quarta-feira, maio 28, 2014

Quatro apontamentos sobre as eleições

                A expectativa para estas eleições europeias residia em verificar como seria o voto de protesto do eleitorado. O fenómeno das últimas eleições autárquicas, registado na cidade do Porto, um independente a ganhar a dois partidos colossais, não poderia ser igualado, pela própria exigência da lei eleitoral, que apenas permite a candidatura de partidos políticos. Neste sentido, outras soluções foram encontradas pelos eleitores e bem simples: a maioria preferiu não votar (2/3 dos inscritos nos cadernos eleitorais), outros preferiram o voto em candidatos sem perfil político (MPT e LIVRE) e os restantes foram às urnas e não preencheram o boletim, ou então, rabiscaram-no em demasia, ultrapassando o estipulado na validação. Entre brancos e nulos somaram-se perto de 8% dos votos. Razão suficiente para um partido eleger a sua candidata e poder continuar a adiar a sua “morte” anunciada (BE).

                Pelos resultados apurados percebe-se que o eleitorado fiel votou sem surpresas. Os partidos históricos captaram 2.358.881 votos. Ao verificarmos a intenção de voto entre eleições similares pode-se depreender que o voto do eleitorado de direita encaminhou-se para o MPT. O verdadeiro voto escrutinado penalizador da política do governo. Sem fazer comparações com outros países europeus, nos quais os partidos marginais, ou anti europeus, conseguiram votações extraordinárias, depreende-se que o discurso e a atitude do cabeça de lista daquele partido agradaram aos portugueses. A eleição do segundo da lista, por arrasto, tornou o resultado eleitoral formidável, premiando uma polémica figura pública nacional, presença constante na televisão, não deixando por isso, o eleitorado indiferente à sua pessoa.

Sem conseguir eleger ninguém, o LIVRE foi uma agradável surpresa eleitoral, sobretudo, no concelho de Lisboa. Longe da militância obtusa, algum do eleitorado de esquerda preferiu escolher um, agora, ex-eurodeputado, um novel partido, sem estruturas locais disseminadas pelos concelhos do país, nem pelos mais variados sindicatos. Um voto do leitor esclarecido, habituado a ler as crónicas do líder deste partido, incisivo para sancionar forças semelhantes, que aparentavam um discurso de abertura e no entanto, vieram a revelar-se tão ou mais ortodoxas que aquelas que tanto criticavam.      

O último apontamento para as consequências do resultado desanimador do PS. Parece que desta é de vez. A liderança amorfa passou a ser posta em causa e obviamente perfilha-se a sua sucessão. Espera-se que a vassourada seja generalizada e que os seus apoiantes, mais preocupados com o seu feudo, sejam colocados na prateleira da inutilidade política.

                66% de abstenção não podem deixar ninguém calado. É o apontamento extra. Eleições sem adesão deviam obrigar a repensar a lei eleitoral. Mesas de voto para 1.100 eleitores são um exagero, no número de pessoas envolvidas no escrutínio. Com os números do último domingo, cada mesa deveria estar preparada para receber 3.000 potenciais eleitores. Obviamente que isto deixaria muito militante sem a gratificação dos 50 euros, livres de impostos e isso seria uma dor de cabeça para os partidos políticos.

 

(a publicar no dia 29/05/14)

quarta-feira, maio 07, 2014

Cruzes

Nasci numa época em que a diferença ainda era incompreendida e mesmo motivo para emissão de juízos.

Cresci canhoto.

Em criança pintar, desenhar e mais tarde escrever, foram actividades desenvolvidas com a mão esquerda. Recordo bem a cara dos que me viam a pegar no lápis ou na esferográfica. A mão atravessava o caderno ou folha. Pousava os dedos mindinho e  anelar no cabeçalho e segurando no utensílio de escrita, com os outros três,  inclinava a mão para o início do papel, ou seja, para a esquerda. Quem olhava, via a minha mão a fazer um acento circunflexo sobre o caderno. Ângulos e contra ângulos para fazer algo tão natural como escrever. É certo que a forma por mim adoptada trazia-me inconvenientes. A mão ao deslizar para a direita passava por cima de tinta fresca e arrastava-a, o que era uma maçada em questões de apresentação de texto. Tudo se resolvia com uma esferográfica adequada, ou com o mais simpático lápis, fosse qual fosse o seu número.

A aptidão manual ficou condicionada por ser canhoto. Todos os trabalhos eram determinados pelas ferramentas não serem apropriadas à mão esquerda. Ou somente pelo facto de ser desajeitado.

Se com as mãos era assim, com os pés, um desastre. Canhoto a jogar à bola, jamais entendi o que fazer para progredir com ela. Remeti-me à defesa, desde cedo, ganhando por vezes bolas aqueles que ousavam fintar-me sobre o meu lado esquerdo. Quando o adversário entendia a minha condição, passando-me pela direita, eu só o via a fugir.

Em casa não era o único. O meu irmão Luís também alinha pelo lado esquerdo. Na escola primária havia mais alguns. Adorávamos ficar lado a lado, tal como os destros, para os nossos braços não chocarem. Em secretárias colocadas aos pares, com um canhoto à esquerda e um destro à direita, não havia qualquer atropelo. Já com as posições ao contrário, é fácil entender o que acontecia.

No meu percurso de estudante ouvi de tudo acerca dos canhotos. Ouvir uma professora em 1983 a afirmar que conhecia um estudo indicativo que, ser canhoto era sinal de um certo grau de deficiência, foi a maior prova a que estive sujeito. A data surge para se perceber como era o pensamento no ensino naquela época. 

Tive dificuldades em aprender a tocar instrumentos musicais, pois nem ousei virar umas cordas ao contrário, em frente ao professor, para não lhe baralhar o esquema mental.

Fiz natação, com respirações bilaterais, no entanto, o movimento do meu braço direito era sempre motivo para criticas.

Avancei na idade, sem saber o que era entrar com um pé direito.

Quando passei a eleitor, não se me colocou nenhuma dúvida. Sendo totalmente canhoto, a minha simpatia caiu para a defesa das minorias. Não concebia outra ideia, senão uma posição extrema.

Na inspecção militar, um fardado ao fazer-me o teste oftalmológico mandou-me encerrar o olho esquerdo. Vi e distingui as letras todas com o olho direito. Ao contrário, disse-me o da farda. Abri o esquerdo e fechando o direito, só via traços. Fiquei em silêncio, à espera de focar melhor, pensando tratar-se de uma desfocagem momentânea. O homem insistiu e lá comecei a atirar com as letras que parecia ver. Quando fiquei de olhos abertos, envergonhei-me com a troca de letras de grafismo semelhante. O militar comentou comigo, não dei a importância devida. Não podia conceber ver mal do olho esquerdo. Logo desse olho!?

O que é certo, é que este facto alterou a minha vida e pensamento. Mesmo como eleitor, colocando-me ao centro.

Passei a utilizar ferramentas com a mão direita, desenvolvi competências que não esperava, como dactilografar no computador com duas mãos, ainda assim, utilizo o rato do pc com a mão esquerda. Por vezes, se estou com a mão esquerda ocupada, consigo pegar na esferográfica com a mão direita e rabiscar o que me interessa. Um gesto não inato, estranhando sempre que pouso a caneta. Ler o que escrevo nessas condições, é um exercício ainda difícil.

Casei com uma canhota, claro. Filhos, ambos destros.

As minhas competências do outro lado foram aumentando. Ao ponto de conseguir rematar com o pé direito, num jogo caseiro, direitinho para a baliza.

Já a capacidade de visão foi diminuindo. O tropa tinha razão, bem me avisou, embora não fosse por isso que me livrei do serviço. O olho esquerdo vê muito pior que o direito, constatei dez anos depois da inspeção.

Isso condiciona-me o pensamento. Agora com o lado esquerdo ofuscado, começarei a estimular outras competências? E como eleitor o que sucederá?

 

(a publicar no dia 08/05/14)