quarta-feira, novembro 25, 2009

Patamar

            Nos últimos dias, atendendo à compilação editada no livro Caleidoscópio, reli as crónicas de Renato Figueiredo publicadas no jornal labor. A grande maioria dos seus textos, estava bem presente na minha mente, não só pela proximidade da edição do original, como pelo talento patenteado ao longo das várias crónicas publicadas. Surpreendeu-me por isso, a referência ao meu nome surgido na página duzentos e vinte e seis do referido livro. Mais do que a honra por tal distinção, importa aqui colmatar a ausência de qualquer menção à sua pessoa, que até hoje, por manifesta inibição pessoal não me atrevi a fazer.

            Abstive-me de qualquer tentativa de escrever, dando o lugar a outros, por considerar terem melhores e mais bonitas palavras para prestarem a justa homenagem. Entre estes encontravam-se os meus pais. Não posso esquecer a longevidade da sua vizinhança, mais de quarenta anos, separados por um patamar. O Doutor Renato a habitar o 2º esquerdo e os meus pais o direito. Uma relação de amizade com respeito e admiração mútua, como demonstrado na página cento e dez do livro agora editado. Com diferenças ideológicas, ao jeito do lado do patamar que residiam. Uma forte convivência, bem democrática, fazendo lembrar e retirando o exagero burlesco, alguns momentos dos filmes de Don Camillo e Peppone.

            O patamar, do 2º piso na porta 49 da Rua da Liberdade, também teve direito a página, a cento e quarenta e dois, uma alusão “são passos curtos: os que nos levam a abrir a porta, a recolher o jornal, a ler.” Várias manhãs abri a porta, tendo ali dois jornais, para a porta da esquerda sempre o Jornal de Notícias e para o meu lado, O Primeiro de Janeiro - com as aventuras do “Príncipe Valente” - e alguns anos depois, substituído pelo Público. Eu, por inerência, fui seu vizinho vinte e sete anos. Em miúdo, juntamente com os meus pais, passei alguns serões em sua casa. Fascinava-me o efeito espelho dos apartamentos. Antes de adormecer, embalado pelas conversas de quatro adultos (ainda era viva a sua mãe), jogava mikado e contemplava a paciência feita com cartas em miniatura, interrompida devido às visitas e espalhada em cima de tabuleiro apropriado.

            Seguiram-se anos e anos. Fui crescendo naquele prédio. Todos os exageros de criança, os ruídos de adolescente, as noitadas em adulto foram sempre toleradas por este vizinho, sem qualquer comentário, nem queixa aos progenitores. A discrição total. Nunca interferiu na minha educação (e que eu saiba na dos meus irmãos). Oferecia-nos livros sem qualquer ideologia associada. Tudo isto para dizer, que em todos os meus anos de vizinhança, não tive qualquer conversa com Renato Figueiredo sobre ideologia política, nem muito menos sobre literatura. Durante três anos coincidimos nas páginas deste jornal. Nesse período, cruzei-me com o Doutor Renato várias vezes na escadaria do prédio onde viveu. Jamais trocámos uma palavra sobre os textos um do outro. Manifestamente, por falta de à vontade da minha parte para puxar o assunto. Ao iniciar os meus primeiros passos neste mundo das palavras escritas, com o receio típico de quem aqui não pertence, recebi da sua parte, claro que indirectamente - através de comentário positivo transmitido aos meus pais, um dos primeiros incentivos para prosseguir este caminho.  

            Um filme de família, recuperando imagens da década de 1970, relembra os momentos com amigos. A aparição, natural, do Doutor Renato, mostra-o brincalhão, interagindo com um dos meus irmãos. Nessa sequência, minutos depois, surge a sua imagem solitária, antecipando em alguns anos a crónica “Era Domingo”, compilada na página setenta e seis do livro Caleidoscópio. Essa e outras imagens é que sempre me fascinaram: a opção pela solidão. O isolamento familiar, numa vida recheada de amigos.

            Hoje subo as escadas do prédio da minha vida, alcanço o patamar do 2º andar. Falta um vaso à esquerda. A porta desse lado está fechada. Atrás dela, tudo está vazio. Não se avistam sombras de movimento. Advinham-se as paredes expostas. Não se sente o cheiro a tabaco. Se de noite, a escuridão no vitral acentua o estado solitário.

            Por ali, ao falarmos naquela que seria a última vez, à minha pergunta sobre o seu estado de saúde: “Está mais composto?”; Renato Figueiredo respondeu-me com o seu habitual humor: “Estou, é decomposto”.       

 

 

 

terça-feira, novembro 17, 2009

Paisagens desobedientes

            Acontece-me por vezes ter que explicar a quem não tem a vida centrada em S. João da Madeira e, portanto, não é leitor do labor, sobre quais os assuntos que elejo para publicar em texto. Começo a resposta invocando a memória colectiva, as experiências pessoais, os “micro” contos e obtenho uma reacção de interesse. Quando avanço um pouco mais na explicação, acrescentando o quotidiano, mais a análise da actividade política local, o desinteresse instala-se e invariavelmente a conversa muda de assunto.

            Não sei se acontece o mesmo com os leitores do labor, isto é, se a indiferença varia conforme o assunto do texto. Sendo impossível criar consensos, mesmo nestas páginas, limito-me a exercitar a escrita - se disciplinarmente - em ritmo semanal.

            Como é fácil constatar, colo-me ao calendário de eventos nas oportunidades devidas ou necessárias. Para as outras semanas, adopto a técnica da incerteza, pretendendo criar algum efeito de surpresa sobre o leitor no desenrolar de cada texto. Dentro deste princípio de tema aleatório, no exagero não escrevo nada, procurando aumentar as perplexidades para futuras edições.

            Vai longa a introdução e urge centrar-me no assunto a partilhar com os leitores na edição desta semana do labor.

            Por estes dias de chuva intensa, sentindo-se humidade até à medula, aproveitar as tréguas da chuva, contemplando a transformação dos elementos da natureza que nos rodeiam, para quem gosta de momentos calmos, pode trazer momentos únicos.

            Na cidade, nas cidades, os apreciadores de botânica procuram os seus parques e jardins, para examinar o comportamento de espécies e descobrir dados novos. Os leigos deliciam-se com as folhas em tons avermelhados, ou castanhos, resistentes nas árvores. Apreciam avenidas e praças entrincheiradas com essas cores. Em parques ou jardins, as alamedas enchem-se de folhas. As ainda esticadas, caídas sobre o verde de um relvado, provocam sorrisos. Por cima, árvores despidas contrastam com outras de folhas mais resistentes, apesar de a sua perenidade não lhes permitir ser indiferentes ao vento e à forte chuva. Voltando ao chão, nem só folhas causam surpresa. Pesquisando um pouco, conseguem-se encontrar cogumelos, com cores e aquelas formas desajeitadas.

            Apesar dos quinze dias de chuva, o excesso de água, incomodando e provocando estragos, ainda não foi suficiente para transbordar os rios. Margens rurais tomadas pelas águas, com troncos emergindo sem terra à volta, tudo envolvido pelo ruído do forte caudal, são imagens e sons que recordo das cheias de alguns rios, mencionados na geografia de Portugal. Longe do perigo, quem já teve a oportunidade de observar, a partir do castelo de Montemor-o-velho, o rio Mondego depois de galgar margens, campos e alagar tudo o que estava ao seu alcance, percebe a imagem. Paisagem que não se repete todos os anos, devido à desobediência da estação outonal.

            Mais frequente é o mau tempo no mar. O retrato da nossa costa, com mais ou menos paredão pelo meio, é ondas ou vagas de dimensão e frequência elevada, sob um céu cinzento. Pela tarde, nas horas de tréguas da chuva, uma aberta e o céu fica em tons alaranjados, reflectindo essa cor para as águas cinzentas do mar. Fotografia comum captada pela estabilidade de várias lentes, à qual eu regresso, sistematicamente, para a observação natural, sentindo o encanto da força da natureza.

            Água, chuva, água, é o que se retém destes dias. Não adianta descrever outras paisagens Outonais, que o pensamento tende para o excesso de chuva. Quando a meteorologia o permitir alargarei horizontes, procurando captar outras rebeldias. 

 

(a publicar dia 19/11/09)

terça-feira, novembro 10, 2009

Enigmas

            - Discreta, é a minha palavra favorita e tem as quatro letras do meu nome. O desafio estava lançado. Ouvindo isto, Alfredo mentalmente preparado para as palavras cruzadas, pensou: Dina, não. Dora, não. Quatro letras? Ficam de fora uma série de hipóteses de nomes começados por D: Dalila, Dulce, Diana, Daniela. Inventou alguns, divertindo-se com as variantes imaginadas.

            A rapariga repetiu: discreta, é a minha palavra favorita e tem as quatro letras do meu nome. Numa alcoolizada noite académica Alfredo não se esforçou mais. Não se podia pedir-lhe muito, tal era o seu estado. Naquele momento estava a simpatizar com a rapariga. Aquele desafio motivava-o a permanecer ali mais um pouco, até desvendar o mistério, sem lhe fazer qualquer pergunta, verificando quanto tempo demoraria o jogo.

            - Rita, chamo-me Rita. Alfredo sorriu. Malditas palavras cruzadas que lhe bloqueavam o pensamento. Ninguém lhe tinha dito qual a letra inicial. Achou piada à forma arrojada de Rita se apresentar. Apesar do seu estado alterado, focou a cartola dela, comum naquelas noites universitárias, não se recordando da respectiva cor. Por ali se demorou mais um pouco, ria-se das conversas da Rita. A reciprocidade acontecia, Rita estava encantada. De tal forma, que aqueles que a acompanhavam e que Alfredo não conhecia, sabendo apenas que com eles estava uma irmã de Rita, perceberam que estava a acontecer algo engraçado com a amiga e trataram de simpatizar com ele. Entre mais cerveja, menos cerveja, Alfredo foi assimilando o contexto em que estava envolvido, não se recordando como tinha iniciado contacto com aquele grupo.

            Rita repetiu, a minha palavra preferida é discreta… e é o que eu gosto de ser. Depois da advinha nas apresentações, Rita demonstrava as suas preferências quanto à forma de estar. A Alfredo agradava-lhe, sempre procurou vencer a timidez mas, como não conseguia, tinha dificuldades em relacionar-se, evitando uma vida social activa, preferindo recolher-se em recatados momentos de pouca confusão.

            A folia da noite académica prosseguia, com um qualquer artista cantando em cima do palco e uma série de estudantes a repetirem o exaustivo refrão, encenando danças colectivas, em abraços de grupo com muitos elementos. Muitos deles não mais se soltavam, para não correrem o risco de cair e ficarem pelo chão o resto da noite, até acordarem, ou serem reconhecidos por um qualquer colega, um pouco mais sóbrio. Alfredo procurava não agravar o seu estado alcoólico, para não causar má impressão. A companhia de Rita era desafiadora, ainda por cima, o facto de ser finalista de um curso universitário, obrigava Alfredo a pensar em ter um comportamento mais sóbrio. Preocupações da sua educação e duma vida sem relações sérias nos últimos meses. No entanto, não recusou nenhuma cerveja que lhe passou pelas mãos, vendo-se ele próprio obrigado a comprar algumas para retribuir a generosidade.

            Entretanto, Rita voltou a dizer o quanto gostava de ser discreta. Alfredo ouviu novamente com um sorriso e ficou pensativo. Ele naquele momento, não conseguia perceber porquê mas, algo estava errado ali. Falou com dois ou três dos seus acompanhantes, para perceber quem era quem, o que estudavam, onde dormiam, ou melhor, onde tinham residência, para ganhar alguma afinidade com o grupo, retribuindo a conversa com os seus dados, estudante de história, finalista, embora pouco dado a rituais académicos, a viver em casa de familiares.

            Alfredo tentava perceber melhor Rita, em que estado se encontrava. Se estava bêbada como ele, ou estava apenas a defender-se. Numa ida tipicamente feminina de duas irmãs à casa de banho, Alfredo ouviu de novo aquela frase, que já caracterizava a noite de Rita.

            Aproveitando o afastamento das duas raparigas, Alfredo prontificou-se a ir buscar mais cerveja às distantes bancas de venda. Olhou para o rio e sorriu. O contra-senso de Rita fora subtilmente compreendido.

            Alfredo eliminara as suas ilusões. Levantou a sua cerveja e já não voltou para junto do grupo.

 

(a publicar dia 12/11/09)

             

 

terça-feira, novembro 03, 2009

Direito à diferença

Direito à diferença

 

            Entrei na idade adolescente na primeira metade da década de 80. A sociedade portuguesa vivia na ressaca do seu recente passado. Contavam-se histórias do anterior regime; da guerra colonial; da revolução de Abril e anos consequentes; do regresso de África.  

            O presente não existia.

            A juventude vivia sobre o espectro da igualdade. A moda colectiva imponha-se e qualquer jovem ambicionava usar calças de ganga, botas “de celeiro” e um casaco de penas, assemelhando-se no tronco ao logótipo da conhecida marca de pneus franceses.

            Os interesses tendiam para o colectivismo. A audição de música suportava-se num programa semanal de televisão, que impunha uma lista de vendas, com a exibição dos vídeos, dos Singles e Lps mais vendidos. A música de qualidade tinha sempre como referência o passado: grupos que já não existiam e a ícones, entretanto, falecidos.

            Havia a rádio - programas alinhados com esse som mais comercial e outros mais de autor, preocupados em divulgar novas bandas, novos sons, novos caminhos.

            Eu fui por aqui.

Descobri no jornal Blitz uma espécie de top alternativo, com o título de “lista rebelde”. Adorei o nome. Referia-se a um programa chamado “Som da Frente” era publicado no jornal, ao lado da lista do top televisivo e assim passei a conhecer uma série de grupos, entretanto esquecidos: Shierkback, The Chameleons, Scritti Polliti, The Cassandra Complex, Love & Rockets, Anne Clark, Propaganda (tendo assistido ao seu concerto em Cascais em 1985). Não apenas grupos desconhecidos do grande público mas, outros que perduraram no tempo como: The The, Bauhaus, Echo & Bunnymen, New Order, The Smiths, Talking Heads e os próprios U2, entre outros, não sendo o propósito deste texto enumerá-los exaustivamente.

Era autor desse programa António Sérgio, falecido no passado dia 31. Divulgava pelos anos 80, grupos de forma pioneira. Um precursor de estéticas musicais. No intróito do programa reclamava  o seu direito à diferença. E por essas e por outras, em idade adolescente, passei a usar sapatos pretos e nas estações da chuva ou do frio, as inevitáveis gabardinas ou os sobretudos de tons escuros.

Cruzei-me com ele, pelo menos uma vez. No Rivoli, assistia na primeira fila ao concerto dos norte-americanos Suicide, quando ouço ao meu lado, no intervalo de duas músicas, a sua voz meio cavernosa e bem característica. Sempre a incentivar os dois músicos em palco, reconhecendo as músicas e cantando parte delas, António Sérgio abandonou a plateia, perto do final, quando em palco, Alan Vega simulava uma cena escabrosa de sexo. A sua saída indignada serviu para me aperceber que afinal Ian Dury, que anos antes tinha cantado “Sex, Drugs & Rock’n’Roll”, estava enganado. Sem qualquer tipo de moralidade, serviu-me o exemplo, para saber distinguir os limites da trilogia e ouvir muita música, sem enveredar pelo consumo de qualquer substância.

Neste Verão, assisti à sua passagem pelo programa “5 para a meia-noite”. Entrevistado por Fernando Alvim, reconheci-lhe a graça de outrora, a rebeldia, o gosto pela independência, a vontade de divulgar, de ousar chocar, sem ofender.

Conta-se que quando perguntavam a António Sérgio se o seu gosto pela música não o levaria a tocar algum instrumento, ele referia que tinha em casa um baixo eléctrico, sem o respectivo amplificador, do qual sabia tocar apenas 3 notas. Não me lembro se as notas eram de qualquer música em especial, ou se, três notas soltas. Gostava de acreditar que as três notas pertenceriam a “Bela Lugosi’s Dead”, em jeito de homenagem à noite em que faleceu.

 

(a publicar dia 04/11/09)