terça-feira, fevereiro 03, 2009

Último desejo

            O dia tinha amanhecido muito brilhante. Júlio, que despertara com a luz matinal, permanecia há alguns dias acamado, num dos quartos de sua casa, por causa de uma doença prolongada que lhe causava um grande mal-estar e sofrimento. Naquela manhã acordara sem as dores que o apoquentavam, sentia-se melhor. O brilho no quarto era intenso, sinal de que o céu devia estar limpo, com uma forte luminosidade, pouco comum nos dias anteriores, cinzentos, frios e chuvosos. Estava a ser um Inverno “à antiga” - todos que o vinham visitar contavam-lhe as peripécias da meteorologia; a já referida chuva, incomodara muitos dos seus amigos e familiares; a neve divertira de início mas, a sua queda constante era sinal de frio e desconforto e pelo que Júlio se apercebia, apesar de estar doente, estavam todos fartos de dias assim.

            Júlio notou uma alteração na luminosidade do quarto. Parecia que uma nuvem passara em frente ao sol. O doente tentou rodar a cabeça para tirar as suas dúvidas. Apesar do esforço, não se mexera. Tentou de novo e nada. Estava com dificuldade em mover-se. Pensou em levantar a cabeça, apoiar as mãos para erguer o tronco e não conseguia fazer qualquer movimento. Tentou, estando deitando de barriga para cima e por isso sem fazer qualquer esforço, mexer os dedos da mão, os dos pés e nada. Nenhum músculo reagia, nenhum osso se movia.

            O quarto ficara mais escuro. Júlio concentrou-se no seu corpo. Ainda ouvia a sua respiração e percebia que o seu coração pulsava. Tentou abrir a boca para pedir ajuda e não conseguiu. Quis soltar um grito, não teve forças. Procurou acalmar-se e chamar normalmente os seus familiares, só que nada aconteceu.

            Júlio estava inerte. Não queria acreditar que vivia os seus últimos momentos. A luz do quarto era já muito ténue. Havia um silêncio incomodativo. Não se ouvindo qualquer ruído da rua, do exterior da casa, ou vindo dos outros compartimentos. Seria o fim?

            Queria despedir-se dos seus familiares, pedir-lhes pela última vez os seus desejos. A sua vontade era que alguém fizesse um discurso de homenagem na cerimónia fúnebre, antes de se fechar a sua urna. Sempre que começava a formular esse desejo, a conversa era interrompida pelo seu interlocutor. Ainda é cedo, para falar em morte - diziam-lhe. Todos esperavam que durasse anos e não uns dias só.

            Sentiu os seus olhos a ganharem lágrimas, como quando comparecia em funerais e ao ver o acto de fechar a urna se emocionava e deixava correr uma lágrima, em silêncio. Era a sua forma de homenagear o defunto, fosse ele familiar, alguém próximo, um qualquer desconhecido. Permanecia de pé na cerimónia, sem qualquer manifestação religiosa até ao encerrar do caixão. Depois, apresentava os cumprimentos à família e seguia a sua vida, sem qualquer tipo de hipocrisia.

            Este seu ritual sentimentalista provinha da literatura. Afeiçoava-se às personagens, especialmente em biografias e qualquer morte era extremamente sentida, ficando em lágrimas, obrigando-se a enxugar os olhos, para prosseguir para as páginas seguintes.

            Dos livros tinha vindo a ideia dos discursos na homenagem final. Não queria nada megalómano, uma breve referência dita por algum bom orador. Um familiar de preferência. A escolha ficaria para os seus descendentes. Um discurso, não o trocava por nada. Nem por música, nem por poemas, nem orações.

            O silêncio era agora total. Já não ouvia a sua respiração. Pensou tratar-se apenas de um inesperado e tranquilo sono.

            Não, estava enganado!

            Não respirava mesmo. Não ouvia as batidas do seu coração, nem sentia qualquer último movimento dos seus órgãos.

            As dores tinham efectivamente desaparecido.

            O quarto ficou escuro, totalmente escuro.

            A manhã continuava com uma claridade fora do comum. Daqui a pouco, em casa do Senhor Júlio soariam os primeiros despertadores, impondo o acordar.

 

(a publicar dia 05/02/09)

 

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