quarta-feira, novembro 14, 2007

Gente com palavras

No seu desassossego, Bernardo Soares descreve o escritor de um modo inquietante. Na sua prosa surge a observação da não muito digna posição da cabeça de um autor, obrigada pelo acto da escrita, a estar vergada, colocando o escritor como um ser submisso.

O progresso introduziu a máquina de escrever como instrumento de escrita. Apesar de todas as melhorias consequentes, a postura de qualquer escritor não se alterou. Os textos sofreram alterações de forma, a caligrafia pessoal foi substituída por um tipo de letra “universal” mas, apesar deste avanço técnico, a cabeça continuou ligeiramente curvada a assistir ao fluxo de palavras entre o pensamento e o teclado “HCESAR” ou mais tarde “AZERT”.

Na exposição relativa ao centenário de nascimento de Miguel Torga, entre os vários objectos patentes: reportagens de várias homenagens, edições de livros e biografia do autor, estava em lugar de destaque a máquina de escrever do poeta Transmontano. Naquelas teclas foram “marteladas” as suas palavras, quer de poesia, quer a sua prosa, em formato de conto, ou em ensaio, ou o seu diário. Tal como o artesão era caracterizado pelas suas ferramentas também alguns dos escritores contemporâneos serviram-se da máquina de escrever para criar a sua obra.

Sempre com a cabeça inclinada.

A adaptação a novas tecnologias e a utilização de computadores pessoais, com processadores de texto com possibilidades múltiplas tornaram o acto da escrita mais acessível. Em primeiro lugar pela posição da cabeça. Os olhos passaram a fitar em frente um monitor, mantendo a cabeça horizontal. O domínio do teclado permite que os dedos vão escrevendo, sem necessidade de procurar a posição das letras, quer se escreva com um, dois, quatro ou mais dedos. As palavras vão aparecendo no ecrãn e pelo facto de existirem correctores automáticos, os erros ortográficos são prontamente eliminados. Existem outras possibilidades: escolher o estilo de letra, o tamanho da letra, o espaçamento entre linhas, entre outras hipóteses. Alguns editores de texto têm a capacidade de verificar a concordância gramatical de cada frase. Evita-se erros, acerta-se no sujeito e respectivo predicado, não colocando vírgulas antes do complemento directo. Pelo meio colocam-se uns adjectivos e uns advérbios, normalmente como este, de modo.

Pela facilidade destes meios, surgiram mais artigos de opinião nos jornais, mais relatos e comentários acerca do quotidiano e mais blogs pessoais na web.

Muitos destes novos membros da escrita têm pretensões a serem reconhecidos como escritores. Alguns não se assumem como tal, pretendendo uma classificação mais suave, menos pretensiosa, auto-denominando-se com outros títulos, independentemente da aceitação do público.

Só que o reconhecimento das palavras escritas é um acto moroso. Poucos são os que editam livros e têm sucesso editorial e mesmo este indicador não é o mais próprio para classificar autores. Os escritores Norte–Americanos actualmente mais procurados e mais reconhecidos têm mais de 70 anos de idade e alguns mais de quarenta anos de publicação de livros. Como se pode concluir, todos eles passaram pelo processo de escrita com a cabeça vergada.

Os bons utilizadores das novas tecnologias tardarão a ser galardoados. Provavelmente daqui a trinta ou quarenta anos, alguns desses escritores estarão a receber prémios de carreira, serão o tema de conversa literária e de leitura, quer seja em livro, ou noutro formato entretanto criado.

Neste processo de regeneração, existe uma tendência: esquecer o passado, relegar escritores duma época e os seus escritos para memórias, para prateleiras esquecidas de bibliotecas públicas, além da inserção desse nome na toponímia local, ou a atribuição a uma escola. Por vezes, criam-se prémios literários com nome de um determinado autor, por um período de tempo, esse já indeterminado.

Depois é para esquecer. Um dia em S. Martinho da Anta, na sua terra natal, o nome de Torga será apenas associado ao busto da Praça Central, junto ao negrilho. Tal como várias estátuas de tantos escritores, entretanto esquecidos, espalhadas por várias localidades de Portugal.


Neste sentido, se hoje lamentamos a intenção de alterar o nome da Escola EB 2/3, um dia o mesmo irá acontecer à memória de João da Silva Correia.

É urgente recriar-se a memória dos nossos escritores, que retrataram uma época específica, de forma a perpectuar no tempo todo esse passado, para gerações futuras.

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