Entrou no táxi já atrasado, pelo que teve logo de ouvir: “Estive quase para ir-me embora, se não fosse pela consideração que tenho por si, já tinha arrancado.”
Correu-me mal esta noite, foi a resposta ao taxista. Este olhou pelo espelho e logo reparou no lenço entre a mão e a cara, provavelmente a estancar uma ferida aberta.
Quer que o leve ao hospital? – perguntou. Prontamente respondeu: Ao daqui não! É melhor ao lá de baixo, fica a caminho do nosso destino habitual.
O taxista apesar de discreto, resmungou algumas palavras sobre o fecho de urgências dos hospitais. Passado uns metros fez a inevitável pergunta, da qual não queria obter resposta, sobre as urgências que afinal não fechariam. Assunto em voga na semana e que colocava em causa, todos os protocolos assinados. Enquanto o taxista dissertava a sua sabedoria sobre o assunto, o conduzido, embalado pelas palavras ouvidas e pelo andamento do táxi, reviu os acontecimentos da noite.
Seria uma noite normal de fim de semana. Para começar, o costume, uma partida de snoocker, seguida da viagem por táxi, frete combinado frequentemente, só com ida até ao casino, ceia e aqui variaria o programa: a sua condição de homem disponível e a vontade de passar momentos com corpos femininos, macios e perfumados, podiam-no reter numa noite em agradável companhia, ou então, o regresso solitário a casa, num qualquer carro de praça disponível.
Desta vez, não seria assim. O adversário nas bolas coloridas, era um daqueles chatos, batoteiros e conflituosos, ainda por cima familiar do dono do salão de jogos. A partida estava a correr bem, até que uma palavra mal medida, virou em ameaça. Daí até à violência física foi um pequeno passo. Levou uma cabeçada do energúmeno, mais um par de socos, ficando com a cara aberta e sem hipótese de defesa. Apoiado à mesa de jogo, olhou em redor à procura de um objecto para se defender e igualar o “combate”. Quando viu que o taco estava longe do seu braço, lembrou-se do filme “Guerra das Estrelas”, da saga dos Skywalker e pensou no poder da levitação. De repente, o taco estava na sua mão. Sem acreditar sentiu-se um guerreiro Jedi e investiu sobre o opositor. Um golpe aqui, outro ali, mais duas fortes tacadas e desembaraçou-se da situação criada. Uma voz disse-lhe para fugir, que o encobria. Percebeu ser de alguém que o tinha ajudado e atirado o taco naquela hora difícil. Mais aliviado, percebeu que a força não estava com ele.
O taxista expelia bairrismo por todos os poros. O tom de conversa não estava agradável... Decidiu interrompe-lo, precisava da sua ajuda no hospital. Explicou que teriam de representar, dramatizar mesmo, para conseguir dar entrada nas urgências, sem grandes questões. Ao taxista agradou-lhe a ideia de ludibriar o sistema nacional de saúde, uns penetras na urgência dos outros.
Como cliente agradeceu e pediu para esperar por ele. Esta noite voltava a casa, mal tivesse o curativo, que pagaria o que fosse preciso pelo tempo de espera, mais a viagem como se fosse para o destino previsto. O taxista ficou satisfeito, a vida não estava fácil, como já tinha dito várias vezes, àquela hora só poucos trabalhavam e ele próprio queria estar em casa.
Encostado no banco de trás, compreendeu o vazio da sua vida. Enganava-se no jogo nocturno, onde ganhava muito mais do que perdia. Esta pequena satisfação nunca lhe trouxe felicidade, antes pelo contrário. Separação. Visita do filho apenas de vez em quando. Uma vida desenraizada, sem qualquer ligação social. Só, no mundo.
Antes de chegar ao hospital disse ao taxista: o que é necessário é alargar a rede de urgências dos Hospitais Psiquiátricos. O condutor indignado tentou percebê-lo. Focou-o pelo retrovisor, para seguir as ideias do cliente, pedindo-lhe para se explicar melhor. Este continuou, pausadamente: ouvi-o atentamente e não percebo como se pode trocar um serviço de urgência por uma ambulância especial; como é que algumas populações ficam a aguardar a construção de novos hospitais, enquanto para outras são logo reduzidos os cuidados de saúde garantidos pelo Estado. Tudo isto é confuso, não se percebe o critério e deixa qualquer um baralhado. Mas, não pense que é por isso que falei nos hospitais psiquiátricos. Estou cansado de fingir. Se fosse fácil entrar num desses hospitais, seria para lá que iríamos agora.
Nota: esta estória foi originalmente publicada no blogue “Escrita Irregular”. Reeditar este texto, adaptando-o às circunstâncias actuais é uma justa homenagem a leitores, comentadores assíduos do recentemente encerrado blogue. A eles agradeço toda a atenção dispensada ao longo destes últimos 17 meses.
(a publicar no dia 06/03/08)