Aos primeiros acordes, fecho os olhos. Não resisto. O som do piano delicia-me. No instrumento, as pequenas mãozinhas vão seguindo o compasso, procurando não falhar, controlando o sistema nervoso para evitar os erros. Só ouço as notas, evito olhar para a prestação. Faço-o habitualmente, acompanhando a harmonia da música, sem desprestigiar a interpretação. Estou confiante no pequeno artista. Ouço os progressos diariamente. Tão empenhado na sequência das teclas, nem se apercebe do meu cerrar de olhos durante a sua execução na Recordação. Uma simples música de Lopes Graça, descoberta nas audições de crianças.
A melodia atravessa-me. Apesar da envolvência, a introspecção remete-me para momentos de mágoa. Alheia ao momento. “Os meus mortos estão cada vez mais vivos”, escreveu Raul Brandão, mal começou a descrever os pitorescos Pescadores, ainda na Cantareira. Os meus desfilam durante as notas da Recordação. Os familiares, os amigos, os colegas de escola, do trabalho, os vizinhos, os simples conhecidos entram na lembrança.
Não esqueço os que escrevem nos jornais. Também não esqueço as estrelas da rádio, nem as da Tv. Nem os heróis de domingo à tarde, vedetas pisando um relvado. Remeto-me para os primeiros. Os que perdem horas de vida social e familiar procurando um assunto. Teclando em contra relógio um texto, em esforço conseguindo um final. Cumprindo prazos de fecho de edição, apenas para agradar aos leitores. Fazer parte do quotidiano de quem lê jornais. Entrar em casa dos outros sem ser convidado e ser bem acolhido.
Emitir opiniões, exigir soluções, criticar a passividade, em modelo de entretenimento. Sem entrar no reparo do buraco da estrada, nem na critica pessoal, nem no banal ataque político. Escrever inesperadamente sobre a rua, o bairro, lembrando os vizinhos. Invocar a memória colectiva. Recordar uma ou mais árvores, um edifício esquecido, uma rua arrasada, ou ampliada. Uma paisagem alterada. Uma vila esquecida, uma aldeia perdida. Pelo meio, escrever sobre tudo e sobre nada.
Semana após semana. Com a irregularidade necessária.
Habituámo-nos a ler essas opiniões. Estranhamos as ausências prolongadas.
Manuel Tavares e José Manuel Bastos acompanharam-nos toda a vida.
Em 2011 deixaram um vazio muito preocupante na imprensa local.
Um pouco antes do último compasso, abro os olhos. Foco o piano. Preparo as mãos para a merecida aclamação. Quando surgem os aplausos, um sorriso de dever cumprido instala-se no rosto do pianista. A audição prossegue. De olhos abertos, marco os tempos de cadência com o pé elevado.
- É preciso marcar o compasso – disse-me inesperadamente, ao reparar uma avaria, o falecido Sr. Moreira, mecânico de profissão, músico nas horas livres.
(a publicar no dia 29/12/11)