terça-feira, novembro 03, 2009

Direito à diferença

Direito à diferença

 

            Entrei na idade adolescente na primeira metade da década de 80. A sociedade portuguesa vivia na ressaca do seu recente passado. Contavam-se histórias do anterior regime; da guerra colonial; da revolução de Abril e anos consequentes; do regresso de África.  

            O presente não existia.

            A juventude vivia sobre o espectro da igualdade. A moda colectiva imponha-se e qualquer jovem ambicionava usar calças de ganga, botas “de celeiro” e um casaco de penas, assemelhando-se no tronco ao logótipo da conhecida marca de pneus franceses.

            Os interesses tendiam para o colectivismo. A audição de música suportava-se num programa semanal de televisão, que impunha uma lista de vendas, com a exibição dos vídeos, dos Singles e Lps mais vendidos. A música de qualidade tinha sempre como referência o passado: grupos que já não existiam e a ícones, entretanto, falecidos.

            Havia a rádio - programas alinhados com esse som mais comercial e outros mais de autor, preocupados em divulgar novas bandas, novos sons, novos caminhos.

            Eu fui por aqui.

Descobri no jornal Blitz uma espécie de top alternativo, com o título de “lista rebelde”. Adorei o nome. Referia-se a um programa chamado “Som da Frente” era publicado no jornal, ao lado da lista do top televisivo e assim passei a conhecer uma série de grupos, entretanto esquecidos: Shierkback, The Chameleons, Scritti Polliti, The Cassandra Complex, Love & Rockets, Anne Clark, Propaganda (tendo assistido ao seu concerto em Cascais em 1985). Não apenas grupos desconhecidos do grande público mas, outros que perduraram no tempo como: The The, Bauhaus, Echo & Bunnymen, New Order, The Smiths, Talking Heads e os próprios U2, entre outros, não sendo o propósito deste texto enumerá-los exaustivamente.

Era autor desse programa António Sérgio, falecido no passado dia 31. Divulgava pelos anos 80, grupos de forma pioneira. Um precursor de estéticas musicais. No intróito do programa reclamava  o seu direito à diferença. E por essas e por outras, em idade adolescente, passei a usar sapatos pretos e nas estações da chuva ou do frio, as inevitáveis gabardinas ou os sobretudos de tons escuros.

Cruzei-me com ele, pelo menos uma vez. No Rivoli, assistia na primeira fila ao concerto dos norte-americanos Suicide, quando ouço ao meu lado, no intervalo de duas músicas, a sua voz meio cavernosa e bem característica. Sempre a incentivar os dois músicos em palco, reconhecendo as músicas e cantando parte delas, António Sérgio abandonou a plateia, perto do final, quando em palco, Alan Vega simulava uma cena escabrosa de sexo. A sua saída indignada serviu para me aperceber que afinal Ian Dury, que anos antes tinha cantado “Sex, Drugs & Rock’n’Roll”, estava enganado. Sem qualquer tipo de moralidade, serviu-me o exemplo, para saber distinguir os limites da trilogia e ouvir muita música, sem enveredar pelo consumo de qualquer substância.

Neste Verão, assisti à sua passagem pelo programa “5 para a meia-noite”. Entrevistado por Fernando Alvim, reconheci-lhe a graça de outrora, a rebeldia, o gosto pela independência, a vontade de divulgar, de ousar chocar, sem ofender.

Conta-se que quando perguntavam a António Sérgio se o seu gosto pela música não o levaria a tocar algum instrumento, ele referia que tinha em casa um baixo eléctrico, sem o respectivo amplificador, do qual sabia tocar apenas 3 notas. Não me lembro se as notas eram de qualquer música em especial, ou se, três notas soltas. Gostava de acreditar que as três notas pertenceriam a “Bela Lugosi’s Dead”, em jeito de homenagem à noite em que faleceu.

 

(a publicar dia 04/11/09)

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