quarta-feira, maio 07, 2014

Cruzes

Nasci numa época em que a diferença ainda era incompreendida e mesmo motivo para emissão de juízos.

Cresci canhoto.

Em criança pintar, desenhar e mais tarde escrever, foram actividades desenvolvidas com a mão esquerda. Recordo bem a cara dos que me viam a pegar no lápis ou na esferográfica. A mão atravessava o caderno ou folha. Pousava os dedos mindinho e  anelar no cabeçalho e segurando no utensílio de escrita, com os outros três,  inclinava a mão para o início do papel, ou seja, para a esquerda. Quem olhava, via a minha mão a fazer um acento circunflexo sobre o caderno. Ângulos e contra ângulos para fazer algo tão natural como escrever. É certo que a forma por mim adoptada trazia-me inconvenientes. A mão ao deslizar para a direita passava por cima de tinta fresca e arrastava-a, o que era uma maçada em questões de apresentação de texto. Tudo se resolvia com uma esferográfica adequada, ou com o mais simpático lápis, fosse qual fosse o seu número.

A aptidão manual ficou condicionada por ser canhoto. Todos os trabalhos eram determinados pelas ferramentas não serem apropriadas à mão esquerda. Ou somente pelo facto de ser desajeitado.

Se com as mãos era assim, com os pés, um desastre. Canhoto a jogar à bola, jamais entendi o que fazer para progredir com ela. Remeti-me à defesa, desde cedo, ganhando por vezes bolas aqueles que ousavam fintar-me sobre o meu lado esquerdo. Quando o adversário entendia a minha condição, passando-me pela direita, eu só o via a fugir.

Em casa não era o único. O meu irmão Luís também alinha pelo lado esquerdo. Na escola primária havia mais alguns. Adorávamos ficar lado a lado, tal como os destros, para os nossos braços não chocarem. Em secretárias colocadas aos pares, com um canhoto à esquerda e um destro à direita, não havia qualquer atropelo. Já com as posições ao contrário, é fácil entender o que acontecia.

No meu percurso de estudante ouvi de tudo acerca dos canhotos. Ouvir uma professora em 1983 a afirmar que conhecia um estudo indicativo que, ser canhoto era sinal de um certo grau de deficiência, foi a maior prova a que estive sujeito. A data surge para se perceber como era o pensamento no ensino naquela época. 

Tive dificuldades em aprender a tocar instrumentos musicais, pois nem ousei virar umas cordas ao contrário, em frente ao professor, para não lhe baralhar o esquema mental.

Fiz natação, com respirações bilaterais, no entanto, o movimento do meu braço direito era sempre motivo para criticas.

Avancei na idade, sem saber o que era entrar com um pé direito.

Quando passei a eleitor, não se me colocou nenhuma dúvida. Sendo totalmente canhoto, a minha simpatia caiu para a defesa das minorias. Não concebia outra ideia, senão uma posição extrema.

Na inspecção militar, um fardado ao fazer-me o teste oftalmológico mandou-me encerrar o olho esquerdo. Vi e distingui as letras todas com o olho direito. Ao contrário, disse-me o da farda. Abri o esquerdo e fechando o direito, só via traços. Fiquei em silêncio, à espera de focar melhor, pensando tratar-se de uma desfocagem momentânea. O homem insistiu e lá comecei a atirar com as letras que parecia ver. Quando fiquei de olhos abertos, envergonhei-me com a troca de letras de grafismo semelhante. O militar comentou comigo, não dei a importância devida. Não podia conceber ver mal do olho esquerdo. Logo desse olho!?

O que é certo, é que este facto alterou a minha vida e pensamento. Mesmo como eleitor, colocando-me ao centro.

Passei a utilizar ferramentas com a mão direita, desenvolvi competências que não esperava, como dactilografar no computador com duas mãos, ainda assim, utilizo o rato do pc com a mão esquerda. Por vezes, se estou com a mão esquerda ocupada, consigo pegar na esferográfica com a mão direita e rabiscar o que me interessa. Um gesto não inato, estranhando sempre que pouso a caneta. Ler o que escrevo nessas condições, é um exercício ainda difícil.

Casei com uma canhota, claro. Filhos, ambos destros.

As minhas competências do outro lado foram aumentando. Ao ponto de conseguir rematar com o pé direito, num jogo caseiro, direitinho para a baliza.

Já a capacidade de visão foi diminuindo. O tropa tinha razão, bem me avisou, embora não fosse por isso que me livrei do serviço. O olho esquerdo vê muito pior que o direito, constatei dez anos depois da inspeção.

Isso condiciona-me o pensamento. Agora com o lado esquerdo ofuscado, começarei a estimular outras competências? E como eleitor o que sucederá?

 

(a publicar no dia 08/05/14)