Todos esperavam que durasse anos e não uns dias só.

            Sentiu os seus olhos a ganharem lágrimas, como quando comparecia em funerais e ao ver o acto de fechar a urna se emocionava e deixava correr uma lágrima, em silêncio. Era a sua forma de homenagear o defunto, fosse ele familiar, alguém próximo, um qualquer desconhecido. Permanecia de pé na cerimónia, sem qualquer manifestação religiosa até ao encerrar do caixão. Depois, apresentava os cumprimentos à família e seguia a sua vida, sem qualquer tipo de hipocrisia.

            Este seu ritual sentimentalista provinha da literatura. Afeiçoava-se às personagens, especialmente em biografias e qualquer morte era extremamente sentida, ficando em lágrimas, obrigando-se a enxugar os olhos, para prosseguir para as páginas seguintes.

            Dos livros tinha vindo a ideia dos discursos na homenagem final. Não queria nada megalómano, uma breve referência dita por algum bom orador. Um familiar de preferência. A escolha ficaria para os seus descendentes. Um discurso, não o trocava por nada. Nem por música, nem por poemas, nem orações.

            O silêncio era agora total. Já não ouvia a sua respiração. Pensou tratar-se apenas de um inesperado e tranquilo sono.

            Não, estava enganado!

            Não respirava mesmo. Não ouvia as batidas do seu coração, nem sentia qualquer último movimento dos seus órgãos.

            As dores tinham efectivamente desaparecido.

            O quarto ficou escuro, totalmente escuro.

            A manhã continuava com uma claridade fora do comum. Daqui a pouco, em casa do Senhor Júlio soariam os primeiros despertadores, impondo o acordar.

 

(a publicar dia 05/02/09)