Nos últimos dias, atendendo à compilação editada no livro Caleidoscópio, reli as crónicas de Renato Figueiredo publicadas no jornal labor. A grande maioria dos seus textos, estava bem presente na minha mente, não só pela proximidade da edição do original, como pelo talento patenteado ao longo das várias crónicas publicadas. Surpreendeu-me por isso, a referência ao meu nome surgido na página duzentos e vinte e seis do referido livro. Mais do que a honra por tal distinção, importa aqui colmatar a ausência de qualquer menção à sua pessoa, que até hoje, por manifesta inibição pessoal não me atrevi a fazer.
Abstive-me de qualquer tentativa de escrever, dando o lugar a outros, por considerar terem melhores e mais bonitas palavras para prestarem a justa homenagem. Entre estes encontravam-se os meus pais. Não posso esquecer a longevidade da sua vizinhança, mais de quarenta anos, separados por um patamar. O Doutor Renato a habitar o 2º esquerdo e os meus pais o direito. Uma relação de amizade com respeito e admiração mútua, como demonstrado na página cento e dez do livro agora editado. Com diferenças ideológicas, ao jeito do lado do patamar que residiam. Uma forte convivência, bem democrática, fazendo lembrar e retirando o exagero burlesco, alguns momentos dos filmes de Don Camillo e Peppone.
O patamar, do 2º piso na porta 49 da Rua da Liberdade, também teve direito a página, a cento e quarenta e dois, uma alusão “são passos curtos: os que nos levam a abrir a porta, a recolher o jornal, a ler.” Várias manhãs abri a porta, tendo ali dois jornais, para a porta da esquerda sempre o Jornal de Notícias e para o meu lado, O Primeiro de Janeiro - com as aventuras do “Príncipe Valente” - e alguns anos depois, substituído pelo Público. Eu, por inerência, fui seu vizinho vinte e sete anos. Em miúdo, juntamente com os meus pais, passei alguns serões em sua casa. Fascinava-me o efeito espelho dos apartamentos. Antes de adormecer, embalado pelas conversas de quatro adultos (ainda era viva a sua mãe), jogava mikado e contemplava a paciência feita com cartas em miniatura, interrompida devido às visitas e espalhada em cima de tabuleiro apropriado.
Seguiram-se anos e anos. Fui crescendo naquele prédio. Todos os exageros de criança, os ruídos de adolescente, as noitadas em adulto foram sempre toleradas por este vizinho, sem qualquer comentário, nem queixa aos progenitores. A discrição total. Nunca interferiu na minha educação (e que eu saiba na dos meus irmãos). Oferecia-nos livros sem qualquer ideologia associada. Tudo isto para dizer, que em todos os meus anos de vizinhança, não tive qualquer conversa com Renato Figueiredo sobre ideologia política, nem muito menos sobre literatura. Durante três anos coincidimos nas páginas deste jornal. Nesse período, cruzei-me com o Doutor Renato várias vezes na escadaria do prédio onde viveu. Jamais trocámos uma palavra sobre os textos um do outro. Manifestamente, por falta de à vontade da minha parte para puxar o assunto. Ao iniciar os meus primeiros passos neste mundo das palavras escritas, com o receio típico de quem aqui não pertence, recebi da sua parte, claro que indirectamente - através de comentário positivo transmitido aos meus pais, um dos primeiros incentivos para prosseguir este caminho.
Um filme de família, recuperando imagens da década de 1970, relembra os momentos com amigos. A aparição, natural, do Doutor Renato, mostra-o brincalhão, interagindo com um dos meus irmãos. Nessa sequência, minutos depois, surge a sua imagem solitária, antecipando em alguns anos a crónica “Era Domingo”, compilada na página setenta e seis do livro Caleidoscópio. Essa e outras imagens é que sempre me fascinaram: a opção pela solidão. O isolamento familiar, numa vida recheada de amigos.
Hoje subo as escadas do prédio da minha vida, alcanço o patamar do 2º andar. Falta um vaso à esquerda. A porta desse lado está fechada. Atrás dela, tudo está vazio. Não se avistam sombras de movimento. Advinham-se as paredes expostas. Não se sente o cheiro a tabaco. Se de noite, a escuridão no vitral acentua o estado solitário.
Por ali, ao falarmos naquela que seria a última vez, à minha pergunta sobre o seu estado de saúde: “Está mais composto?”; Renato Figueiredo respondeu-me com o seu habitual humor: “Estou, é decomposto”.