Lá por onde durmo, o altifalante de uma das capelas, imitando um sino, interrompe o silêncio, indicando o horário do dia. Emite som todas as meias horas, das 7 da madrugada às 22 horas. Estas badaladas enquadram-se perfeitamente no bucolismo campestre reinante. Por estes dias, últimos da hora de verão, o primeiro toque matinal com o toque mariano, serve para acordar um estremunhado e hesitante galo, que ao ver tudo escuro à sua volta, desconfiado cacareja a alvorada.
Quem vive nas imediações de uma igreja, aprende a escutar o sino.
Desde pequeno habituei-me ao toque do sino da Capela Santo António. Acompanhou-me na atenção prestada nas salas de aula da escola primária, ali no Jardim do Sol. Nas minhas brincadeiras em casa, nas traseiras da Rua da Liberdade, ou mesmo em casa de amigos, estava dentro do alcance sonoro do sino. Mesmo no seu adro, passei horas a brincar, chegando a jogar à bola, embora sem nenhum pormenor digno de apontamento, ou seja, um apontamento sem qualquer importância. Mais sério foi sair dali na procissão, num domingo de Maio, até ao pavilhão, para a sua enchente anual de crianças a perpetuar a fé cristã.
Na adolescência, com a mania do “homem livre”, optei por tirar o relógio do pulso. Se na escola, a sucessão de toques impunha o horário, no tempo livre, muito dele passado na Praça Luís Ribeiro, as espreitadelas ao relógio da Capela eram inevitáveis. E se o relógio não estava visível, com ouvido habituado desde criança, bastava contar as marteladas do sino. Permanecíamos horas na Praça, a passar o tempo. Com a ilusão de que éramos pioneiros, que jamais outros jovens ali tinham estado com as mesmas ideias, a mesma vontade. E a maior baboseira era prever que, depois de nós, a Praça nunca mais seria a mesma.
Fiquei horas e horas de domingos, do mês de Julho, alguns de Agosto e menos de Setembro, enquanto estudava preparando os derradeiros exames da Faculdade, em silêncio, com a ideia da cidade estar vazia, a banhos. O estudo por vezes consistia na aplicação de fórmulas, que atendendo à mecanização dos exercícios, poderiam ser acompanhados na audição de qualquer música – as preferências ficavam muitas vezes para os Talking Heads e o seu arranjo mais que perfeito The Lady don´t mind (fica aqui a referência, para puxar o saudosismo). Outras matérias exigiam silêncio. O passar das horas era sentido pelo tocar do sino. Só que nesses dias… da Praça Luís Ribeiro começavam os testes de som para o espectáculo nocturno. Irremediavelmente escutava: som, som, experiência, um, dois, som! Vezes sem fim até perder a paciência e a capacidade de concentração.
Dos outros sinos da cidade, recordo-me do da Capela do Parque, ouvido nos dias de Julho, enquanto participante nos Campos de Férias aí ocorridos, ou então nos dias com forte vento de sul, que vim a aprender ser motivo para alteração climatérica, tendo como resultado a maçadora chuva. Da Igreja Matriz, o inquietante dobrar dos sinos sobrepõe-se a qualquer outra recordação de toque. Das restantes capelas não tenho lembranças. Aliás, o chamamento associado ao sino, há muito deixou de me interessar.
Um destes dias estive uma tarde de fim-de-semana no centro. Janela aberta virada a norte para a Praceta Júlio Dinis e voltei a ouvir as badaladas do sino da Capela Santo António. Fiquei com a ideia que o toque estava duplicado a cada quarto de hora mas, sentir de novo o silêncio urbano, ouvir aquele som do passado, fez-me sentir tão tranquilo, que adormeci.
(a publicar dia 22/10/09)
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