Se em 1986 me perguntassem se eu queria assistir a concertos de bandas como Gang of four, Buzzcocks, Joy Division, ou The Clash, a resposta ponderada seria negativa. Algumas dessas bandas estavam terminadas, ou em final de carreira, já não fazendo digressões e por isso, por muito que eu quisesse, não havia qualquer hipótese de as ver. Acrescente-se que nesses anos, eram raras as aparições de bandas desse género musical (pós-punk) em Portugal.
Se no mesmo ano, me perguntassem se eu queria assistir a concertos de músicos como Gilberto Gil, Maria Bethânia, Caetano Veloso ou Chico Buarque, a resposta seria igualmente negativa. As razões para a resposta seriam de motivo diferente, mais relacionados com o gosto musical, numa época em que encetei um processo de “revolução cultural”, optando por caminhos diferentes, mais próximos de bandas como as atrás mencionadas, desligando-me de todo um percurso auditivo, em que passei a excluir música popular brasileira, música jazz, a maioria das bandas da década de 60 e de 70.
Trinta anos depois, dos músicos das bandas mencionadas no primeiro parágrafo, apenas tive oportunidade de assistir à performance de um deles, Peter Hook, enquanto baixista de acompanhamento da The Durutti Column. Em contrapartida, dos brasileiros referidos, já assisti a concertos de três desses quatro nomes, ficando apenas de fora “seu” Chico. Enquanto não surge essa oportunidade (na sua última aparição em Portugal não consegui assistir ao seu espetáculo), não posso deixar de o nomear como um dos romancistas que mais prazer me deu a leitura de sua obra. “Budapeste”, “Leite Derramado” e “Benjamim” foi empreitada fácil, enriquecedora e gratificante. O livro “O meu irmão alemão” é igualmente uma narrativa enriquecedora e compensadora, só que a versão foi editada ao celebrar-se o Acordo Ortográfico de 90. Difícil ler aquele português tropical. Não o português europeu saído desse acordo, sem as consoantes mudas, que só estorvam quem quer escrever. Um português, que nos entra em casa, nas telenovelas, nos filmes, na música e a que estamos auditivamente muito habituados. Quando se trata de leitura, o caso muda de figura.
Ouvir “Cadê”, é facilmente interiorizado. Sabemos que significa “onde é que está”. Ler a mesma palavra é estranho. Mas, aproveitando o final da frase anterior, primeiro estranha-se, depois entranha-se.
O Português é composto por vários sotaques. No continente europeu, uma mudança geográfica de 50 quilómetros pode significar uma fonética diferente da língua e o uso de expressões próprias. De Norte ao Sul, do interior ao litoral, em Portugal, ouvem-se pronúncias características, que nos permitem catalogar a origem dos faladores. O mesmo acontece nos arquipélagos do atlântico norte. Como o povo português andou pelos quatro cantos do mundo, a língua fala-se na América, Africa e Ásia, ou às portas da Oceânia. Em cada um desses países de expressão lusófona, existe um sotaque diferente para a língua portuguesa.
Outra particularidade da língua é a sua origem. Popular. Escrita por Camões em 1572, passou a ser utilizada por reis, nobres e clero muito mais tarde do que a falavam burgueses e o povo.
A erudição é de salutar.
Não deve ser renegada a sua origem, nem a sua difusão pelo mundo e a sua adaptação aos sons vindos de fora.
Parece ter tudo começado com Ulisses. O nome da povoação, fundada pelo navegador grego, foi latinizado com o sufixo “ipo” para Olissiipo e daqui nasceu a Lisboa, bem portuguesa.
Ao longo dos séculos, os estrangeirismos foram adaptados pelos nacionais (como em todas as línguas). Veja-se, por exemplo, o que os Portugueses fizeram à Banana. Em contrapartida, os sons franceses, germânicos, africanos e ingleses foram assimilados pelo nosso povo e nasceram novas palavras. A mais curiosa que encontrei é a origem de armadores, proveniente do termo popular “armãos”, a deriva escrita do plural do nome “Herman”, como se designava popularmente os marinheiros que navegavam do centro da Europa até cá, para trocas comerciais.
E quando vieram as marcas de produtos, toca a usar esses nomes. Jeep derivou em Jipe mas, cotonete ficou sempre cotonete, velcro sempre velcro, lycra igualmente. Chiclete passou mais tarde a pastilha elástica, gilete virou lâmina de barbear, jet-sky passou a moto de água. No entanto, ainda há produtos que não perdem a designação da primeira marca a chegar ao mercado, em especial, os produtos farmacêuticos. Aspirina será sempre aspirina, por muito que se diga comprimidos de acido acetilsalicílico e Botox até hoje é Botox, por mais operações estéticas que se façam.
Não posso deixar de citar os regionalismos com origem em marcas. Precisamente o tão característico e nortenho, “cimbalino”. Designação na cidade do Porto para café, precisamente por ter origem na marca italiana de máquinas de café expresso “La cimbali”.
Se a língua é a vontade de todo um povo, é ótimo que se retirem algumas consoantes mudas. Dá ação à língua, no entanto, é um facto, que se cortou de mais. Um egípcio será um habitante do Egipto e não é subtileza dizê-lo, é uma verdade incontornável, pois apesar dos 26 anos de Acordo Ortográfico, não existe consenso dos dois lados do atlântico.
Entre o regredir ou corrigir lapsos iniciais existe uma diferença. Pode-se perfeitamente discordar do acordo, pode-se denegri-lo, só que não me convencem das vantagens em escrever mais um “P” em ótimo, ou mais um “C” em ação. Enquanto em facto, lemos o “C” de facto, existem outros factoides (termo utilizado no Brasil, após acordo ortográfico) que nos unem aos outros povos que se expressam em Português.
A lusofonia é uma realidade Atlântica, que estende ao Indico e ao Pacífico. Não se resume às diferentes sonoridades ou de grafia das palavras, significa a possibilidade de entendimento de milhões de habitantes.
Não podemos permanecer agarrados à dicotomia café – bica, fino – imperial, ao pé – à beira, que durante anos identificou o norte e o sul do país. É preciso saber viver com as diferenças e entranhar o novo acordo ortográfico.
(a publicar no dia 28/04/16)