segunda-feira, março 27, 2006

Vicente e Mago

O corvo sobrevoou a Praça. Era final de tarde, o comércio já tinha fechado e poucos humanos ali permaneciam. Avistou um gato perto dele. Era o seu alvo. Já o seguia há alguns dias mas hoje não escapava, a oportunidade era única.
- Boa tarde, Sr. Mago! – chamou o Corvo.
O gato olhou e apenas viu um Corvo, não queria acreditar.
- Ó ave necrófaga, como sabes o meu nome de família? Farei por acaso, parte do teu cardápio? – perguntou o gato.
- Tem calma, não precisas de te preocupar. Nem estás para morrer, nem eu aprecio comer cadáveres, sou mais do género caçador – prefiro a carne quente. Como podes comparar pela diferença do nosso tamanho, não pretendo ter problemas contigo – assegurou o corvo.
- Explica-me então, como sabes o nome da minha família – ripostou o gato Mago.
- Caro jovem, tenho-te seguido sem dares conta, pelas ruas da cidade. Quando te vi, fizeste-me lembrar um velho conhecido. A forma de andar, esse ar majestoso recordaram-me um gato, que tal como eu, foi personagem de um livro antigo. Observei-te melhor...
Mago interrompeu: Olha lá! Esse gato era meu tetra – avó, o orgulho da família. É engraçado ainda te lembrares dele. Mas ouve, tu és o Corvo Vicente, o rebelde?
- Nem mais! Apesar de cada um ter o seu capítulo, os Bichos conheciam-se e por isso foi fácil rever em ti a tua ascendência – disse Vicente.
Mago não queria acreditar. O Corvo Vicente, esse herói mítico da bicharada, ali em frente a ele:
-Ó insubmisso, ó dissidente! Sempre apreciei a tua coragem em trilhares o teu próprio destino. Nunca consegui ser como tu, entreguei-me sempre à mão que me alimenta. Procurei sempre o lado cómodo da vida e com isso sofro bastante.
- É mal de família, procuram sempre o aconchego do colo humano e perdem a vossa dignidade.
- Dignidade e não só... – completou Mago.
- Como fazem então para ter herdeiros? – perguntou Vicente, com um sorriso no bico.
- Não sejas trocista, Corvo anarca. Como deves calcular, transmitimos de pais para filhos, o que significa privação. Fingimos ser jovens e brincalhões até conseguirmos conquistar alguma fêmea. Não esperas que te conte mais pormenores, pois não? – suplicou Mago.
- Não, amigo Mago. Brincava apenas contigo. Devo respeitar-te como é evidente. Ainda por cima dizes que sofres... – confortou Vicente.
- É mesmo. Os outros animais não entendem. A opção por este estado não é minha. Isto é... directamente! Os meus donos é que são responsáveis pelo meu estado assexuado. Quando saio, outros gatos metem-se comigo, insultam-me e agridem-me – lamentou o gato.
Vicente sentiu a mágoa de Mago.
- A intolerância neste casos é grave. A orientação sexual de cada ser vivo deve ser respeitada pelo outros ou, no teu caso, a falta dela.
- Pois deveria – disse Mago. Mas, houve lá Vicente, que idade tens? Deves ser muito velho?
- Nem os conto. Não penses que saí da Arca e sobrevivi, para ficar a contar os anos da minha vida. – refilou o pássaro. Desafiei Deus e ousei enfrentá-lo para enquanto os humanos se lembrarem de mim, ser imortal.
- Compreendo o teu desejo. Não me digas que visitas os Bichos ou os seus descendentes por esse mundo fora!? – perguntou Mago.
- Seria interessante para manter viva a obra do nosso criador. Passei por cá algumas vezes e mal sonhava encontrar um descendente do velho Mago. Enquanto foram vivos, convivi com todos. Entretanto, com as gerações seguintes, tem sido mais difícil...
- O que fazias nesta cidade? – questionou Mago.
- Nas viagens do meu reino para o litoral, costumo passar por aqui. Por vezes, observo factos interessantes de alguns lugares e volto...
- E aqui o que te agradou? – voltou a interromper Mago.
- Directamente não te sei responder. O que mais me surpreendeu foi um acto de rebeldia.
- Aqui, Vicente? Deves estar enganado? – admirou-se Mago.
- Está-te no sangue, não aceitas nada que altere o teu conforto. Essa forma cómoda de ser, de estar, digna do velho Mago. Não havia nada melhor que os braços da Dona. O borralho da velha cozinha e as horas ali perdidas a dormir.
- Sempre gostei, também. Mas Vicente, explica melhor essa tua história, da revolta...
- Lembras-te quando estavam a montar estas estruturas metálicas com vidro aqui na Praça? – perguntou Vicente e sem esperar resposta continuou: Numa das ruas, essa montagem foi interrompida um dia. Uns humanos alegavam ser ilegal retirar-lhe o trânsito e transformá-la em zona pedonal. Passava por cá e assisti a tudo. Vi que argumentavam com clareza e mesmo perdendo a batalha, foram para a luta política.
- Estou recordado, mas sem perceber onde queres chegar – disse Mago.
- Pois, aqui vai. Como deves compreender actos reivindicativos, com fundamento e sem violência, são por mim muito apreciados. Voltei a passar por cá, passados alguns meses e felicitei-me ao ver a vitória das suas cores partidárias. Como não conheço as gentes desta cidade, acreditei que havia relação entre os dois factos e regozijei-me por isso.
- Ui Vicente, ui! Estás enganado, Corvo – atirou Mago.
- Fico espantado! Tal como fico quando ao fim destes anos todos, voo para cá de novo e vejo a rua no mesmo estado. Afinal para que serviu toda aquela argumentação?
- Não me arranjes problemas. Essas coisas de humanos e política não são para mim. Mesmo os meus donos não estão para se chatear. Política só via TV, o professor e pouco mais. Aqui o que aconteceu é que as pessoas ficaram fartas de obras e o que querem é tranquilidade. Imagina só, obras outra vez. Querias o quê? Que tirassem as estruturas todas?
- Não, acomodado Mago, apenas as necessárias para repor a normalidade na fluidez do trânsito da cidade. Mas, tu é que estás enganado! O resto da cidade está em obras, só aqui no centro é que continua tudo parado.
- Ouve Vicente, esquece. Ninguém quer saber disso. Porque te preocupas com isso? Nem sequer és de cá. Passas de vez em quando. Desta vez viste-me e isso é que é importante.
- Sim, mas não só... Pelo que ouço, pressinto que tens alguma razão, jovem Mago. Vou, então!
- Espera não vás ainda. Gostava de falar melhor contigo, sabes dos outros Bichos ? – gritou desesperado o gato.
- Sabes Mago, irrita-me essa tua passividade. Vou procurar outras paragens, enganei-me. Descobri por ti o meu erro, costumo não me enganar nestas coisas, não gosto de me desiludir.
- Para onde vais, infame Corvo? – perguntou irado o gato.
- Para perto do Mar, gato... – despediu-se Vicente, iniciando o voo.

NOTA: Com a devida homenagem, foram adaptadas duas personagens de “Os Bichos” de Miguel Torga.