O corvo sobrevoou a Praça. Era final de tarde, o comércio já tinha fechado e poucos humanos ali permaneciam. Avistou um gato perto dele. Era o seu alvo. Já o seguia há alguns dias mas hoje não escapava, a oportunidade era única.
- Boa tarde, Sr. Mago! – chamou o Corvo.
O gato olhou e apenas viu um Corvo, não queria acreditar.
- Ó ave necrófaga, como sabes o meu nome de família? Farei por acaso, parte do teu cardápio? – perguntou o gato.
- Tem calma, não precisas de te preocupar. Nem estás para morrer, nem eu aprecio comer cadáveres, sou mais do género caçador – prefiro a carne quente. Como podes comparar pela diferença do nosso tamanho, não pretendo ter problemas contigo – assegurou o corvo.
- Explica-me então, como sabes o nome da minha família – ripostou o gato Mago.
- Caro jovem, tenho-te seguido sem dares conta, pelas ruas da cidade. Quando te vi, fizeste-me lembrar um velho conhecido. A forma de andar, esse ar majestoso recordaram-me um gato, que tal como eu, foi personagem de um livro antigo. Observei-te melhor...
Mago interrompeu: Olha lá! Esse gato era meu tetra – avó, o orgulho da família. É engraçado ainda te lembrares dele. Mas ouve, tu és o Corvo Vicente, o rebelde?
- Nem mais! Apesar de cada um ter o seu capítulo, os Bichos conheciam-se e por isso foi fácil rever em ti a tua ascendência – disse Vicente.
Mago não queria acreditar. O Corvo Vicente, esse herói mítico da bicharada, ali em frente a ele:
-Ó insubmisso, ó dissidente! Sempre apreciei a tua coragem em trilhares o teu próprio destino. Nunca consegui ser como tu, entreguei-me sempre à mão que me alimenta. Procurei sempre o lado cómodo da vida e com isso sofro bastante.
- É mal de família, procuram sempre o aconchego do colo humano e perdem a vossa dignidade.
- Dignidade e não só... – completou Mago.
- Como fazem então para ter herdeiros? – perguntou Vicente, com um sorriso no bico.
- Não sejas trocista, Corvo anarca. Como deves calcular, transmitimos de pais para filhos, o que significa privação. Fingimos ser jovens e brincalhões até conseguirmos conquistar alguma fêmea. Não esperas que te conte mais pormenores, pois não? – suplicou Mago.
- Não, amigo Mago. Brincava apenas contigo. Devo respeitar-te como é evidente. Ainda por cima dizes que sofres... – confortou Vicente.
- É mesmo. Os outros animais não entendem. A opção por este estado não é minha. Isto é... directamente! Os meus donos é que são responsáveis pelo meu estado assexuado. Quando saio, outros gatos metem-se comigo, insultam-me e agridem-me – lamentou o gato.
Vicente sentiu a mágoa de Mago.
- A intolerância neste casos é grave. A orientação sexual de cada ser vivo deve ser respeitada pelo outros ou, no teu caso, a falta dela.
- Pois deveria – disse Mago. Mas, houve lá Vicente, que idade tens? Deves ser muito velho?
- Nem os conto. Não penses que saí da Arca e sobrevivi, para ficar a contar os anos da minha vida. – refilou o pássaro. Desafiei Deus e ousei enfrentá-lo para enquanto os humanos se lembrarem de mim, ser imortal.
- Compreendo o teu desejo. Não me digas que visitas os Bichos ou os seus descendentes por esse mundo fora!? – perguntou Mago.
- Seria interessante para manter viva a obra do nosso criador. Passei por cá algumas vezes e mal sonhava encontrar um descendente do velho Mago. Enquanto foram vivos, convivi com todos. Entretanto, com as gerações seguintes, tem sido mais difícil...
- O que fazias nesta cidade? – questionou Mago.
- Nas viagens do meu reino para o litoral, costumo passar por aqui. Por vezes, observo factos interessantes de alguns lugares e volto...
- E aqui o que te agradou? – voltou a interromper Mago.
- Directamente não te sei responder. O que mais me surpreendeu foi um acto de rebeldia.
- Aqui, Vicente? Deves estar enganado? – admirou-se Mago.
- Está-te no sangue, não aceitas nada que altere o teu conforto. Essa forma cómoda de ser, de estar, digna do velho Mago. Não havia nada melhor que os braços da Dona. O borralho da velha cozinha e as horas ali perdidas a dormir.
- Sempre gostei, também. Mas Vicente, explica melhor essa tua história, da revolta...
- Lembras-te quando estavam a montar estas estruturas metálicas com vidro aqui na Praça? – perguntou Vicente e sem esperar resposta continuou: Numa das ruas, essa montagem foi interrompida um dia. Uns humanos alegavam ser ilegal retirar-lhe o trânsito e transformá-la em zona pedonal. Passava por cá e assisti a tudo. Vi que argumentavam com clareza e mesmo perdendo a batalha, foram para a luta política.
- Estou recordado, mas sem perceber onde queres chegar – disse Mago.
- Pois, aqui vai. Como deves compreender actos reivindicativos, com fundamento e sem violência, são por mim muito apreciados. Voltei a passar por cá, passados alguns meses e felicitei-me ao ver a vitória das suas cores partidárias. Como não conheço as gentes desta cidade, acreditei que havia relação entre os dois factos e regozijei-me por isso.
- Ui Vicente, ui! Estás enganado, Corvo – atirou Mago.
- Fico espantado! Tal como fico quando ao fim destes anos todos, voo para cá de novo e vejo a rua no mesmo estado. Afinal para que serviu toda aquela argumentação?
- Não me arranjes problemas. Essas coisas de humanos e política não são para mim. Mesmo os meus donos não estão para se chatear. Política só via TV, o professor e pouco mais. Aqui o que aconteceu é que as pessoas ficaram fartas de obras e o que querem é tranquilidade. Imagina só, obras outra vez. Querias o quê? Que tirassem as estruturas todas?
- Não, acomodado Mago, apenas as necessárias para repor a normalidade na fluidez do trânsito da cidade. Mas, tu é que estás enganado! O resto da cidade está em obras, só aqui no centro é que continua tudo parado.
- Ouve Vicente, esquece. Ninguém quer saber disso. Porque te preocupas com isso? Nem sequer és de cá. Passas de vez em quando. Desta vez viste-me e isso é que é importante.
- Sim, mas não só... Pelo que ouço, pressinto que tens alguma razão, jovem Mago. Vou, então!
- Espera não vás ainda. Gostava de falar melhor contigo, sabes dos outros Bichos ? – gritou desesperado o gato.
- Sabes Mago, irrita-me essa tua passividade. Vou procurar outras paragens, enganei-me. Descobri por ti o meu erro, costumo não me enganar nestas coisas, não gosto de me desiludir.
- Para onde vais, infame Corvo? – perguntou irado o gato.
- Para perto do Mar, gato... – despediu-se Vicente, iniciando o voo.
NOTA: Com a devida homenagem, foram adaptadas duas personagens de “Os Bichos” de Miguel Torga.
compilação dos textos publicados no jornal labor (www.labor.pt), de 2004 a 2020.
segunda-feira, março 27, 2006
segunda-feira, março 13, 2006
Do absurdo à modernidade
Chegara o último dia. O momento de retirar os objectos pessoais do cacifo, fechar a porta e deixar ficar a chave. Retirar o número de colaborador daquele armário e sem olhar para trás, abandonar aquele balneário.
Uma vida naquela fábrica.
Entrara novo, contrariando a vontade do pai que o queria ao seu lado a trabalhar no duro, nos campos. Fizera a instrução primária entre o bater da régua e o da sachola. Cedo aprendera o que era cavar fundo. Ter calos nas mãos. Trabalhar de sol a sol e com pouco dinheiro na carteira. Um dia fartou-se. Os amigos da rua trabalhavam nas fábricas e ganhavam salário. Pouco mas certo. Dos campos só incerteza. Enchera-se de coragem e fora pedir emprego ao Orreiro. “Sim senhor, venha, estamos a precisar de gente nova”.
O pai não queria acreditar, um filho operário, com tanto trabalho em casa. Lá se convenceu aos poucos. Para ele, era uma mudança grande. Entrou disciplinado, cumprindo o que o encarregado lhe dizia. O homem percebia daquilo, explicava-lhe tudo. Como fazer, como organizar o posto de trabalho, quantas peças precisavam de fazer por dia para cumprir a encomenda dos clientes e assim, incutiu-lhe o gosto da profissão.
Chamaram-no para a tropa e consequentemente embarcou para a guerra. Regressou e o pai acreditou que o mato lhe mudara a vontade e ficaria outra vez por ali. “Qual quê!” Voltou a bater à porta da fábrica, ficara a promessa de reintegração na empresa. Feliz, voltou a desempenhar as suas funções. O encarregado já lá não estava, tinha-se estabelecido. Ainda o convidou, mas seria ingrato com as pessoas que lhe prometeram e tinham esperado por ele.
Dividia o seu tempo entre a fábrica e a ajuda ao progenitor, na lavoura. Entretanto casara e o pai cedera-lhe metade da sua casa. Ficara com casa própria, a troco das ajudas ao pai. Uma vida de sacrifício. Comprara também uma motorizada, para se deslocar mais rapidamente de um local para outro e assim, aproveitar melhor os dias. Veio a revolução e temeu o pior. Período difícil, com convulsões várias. Chamaram-lhe reaccionário, calmamente mostrou os calos profundos nas palmas das mãos e rodando-as, exibiu os dedos todos negros e exclamou: “são mãos de operário e lavrador, chama-me o que quiseres, pois eu sei o que sou.”
Quando a calma voltou, reparou que nunca tivera um ordenado em atraso mesmo tendo passado alguns dias sem trabalhar. Surgiu uma hipótese para mudar de sector de produção, aceitou. Trabalharia no turno da tarde, o que daria jeito, para de manhã ajudar no campo. Agora, na fábrica as contas eram outras, havia gamas operatórias e era necessário fazer tantas peças por hora. Cumpria sem problema. A equipa com quem trabalhava era exemplar. Recebiam um excelente prémio de produção. Por vezes, faltavam colegas do turno da manhã e pediam-lhe para ir mais cedo. Fazia o sacrifício ao acumular estas horas, mas não se importava, sempre era mais um dinheirito.
A empresa prosperou e foi vendida a estrangeiros, cada área de negócio um comprador diferente. Ficara triste, via partir quem o empregara e o desmembrar da empresa foi difícil de aceitar, sobretudo pela separação dos amigos da primeira hora. No entanto, as condições salariais melhoraram e decidira-se a comprar um carro, até porque a família estava maior.
Envolvido no ritmo diário das entregas aos clientes, via os filhos a crescer, a progredirem nos estudos e acreditou que o futuro deles seria diferente. Entretanto, o pai adoecera e acamara. Cuidados redobrados, repartidos entre ele e a mulher. Um dia chamaram-no ao gabinete do director de produção, a empresa ia empregar muita gente e era preciso apostar em alguém da velha guarda para encarregado, “...os próximos tempos serão extremamente importantes para todos. Até hoje conseguimos estar neste sector pelo baixo preço do nosso artigo, agora os desafios serão outros. Temos que apostar na qualidade do nosso produto e garantir que o produto não sai daqui defeituoso. Teremos que aumentar a capacidade de produção e estar preparados para muito trabalho”, lembrava-se bem do que lhe tinham dito. A prontidão da resposta não foi do agrado das chefias, em primeiro lugar alegou o problema familiar, o estado do pai, a ausências de ajudas, com os filhos a estudarem fora, etc... Depois rematou dizendo, não ser prestigiante para ninguém ser encarregado naquela empresa, antes pelo contrário. “Além disso, não passo de um labrego. Não tenho paciência para papéis, reuniões e essas actividades de encarregado.” As chefias perceberam que seria impossível demovê-lo. Ainda assim, jamais desde essa data, tal episódio lhe foi referido ou apontado.
Os anos passaram-se e à alegria pela licenciatura dos filhos, infelizmente sucedeu a morte do pai. Como único descendente, herdou-lhe os bens, incluindo as terras de cultivo. Não as queria abandonadas, mas sozinho iria ser difícil. Além disso, surgiam notícias sobre a agricultura, que o deixavam confuso, não cultivar, não plantar isto e aquilo, semear somente alguns produtos e em doses controladas... Optou por as manter em regime de fim de semana, mais para consumo doméstico, do que para venda.
Os filhos não regressaram à terra natal. “Da minha geração, quem sai para estudar, raramente volta”, diziam-lhe os filhos. “O que faço com as terras?” perguntava-lhes por vezes, “vende-as, antes que não valham nada”. Soube por um velho amigo, que as terras tinham ficado incluídas na Reserva Agrícola Nacional e por isso ninguém podia construir ali. De início não percebeu. Só quando lhe explicaram o que as terras ficaram a valer, é que compreendeu o que tinha perdido.
Decidido, continuou a sua vida. Ajudou os filhos como podia, uma entrada para o apartamento, mais uma percentagem do valor do carro para suavizar as prestações. Os colegas mais próximos brincavam com ele, dizendo tratar-se do homem mais rico da fábrica, tal eram as ofertas, mais a área de cultivo, casa própria e tudo. Ele ria-se.
Os mais velhos chegavam à idade crítica da reforma. Eles felizes, ele triste. Não queria reformar-se, tentava esticar sempre mais o esforço, para acompanhar o exigido pelos tempos das gamas operatórias. Viu partir muitos do “antigamente”: colegas, encarregados, chefias, engenheiros. De todos se despediu, pensando “um dia serei eu, só espero que falte muito”.
Ainda sorriu quando anunciaram o adiamento da idade da reforma para os 65 anos. O seu ritmo era mais lento e já começava a haver pequenas paragens por causa do seu desempenho. A empresa educadamente chamara-o para negociar, era tempo de dar o lugar aos novos. Dedicar-se aos netos, visita-los mais vezes, olhar pelo campo, dizia-lhe o engenheiro simpaticamente, quando lhe anunciou o propósito. Aceitou, ficando apreensivo. Brevemente seria cessado o contrato, bem indemnizado evidentemente e poderia inscrever-se no fundo de desemprego, até passar a receber a merecida reforma.
Mais de quarenta anos de trabalho naquela empresa. Apagou a luz do balneário. Saiu e encostou a porta. Era noite como sempre. Cá fora o silêncio já dominava. Os aceleras já tinham arrancado rumo a casa. Apareceu um vigia para se despedir. “Passe por cá para nos visitar!”.
Surpresa, o engenheiro também ali estava! Não se esquecera que era o seu último dia. Vinha dar-lhe um abraço e acompanhá-lo ao carro. “Sai o senhor e passo eu a ser um dos mais antigos”, dizia bem disposto. O gesto do director era simpático e ele estava-lhe reconhecidamente grato. Emocionou-se. Os olhos lacrimejaram. Aguentou a torrente, disfarçou a voz e disse: “Muito obrigado pela atenção. Não é um momento fácil, como deve compreender.” O engenheiro pôs-lhe a mão no ombro e recordou-lhe: “Esta empresa sempre teve um rosto humano, desde a sua fundação. Cabe-me agora pela antiguidade, continuar a manter viva essa tradição.”
Enquanto caminhavam o engenheiro puxou de um cigarro, ofereceu outro, o que foi recusado. “O importante é o senhor saber ocupar-se nos próximos tempos”, recomendava-lhe. Pensou não dizer nada, mas a sinceridade do interlocutor mudou-lhe as ideias: “Como sabe, senhor engenheiro, tenho netos pequenos, os filhos longe e formados. Fiz a minha vida dedicada ao trabalho, aqui na fábrica e no campo herdado dos meus pais. Dia após dia naqueles campos enquanto os outros colegas descansavam. Férias só as tive quando os filhos começaram a pedir praia. Uns dias ali no Furadouro, no Parque de Campismo e ainda assim, vinha muitas vezes ver o estado das terras. Já pensei dedicar-me a elas outra vez. Mas o dinheiro que vou ganhar e a minha idade não me permitem ter muitas esperanças. Agora, pensando bem, gostava de as vender. Os meus filhos, atempadamente disseram-mo. Cometi a asneira de as manter. Sempre deu para poupar na mercearia, ou no hipermercado. Quero vender as terras para desta forma ajudar os meus filhos e netos a terem uma vida melhor. Estou a ficar cansado e queria ficar somente com a pequena horta lá da casa. Chega bem para mim e para a minha esposa. O problema é que o campo está inserido na Reserva Agrícola Nacional, o que é um disparate numa terra urbana como esta”. O engenheiro seguiu atentamente, sem ousar interrompe-lo. “Estive-me a informar acerca de como alterar estas leis. Existe um regulamento de urbanismo, chama-se PDM, como deve saber. Pois, esse regulamento teria que ser alterado e aprovado pela autarquia. Depois é enviado para Lisboa, para o Governo por sua vez, o aprovar. Tudo isto demora anos. Vai ser a minha longa ocupação, nos próximos tempos“. O cigarro acabava, mas o monólogo prosseguia. “Bem sei que não passo de um operário sexagenário, com poucos estudos, no entanto, convencendo o Presidente da Câmara do erro cometido no passado, é possível conseguir alguma mudança. Onde é que já se viu numa cidade moderna, manter uma zona agrícola, quando já ninguém cultiva? É um absurdo! Que vantagens trouxe para a cidade? Algum bem estar? Nada disso. Manteve-se isto verde, é certo. Não se pode construir é a única conclusão...”
A narrativa é aqui interrompida, por se duvidar da autoria do transcrito. Apesar de atribuir todas estas frases ao emissor, parece-me que o receptor as assimilou e transmitiu por suas próprias palavras, acrescentando um ponto, como qualquer contador.
Ao autor mais do que esclarecer este assunto com os leitores, gostaria, se lhe é permitido, de evidenciar a sua disponibilidade para ajudar o nosso operário, pré – reformado (fictício é claro), em qualquer acção por ele desencadeada no sentido de alterar o Plano Director Municipal, atrás apresentado pela sigla PDM. Claro está, caso sejam verdadeiras as afirmações proferidas e desde que a tão desejada modernidade da cidade seja conseguida.
Uma vida naquela fábrica.
Entrara novo, contrariando a vontade do pai que o queria ao seu lado a trabalhar no duro, nos campos. Fizera a instrução primária entre o bater da régua e o da sachola. Cedo aprendera o que era cavar fundo. Ter calos nas mãos. Trabalhar de sol a sol e com pouco dinheiro na carteira. Um dia fartou-se. Os amigos da rua trabalhavam nas fábricas e ganhavam salário. Pouco mas certo. Dos campos só incerteza. Enchera-se de coragem e fora pedir emprego ao Orreiro. “Sim senhor, venha, estamos a precisar de gente nova”.
O pai não queria acreditar, um filho operário, com tanto trabalho em casa. Lá se convenceu aos poucos. Para ele, era uma mudança grande. Entrou disciplinado, cumprindo o que o encarregado lhe dizia. O homem percebia daquilo, explicava-lhe tudo. Como fazer, como organizar o posto de trabalho, quantas peças precisavam de fazer por dia para cumprir a encomenda dos clientes e assim, incutiu-lhe o gosto da profissão.
Chamaram-no para a tropa e consequentemente embarcou para a guerra. Regressou e o pai acreditou que o mato lhe mudara a vontade e ficaria outra vez por ali. “Qual quê!” Voltou a bater à porta da fábrica, ficara a promessa de reintegração na empresa. Feliz, voltou a desempenhar as suas funções. O encarregado já lá não estava, tinha-se estabelecido. Ainda o convidou, mas seria ingrato com as pessoas que lhe prometeram e tinham esperado por ele.
Dividia o seu tempo entre a fábrica e a ajuda ao progenitor, na lavoura. Entretanto casara e o pai cedera-lhe metade da sua casa. Ficara com casa própria, a troco das ajudas ao pai. Uma vida de sacrifício. Comprara também uma motorizada, para se deslocar mais rapidamente de um local para outro e assim, aproveitar melhor os dias. Veio a revolução e temeu o pior. Período difícil, com convulsões várias. Chamaram-lhe reaccionário, calmamente mostrou os calos profundos nas palmas das mãos e rodando-as, exibiu os dedos todos negros e exclamou: “são mãos de operário e lavrador, chama-me o que quiseres, pois eu sei o que sou.”
Quando a calma voltou, reparou que nunca tivera um ordenado em atraso mesmo tendo passado alguns dias sem trabalhar. Surgiu uma hipótese para mudar de sector de produção, aceitou. Trabalharia no turno da tarde, o que daria jeito, para de manhã ajudar no campo. Agora, na fábrica as contas eram outras, havia gamas operatórias e era necessário fazer tantas peças por hora. Cumpria sem problema. A equipa com quem trabalhava era exemplar. Recebiam um excelente prémio de produção. Por vezes, faltavam colegas do turno da manhã e pediam-lhe para ir mais cedo. Fazia o sacrifício ao acumular estas horas, mas não se importava, sempre era mais um dinheirito.
A empresa prosperou e foi vendida a estrangeiros, cada área de negócio um comprador diferente. Ficara triste, via partir quem o empregara e o desmembrar da empresa foi difícil de aceitar, sobretudo pela separação dos amigos da primeira hora. No entanto, as condições salariais melhoraram e decidira-se a comprar um carro, até porque a família estava maior.
Envolvido no ritmo diário das entregas aos clientes, via os filhos a crescer, a progredirem nos estudos e acreditou que o futuro deles seria diferente. Entretanto, o pai adoecera e acamara. Cuidados redobrados, repartidos entre ele e a mulher. Um dia chamaram-no ao gabinete do director de produção, a empresa ia empregar muita gente e era preciso apostar em alguém da velha guarda para encarregado, “...os próximos tempos serão extremamente importantes para todos. Até hoje conseguimos estar neste sector pelo baixo preço do nosso artigo, agora os desafios serão outros. Temos que apostar na qualidade do nosso produto e garantir que o produto não sai daqui defeituoso. Teremos que aumentar a capacidade de produção e estar preparados para muito trabalho”, lembrava-se bem do que lhe tinham dito. A prontidão da resposta não foi do agrado das chefias, em primeiro lugar alegou o problema familiar, o estado do pai, a ausências de ajudas, com os filhos a estudarem fora, etc... Depois rematou dizendo, não ser prestigiante para ninguém ser encarregado naquela empresa, antes pelo contrário. “Além disso, não passo de um labrego. Não tenho paciência para papéis, reuniões e essas actividades de encarregado.” As chefias perceberam que seria impossível demovê-lo. Ainda assim, jamais desde essa data, tal episódio lhe foi referido ou apontado.
Os anos passaram-se e à alegria pela licenciatura dos filhos, infelizmente sucedeu a morte do pai. Como único descendente, herdou-lhe os bens, incluindo as terras de cultivo. Não as queria abandonadas, mas sozinho iria ser difícil. Além disso, surgiam notícias sobre a agricultura, que o deixavam confuso, não cultivar, não plantar isto e aquilo, semear somente alguns produtos e em doses controladas... Optou por as manter em regime de fim de semana, mais para consumo doméstico, do que para venda.
Os filhos não regressaram à terra natal. “Da minha geração, quem sai para estudar, raramente volta”, diziam-lhe os filhos. “O que faço com as terras?” perguntava-lhes por vezes, “vende-as, antes que não valham nada”. Soube por um velho amigo, que as terras tinham ficado incluídas na Reserva Agrícola Nacional e por isso ninguém podia construir ali. De início não percebeu. Só quando lhe explicaram o que as terras ficaram a valer, é que compreendeu o que tinha perdido.
Decidido, continuou a sua vida. Ajudou os filhos como podia, uma entrada para o apartamento, mais uma percentagem do valor do carro para suavizar as prestações. Os colegas mais próximos brincavam com ele, dizendo tratar-se do homem mais rico da fábrica, tal eram as ofertas, mais a área de cultivo, casa própria e tudo. Ele ria-se.
Os mais velhos chegavam à idade crítica da reforma. Eles felizes, ele triste. Não queria reformar-se, tentava esticar sempre mais o esforço, para acompanhar o exigido pelos tempos das gamas operatórias. Viu partir muitos do “antigamente”: colegas, encarregados, chefias, engenheiros. De todos se despediu, pensando “um dia serei eu, só espero que falte muito”.
Ainda sorriu quando anunciaram o adiamento da idade da reforma para os 65 anos. O seu ritmo era mais lento e já começava a haver pequenas paragens por causa do seu desempenho. A empresa educadamente chamara-o para negociar, era tempo de dar o lugar aos novos. Dedicar-se aos netos, visita-los mais vezes, olhar pelo campo, dizia-lhe o engenheiro simpaticamente, quando lhe anunciou o propósito. Aceitou, ficando apreensivo. Brevemente seria cessado o contrato, bem indemnizado evidentemente e poderia inscrever-se no fundo de desemprego, até passar a receber a merecida reforma.
Mais de quarenta anos de trabalho naquela empresa. Apagou a luz do balneário. Saiu e encostou a porta. Era noite como sempre. Cá fora o silêncio já dominava. Os aceleras já tinham arrancado rumo a casa. Apareceu um vigia para se despedir. “Passe por cá para nos visitar!”.
Surpresa, o engenheiro também ali estava! Não se esquecera que era o seu último dia. Vinha dar-lhe um abraço e acompanhá-lo ao carro. “Sai o senhor e passo eu a ser um dos mais antigos”, dizia bem disposto. O gesto do director era simpático e ele estava-lhe reconhecidamente grato. Emocionou-se. Os olhos lacrimejaram. Aguentou a torrente, disfarçou a voz e disse: “Muito obrigado pela atenção. Não é um momento fácil, como deve compreender.” O engenheiro pôs-lhe a mão no ombro e recordou-lhe: “Esta empresa sempre teve um rosto humano, desde a sua fundação. Cabe-me agora pela antiguidade, continuar a manter viva essa tradição.”
Enquanto caminhavam o engenheiro puxou de um cigarro, ofereceu outro, o que foi recusado. “O importante é o senhor saber ocupar-se nos próximos tempos”, recomendava-lhe. Pensou não dizer nada, mas a sinceridade do interlocutor mudou-lhe as ideias: “Como sabe, senhor engenheiro, tenho netos pequenos, os filhos longe e formados. Fiz a minha vida dedicada ao trabalho, aqui na fábrica e no campo herdado dos meus pais. Dia após dia naqueles campos enquanto os outros colegas descansavam. Férias só as tive quando os filhos começaram a pedir praia. Uns dias ali no Furadouro, no Parque de Campismo e ainda assim, vinha muitas vezes ver o estado das terras. Já pensei dedicar-me a elas outra vez. Mas o dinheiro que vou ganhar e a minha idade não me permitem ter muitas esperanças. Agora, pensando bem, gostava de as vender. Os meus filhos, atempadamente disseram-mo. Cometi a asneira de as manter. Sempre deu para poupar na mercearia, ou no hipermercado. Quero vender as terras para desta forma ajudar os meus filhos e netos a terem uma vida melhor. Estou a ficar cansado e queria ficar somente com a pequena horta lá da casa. Chega bem para mim e para a minha esposa. O problema é que o campo está inserido na Reserva Agrícola Nacional, o que é um disparate numa terra urbana como esta”. O engenheiro seguiu atentamente, sem ousar interrompe-lo. “Estive-me a informar acerca de como alterar estas leis. Existe um regulamento de urbanismo, chama-se PDM, como deve saber. Pois, esse regulamento teria que ser alterado e aprovado pela autarquia. Depois é enviado para Lisboa, para o Governo por sua vez, o aprovar. Tudo isto demora anos. Vai ser a minha longa ocupação, nos próximos tempos“. O cigarro acabava, mas o monólogo prosseguia. “Bem sei que não passo de um operário sexagenário, com poucos estudos, no entanto, convencendo o Presidente da Câmara do erro cometido no passado, é possível conseguir alguma mudança. Onde é que já se viu numa cidade moderna, manter uma zona agrícola, quando já ninguém cultiva? É um absurdo! Que vantagens trouxe para a cidade? Algum bem estar? Nada disso. Manteve-se isto verde, é certo. Não se pode construir é a única conclusão...”
A narrativa é aqui interrompida, por se duvidar da autoria do transcrito. Apesar de atribuir todas estas frases ao emissor, parece-me que o receptor as assimilou e transmitiu por suas próprias palavras, acrescentando um ponto, como qualquer contador.
Ao autor mais do que esclarecer este assunto com os leitores, gostaria, se lhe é permitido, de evidenciar a sua disponibilidade para ajudar o nosso operário, pré – reformado (fictício é claro), em qualquer acção por ele desencadeada no sentido de alterar o Plano Director Municipal, atrás apresentado pela sigla PDM. Claro está, caso sejam verdadeiras as afirmações proferidas e desde que a tão desejada modernidade da cidade seja conseguida.
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