Como se não bastassem os paralelepípedos graníticos no piso da rua, os passeios cinzentos escarrados, as casas antigas ensombrando lojas, como se não bastassem as prostitutas esquinadas, os mirones defronte, os idosos transitando de olhar indiferente, os pedintes insistentes, os arrumadores ressacados, como se não bastassem os anos e anos que atravessei aquela rua, assistindo ao quotidiano decadente, espreitando montras que escondiam produtos, abrigando-me já encharcado e desesperado numa qualquer entrada, evitando escolher as hospedarias de porta sempre aberta, como se não bastasse ter-me afastado da cidade invicta, daquele trajecto diário, das lojas vazias, de outros estereótipos decrépitos e suceder-se ao fim de alguns anos uma reabilitação espontânea, precisamente nessas artérias que percorri em estudante, com abertura de estabelecimentos de restauração, impondo um movimento nocturno notável e uma oferta de novos estabelecimentos comerciais.
Como se não bastassem as cores exuberantes na vitrina, as capas dos livros de banda desenhada na montra, os cartazes exibindo personagens a meio corpo, os objectos promocionais a três dimensões, provenientes de vinhetas de alguns livros, como se não bastassem as colecções exibidas, as aventuras por herói, os desenhos enquadrados por autor, como se não bastasse o apelativo reencontro com o livro “O Céu está vermelho sobre Laramie”, o meu preferido da série “Comanche”, devorado vezes sem conta em pequeno, senti a obrigação de entrar naquela livraria, especializada em banda desenhada de origem franco–belga e a percorrê-la de lés a lés.
Como se não bastassem as memórias avivadas pelos mais desejados livros da infância e primeira adolescência, as revistas da publicação Tintin, agrupadas por ano, contendo as mais variadas histórias publicadas por sequência de duas páginas, em ritmo semanal, como se não bastassem os tomos coleccionados ao longo da vida e se perdidos por empréstimo, de novo comprados, como se não bastasse cada volume jamais adquirido, parecia que várias portas se abriam outra vez, pegava num livro e lembrava-me que fulano tinha aquele, espreitava outro e transportava-me para casa de sicrano, procurava mais um e recordava-me de beltrano a lê-lo.
Como se não bastassem as inaptidões para o desenho, para conjugar cores numa folha, como se não bastassem as dificuldades em descrever espaços e as características físicas das personagens criadas nos exercícios de escrita, devido a uma maior vocação em narrar a acção, resta-me o culto pelo herói solitário, transversal à maioria das obras editadas na nona arte, como é conhecida a BD.
Não encontraria melhor imagem, para anunciar uma suspensão temporária da escrita no labor, por necessidade de elaborar um projecto ficcional, do que a que encerra cada uma das aventuras do cavalheiro solitário: