Chegara o último dia. O momento de retirar os objectos pessoais do cacifo, fechar a porta e deixar ficar a chave. Retirar o número de colaborador daquele armário e sem olhar para trás, abandonar aquele balneário.
Uma vida naquela fábrica.
Entrara novo, contrariando a vontade do pai que o queria ao seu lado a trabalhar no duro, nos campos. Fizera a instrução primária entre o bater da régua e o da sachola. Cedo aprendera o que era cavar fundo. Ter calos nas mãos. Trabalhar de sol a sol e com pouco dinheiro na carteira. Um dia fartou-se. Os amigos da rua trabalhavam nas fábricas e ganhavam salário. Pouco mas certo. Dos campos só incerteza. Enchera-se de coragem e fora pedir emprego ao Orreiro. “Sim senhor, venha, estamos a precisar de gente nova”.
O pai não queria acreditar, um filho operário, com tanto trabalho em casa. Lá se convenceu aos poucos. Para ele, era uma mudança grande. Entrou disciplinado, cumprindo o que o encarregado lhe dizia. O homem percebia daquilo, explicava-lhe tudo. Como fazer, como organizar o posto de trabalho, quantas peças precisavam de fazer por dia para cumprir a encomenda dos clientes e assim, incutiu-lhe o gosto da profissão.
Chamaram-no para a tropa e consequentemente embarcou para a guerra. Regressou e o pai acreditou que o mato lhe mudara a vontade e ficaria outra vez por ali. “Qual quê!” Voltou a bater à porta da fábrica, ficara a promessa de reintegração na empresa. Feliz, voltou a desempenhar as suas funções. O encarregado já lá não estava, tinha-se estabelecido. Ainda o convidou, mas seria ingrato com as pessoas que lhe prometeram e tinham esperado por ele.
Dividia o seu tempo entre a fábrica e a ajuda ao progenitor, na lavoura. Entretanto casara e o pai cedera-lhe metade da sua casa. Ficara com casa própria, a troco das ajudas ao pai. Uma vida de sacrifício. Comprara também uma motorizada, para se deslocar mais rapidamente de um local para outro e assim, aproveitar melhor os dias. Veio a revolução e temeu o pior. Período difícil, com convulsões várias. Chamaram-lhe reaccionário, calmamente mostrou os calos profundos nas palmas das mãos e rodando-as, exibiu os dedos todos negros e exclamou: “são mãos de operário e lavrador, chama-me o que quiseres, pois eu sei o que sou.”
Quando a calma voltou, reparou que nunca tivera um ordenado em atraso mesmo tendo passado alguns dias sem trabalhar. Surgiu uma hipótese para mudar de sector de produção, aceitou. Trabalharia no turno da tarde, o que daria jeito, para de manhã ajudar no campo. Agora, na fábrica as contas eram outras, havia gamas operatórias e era necessário fazer tantas peças por hora. Cumpria sem problema. A equipa com quem trabalhava era exemplar. Recebiam um excelente prémio de produção. Por vezes, faltavam colegas do turno da manhã e pediam-lhe para ir mais cedo. Fazia o sacrifício ao acumular estas horas, mas não se importava, sempre era mais um dinheirito.
A empresa prosperou e foi vendida a estrangeiros, cada área de negócio um comprador diferente. Ficara triste, via partir quem o empregara e o desmembrar da empresa foi difícil de aceitar, sobretudo pela separação dos amigos da primeira hora. No entanto, as condições salariais melhoraram e decidira-se a comprar um carro, até porque a família estava maior.
Envolvido no ritmo diário das entregas aos clientes, via os filhos a crescer, a progredirem nos estudos e acreditou que o futuro deles seria diferente. Entretanto, o pai adoecera e acamara. Cuidados redobrados, repartidos entre ele e a mulher. Um dia chamaram-no ao gabinete do director de produção, a empresa ia empregar muita gente e era preciso apostar em alguém da velha guarda para encarregado, “...os próximos tempos serão extremamente importantes para todos. Até hoje conseguimos estar neste sector pelo baixo preço do nosso artigo, agora os desafios serão outros. Temos que apostar na qualidade do nosso produto e garantir que o produto não sai daqui defeituoso. Teremos que aumentar a capacidade de produção e estar preparados para muito trabalho”, lembrava-se bem do que lhe tinham dito. A prontidão da resposta não foi do agrado das chefias, em primeiro lugar alegou o problema familiar, o estado do pai, a ausências de ajudas, com os filhos a estudarem fora, etc... Depois rematou dizendo, não ser prestigiante para ninguém ser encarregado naquela empresa, antes pelo contrário. “Além disso, não passo de um labrego. Não tenho paciência para papéis, reuniões e essas actividades de encarregado.” As chefias perceberam que seria impossível demovê-lo. Ainda assim, jamais desde essa data, tal episódio lhe foi referido ou apontado.
Os anos passaram-se e à alegria pela licenciatura dos filhos, infelizmente sucedeu a morte do pai. Como único descendente, herdou-lhe os bens, incluindo as terras de cultivo. Não as queria abandonadas, mas sozinho iria ser difícil. Além disso, surgiam notícias sobre a agricultura, que o deixavam confuso, não cultivar, não plantar isto e aquilo, semear somente alguns produtos e em doses controladas... Optou por as manter em regime de fim de semana, mais para consumo doméstico, do que para venda.
Os filhos não regressaram à terra natal. “Da minha geração, quem sai para estudar, raramente volta”, diziam-lhe os filhos. “O que faço com as terras?” perguntava-lhes por vezes, “vende-as, antes que não valham nada”. Soube por um velho amigo, que as terras tinham ficado incluídas na Reserva Agrícola Nacional e por isso ninguém podia construir ali. De início não percebeu. Só quando lhe explicaram o que as terras ficaram a valer, é que compreendeu o que tinha perdido.
Decidido, continuou a sua vida. Ajudou os filhos como podia, uma entrada para o apartamento, mais uma percentagem do valor do carro para suavizar as prestações. Os colegas mais próximos brincavam com ele, dizendo tratar-se do homem mais rico da fábrica, tal eram as ofertas, mais a área de cultivo, casa própria e tudo. Ele ria-se.
Os mais velhos chegavam à idade crítica da reforma. Eles felizes, ele triste. Não queria reformar-se, tentava esticar sempre mais o esforço, para acompanhar o exigido pelos tempos das gamas operatórias. Viu partir muitos do “antigamente”: colegas, encarregados, chefias, engenheiros. De todos se despediu, pensando “um dia serei eu, só espero que falte muito”.
Ainda sorriu quando anunciaram o adiamento da idade da reforma para os 65 anos. O seu ritmo era mais lento e já começava a haver pequenas paragens por causa do seu desempenho. A empresa educadamente chamara-o para negociar, era tempo de dar o lugar aos novos. Dedicar-se aos netos, visita-los mais vezes, olhar pelo campo, dizia-lhe o engenheiro simpaticamente, quando lhe anunciou o propósito. Aceitou, ficando apreensivo. Brevemente seria cessado o contrato, bem indemnizado evidentemente e poderia inscrever-se no fundo de desemprego, até passar a receber a merecida reforma.
Mais de quarenta anos de trabalho naquela empresa. Apagou a luz do balneário. Saiu e encostou a porta. Era noite como sempre. Cá fora o silêncio já dominava. Os aceleras já tinham arrancado rumo a casa. Apareceu um vigia para se despedir. “Passe por cá para nos visitar!”.
Surpresa, o engenheiro também ali estava! Não se esquecera que era o seu último dia. Vinha dar-lhe um abraço e acompanhá-lo ao carro. “Sai o senhor e passo eu a ser um dos mais antigos”, dizia bem disposto. O gesto do director era simpático e ele estava-lhe reconhecidamente grato. Emocionou-se. Os olhos lacrimejaram. Aguentou a torrente, disfarçou a voz e disse: “Muito obrigado pela atenção. Não é um momento fácil, como deve compreender.” O engenheiro pôs-lhe a mão no ombro e recordou-lhe: “Esta empresa sempre teve um rosto humano, desde a sua fundação. Cabe-me agora pela antiguidade, continuar a manter viva essa tradição.”
Enquanto caminhavam o engenheiro puxou de um cigarro, ofereceu outro, o que foi recusado. “O importante é o senhor saber ocupar-se nos próximos tempos”, recomendava-lhe. Pensou não dizer nada, mas a sinceridade do interlocutor mudou-lhe as ideias: “Como sabe, senhor engenheiro, tenho netos pequenos, os filhos longe e formados. Fiz a minha vida dedicada ao trabalho, aqui na fábrica e no campo herdado dos meus pais. Dia após dia naqueles campos enquanto os outros colegas descansavam. Férias só as tive quando os filhos começaram a pedir praia. Uns dias ali no Furadouro, no Parque de Campismo e ainda assim, vinha muitas vezes ver o estado das terras. Já pensei dedicar-me a elas outra vez. Mas o dinheiro que vou ganhar e a minha idade não me permitem ter muitas esperanças. Agora, pensando bem, gostava de as vender. Os meus filhos, atempadamente disseram-mo. Cometi a asneira de as manter. Sempre deu para poupar na mercearia, ou no hipermercado. Quero vender as terras para desta forma ajudar os meus filhos e netos a terem uma vida melhor. Estou a ficar cansado e queria ficar somente com a pequena horta lá da casa. Chega bem para mim e para a minha esposa. O problema é que o campo está inserido na Reserva Agrícola Nacional, o que é um disparate numa terra urbana como esta”. O engenheiro seguiu atentamente, sem ousar interrompe-lo. “Estive-me a informar acerca de como alterar estas leis. Existe um regulamento de urbanismo, chama-se PDM, como deve saber. Pois, esse regulamento teria que ser alterado e aprovado pela autarquia. Depois é enviado para Lisboa, para o Governo por sua vez, o aprovar. Tudo isto demora anos. Vai ser a minha longa ocupação, nos próximos tempos“. O cigarro acabava, mas o monólogo prosseguia. “Bem sei que não passo de um operário sexagenário, com poucos estudos, no entanto, convencendo o Presidente da Câmara do erro cometido no passado, é possível conseguir alguma mudança. Onde é que já se viu numa cidade moderna, manter uma zona agrícola, quando já ninguém cultiva? É um absurdo! Que vantagens trouxe para a cidade? Algum bem estar? Nada disso. Manteve-se isto verde, é certo. Não se pode construir é a única conclusão...”
A narrativa é aqui interrompida, por se duvidar da autoria do transcrito. Apesar de atribuir todas estas frases ao emissor, parece-me que o receptor as assimilou e transmitiu por suas próprias palavras, acrescentando um ponto, como qualquer contador.
Ao autor mais do que esclarecer este assunto com os leitores, gostaria, se lhe é permitido, de evidenciar a sua disponibilidade para ajudar o nosso operário, pré – reformado (fictício é claro), em qualquer acção por ele desencadeada no sentido de alterar o Plano Director Municipal, atrás apresentado pela sigla PDM. Claro está, caso sejam verdadeiras as afirmações proferidas e desde que a tão desejada modernidade da cidade seja conseguida.