quarta-feira, outubro 26, 2016

O som do silêncio

                Uma homenagem requer as palavras certas. Fugir dos lugares comuns, dos elogios póstumos e dos padrões da solenidade é o propósito destas linhas, que serão o meu tributo à minha amiga Paula Pinto, recentemente falecida.

                Encontrar as palavras certas foi difícil, surgiram a custo e inicialmente sem sequência. O silêncio das condolências não era suficiente para o momento cerimonioso. Perante este dilema, pesaroso, sem muita inspiração, recebi o alento necessário para a escrita, ao escutar uma singela música. Uma versão de Nina Simone, ao piano e sem qualquer palavra, do êxito The Sound of Silence, permitiu-me recordar os momentos que se seguem.

Paula foi minha colega de turma, no equivalente ao atual sexto ano, na Escola EB 2/3, na época chamada Escola Preparatória Alão de Morais. Não me recordo se a conheci nesse momento. Isto porque nas férias anteriores ao ano letivo, participei no primeiro Campo de Férias Estamos Juntos, que se realizava na Escola do Parque, ou seja, nas imediações da casa da sua família e é natural que o conhecimento tivesse sido travado por ali.

                O início do sexto ano foi para mim traumático. A minha turma do ano anterior tinha sido dividida. Dos vinte e muitos elementos daquele quinto ano, decidiu a escola, colocar quatro ou cinco alunos por outras turmas que transitavam unidas do ano anterior. O choque foi grande. Para abreviar, lembro-me de passar as tardes livres pela escola, assistindo às aulas dos meus colegas do ano anterior, para assim, me manter ligado aos amigos de infância. Pela minha nova turma, a integração dos novos colegas foi assegurada pela Paula Pinto. Ela fez a ponte, atenuou as desconfianças e permitiu que os receios de quatro indefesos alunos, não se transformasse em algo mais complicado.

                Por aqui, tenho que acrescentar que a simpatia da Paula, sempre de sorriso na cara, modificou o meu conceito de beleza. A minha infantil imagem, narcísica – olhos claros e cabelos aloirados – esbatia-se e comecei a olhar com outro interesse para outras cores de olhos e mesmo para tonalidades de cabelos mais escuros. Embora, o tom claro de pele, que também a caraterizava, se tivesse mantido nas preferências.

                Depois desse ano, como colegas, nunca mais estudamos juntos. Eu continuei a dirigir-me para a piscina da Escola do Parque durante muitos anos, sobretudo, no mês de Julho e lembro-me de a ver, junto com os seus irmãos, alguns bem mais novos, em alegres brincadeiras, na varanda do apartamento, ou mesmo no final de tarde na estrada pouco movimentada, quando passávamos em grupo junto à oficina de pneus, que ficava no rés-do-chão do edifício. Também recordo, jogos de futebol nas traseiras da referida Escola, em que seu irmão Miguel nos deixava de olhos torcidos, devido à sua técnica e lembro-me de ter a Paula, em parceria familiar, como adversária nesses encontros. Acompanhei, pelo passar dos anos, o crescimento de suas irmãs e irmãos. Penso que ficou daí a cordialidade no trato com todos e a aproximação à sua irmã Lígia.

Os anos foram passando e os encontros alternavam entre o pontual e o frequente, pelos espaços de lazer da cidade. Mais pelas imediações da Praça. Ambos adolescentes à procura de algo novo e diferente, embora por caminhos alternativos. 

Mais tarde, ambos jovens adultos procurando um rumo para a vida. Neste capítulo, surgiu o reencontro, como colegas de trabalho. Lembro-me de entrar cheio de receio, numa área da fábrica onde iria começar a trabalhar, num final de tarde do dia 2 de Janeiro de 1996 e quando julgava que todos os olhares seriam duvidosos ou críticos, apareceu à minha frente a Paula, colocando-me à vontade no ambiente fabril, tal como catorze anos antes o tinha feito na escola.

Durante três anos, partilhamos gabinetes, reuniões, chefias, problemas a resolver, imprevistos surgidos, formações, etc.. Nesse tempo ficamos mais próximos. Dava-lhe boleia à hora de almoço, interrompendo esse bom hábito, durante uns meses em que laborei em regime de turno. Antes de ambos sairmos da empresa, procurando outros desafios profissionais, consegui retribuir as atenções que teve comigo ao longo da sua vida.

Cada um seguiu o seu destino. Paula encontrou o seu porto seguro. O meu afastou-me da cidade. Por isso, não acompanhei a sua chegada à maternidade. Só conheci os seus filhos alguns anos depois, encontrando-os acompanhados pelo Sebastião, o seu companheiro.

Nina Simone termina. No silêncio que permanece, as minhas memórias fixam-se na imagem de um final de tarde a regressar do tanque piscina do Parque e cruzar-me com a Paula, o Miguel, a Lígia, a Rita, a Ana, o Pedro e muito provavelmente acompanhados pelo Sérgio, seguiam juntos, irradiando alegria, prevendo-se uma grande noite de brincadeira familiar.

 

(a publicar no dia 27/10/2016)

 

quarta-feira, outubro 12, 2016

Depois da emancipação

Na continuação do artigo publicado na semana passada, sobre o significado da emancipação concelhia e a evolução comunitária nos 90 anos da sua história, importa, na presente edição, referir outros dados que permitirão entender a transformação operada na povoação ao longo das nove décadas.

Pode-se identificar três fases distintas nesta transfiguração quase secular.

A enorme vontade de afirmação perante os seus vizinhos, nos primeiros anos do concelho, fez de S. João da Madeira uma comunidade percussora.

Exemplo disso foram as  angariações de fundos, enquadradas pelo envio de remessas de grandes empresários brasileiros que marcariam as primeiras décadas do século passado. Só assim, se compreende a construção do hospital, por iniciativa da Santa Casa da Misericórdia, entre outros equipamentos. Sintomático, por ser ilustrativo, é a construção do pavilhão da ADS, antes de qualquer um das Escolas Secundárias, ou mesmo de iniciativa municipal.

Existe uma segunda fase de desenvolvimento, com a continuidade do forte investimento industrial, com a construção de imensas fábricas e instalação de lojas comerciais, a que se sobrepõe temporalmente o conceito de estrutura urbana do concelho, com a definição de zonas industriais, a abertura de arruamentos, o saneamento básico, entre outra infraestruturas essenciais, para a povoação adquirir níveis de qualidade de vida de primeiro plano.

                Em complemento deste desenvolvimento surgem as políticas do Estado de investimento em habitação social, entre outras ténues melhorias de descentralização implementadas.

Numa terceira fase, a atual, em que a economia local quebrou, não colapsando, mantendo empregos mas, sem a vitalidade e sobretudo, sem a visibilidade de outrora, a que não será estranho a aquisição de algumas empresas por capital estrangeiro, a autarquia adquiriu um papel preponderante no desenvolvimento da cidade.

Para retratar melhor a última fase, a contemporânea, verifique-se o grande investimento da Sonae no Centro Comercial, canalizado pela venda de terrenos da autarquia. Veja-se a ideia da incubadora de empresas, condicionando a opção empresarial a indústrias tecnológicas, quando no passado uma unidade industrial devoluta, permitia a instalação de micro empresas em fase embrionária, com o mais diversificado ramo de atividade.

                Três fases, não indexadas a anos certos, nem a regimes políticos distintos como os que o País viveu. Sendo certo, que a partir de meados dos anos 80, com as verbas atribuídas pelo Estado às autarquias locais, houve um desenvolvimento descentralizado, ainda assim em velocidade menor, quando comparado com a capital do País. Logicamente, que os fundos comunitários permitiram acelerar o progresso dos concelhos e S. João da Madeira não foi exceção. Assim, como as políticas de evolução dos vários Governos que permitiram a construção da rede escolar, de valências da Justiça, da Saúde, da Segurança Pública, incrementando a habitação social, entre outros investimentos públicos, a que não se pode esquecer a rede de estradas e autoestradas nacionais.

O perigo desta exposição ao serviço público ficou patente na última década, quando a necessidade de racionalizar os meios de Estado, colocou em xeque as repartições abertas pelo País e S. João da Madeira não tem uma história diferente, neste capítulo, dos restantes concelhos fustigados.

O ADN da população local é a conjugação das duas vertentes: a iniciativa privada e o investimento autárquico. Ponderado em doses apropriadas. Pensar que só com a última componente é que se promove o espírito comunitário é um grande erro.

Por aqui, pode-se explicar os resultados eleitorais dos anos da democracia, com o escrutínio das eleições autárquicas a ser, a mais das vezes, diferente da tendência das eleições nacionais.

A História por vezes é muito elucidativa.

 

(a publicar no dia 13/10/16)

terça-feira, outubro 04, 2016

A emancipação

A proximidade, da presente edição do jornal labor, ao dia 11 de Outubro, obriga à referência deste texto à emancipação concelhia de S. João da Madeira.

A sequência cronológica, frenética, de elevação a vila em 1924 e posterior passagem a concelho de freguesia única em 1926, não deixa muito fôlego para olhar para os anos anteriores.

É sabido que desde 1514, concedido foral por D. Manuel, foi constituído o concelho da Feira. Desaparecia o domínio feudal, iniciando-se uma regular aproximação do povo com o seu Rei. S. João da Madeira era uma das suas inúmeras freguesias. A maioria, ou a mesmo a totalidade, começavam o seu nome pelo devotado orago, fazendo-se a analogia das paróquias existentes, para se estabelecer a subdivisão territorial do concelho.

Em 1799, ainda em regime absolutista, surge o concelho de Oliveira de Azeméis. Das várias freguesias que o compunham duas delas, Arrifana e S. João da Madeira, viriam a desempenhar, nos anos seguintes, histórias diferentes e muito provavelmente interligadas. Com a redefinição liberal dos concelhos, por Mouzinho da Silveira, Oliveira de Azeméis agregou o extinto concelho do Pinheiro da Bemposta e, em contrapartida, perdeu Arrifana para a Vila da Feira. Ou seja, em pouco mais de 30 anos. É muito provável que este seja o momento decisivo para a futura emancipação de S. João da Madeira. O mal-estar da população de Arrifana - e do próprio concelho Feirense, pela sua amputação a Sul -, devia ser idêntico à da população de S. João da Madeira, que não devia ver com bons olhos a sua indexação a um novo concelho, que durante anos foi uma freguesia de igual calibre. Uma justificação para a latente animosidade entre populações.

É curiosa a relação das populações com as festas ancestrais. A venda de fogaças por toda a cidade de S. João da Madeira, no dia 20 de Janeiro, sempre me surpreendeu. Com o avançar da idade, apercebi-me de uma simpatia da população local e das freguesias vizinhas, algumas do concelho de Oliveira de Azeméis, com a festa das fogaceiras e o seu cortejo etnográfico. Para cimentar a minha posição, testemunhei a presença de um antigo Presidente da Câmara Municipal de S. João da Madeira, integrando o referido cortejo, e a forma como os populares se relacionavam com ele, permitia verificar a forte inclusão da população desta cidade na assistência. 

A emancipação de Espinho, saindo do concelho da Feira, no final do século XIX, permitiu entrar-se no século anterior com a ambição de tornar S. João da Madeira concelho. As pretensões dos sanjoanenses intensificam-se com a construção de edifícios icónicos e a constituição de associações. O progresso industrial, a melhoria económica da população, as boas acessibilidades, por estar inserida na estrada nacional Porto – Lisboa e servida de linha de caminho-de-ferro, incentivou a emancipação. Historicamente, tal facto devia ter acontecido na Primeira República, ou seja, na mudança de um regime para outro, ficando a criação do concelho como uma marca dessa alteração regimentar. Tal não aconteceu. Só com a revolução de 28 de Maio e pela mão do Almirante Jaime Afreixo, é que S. João da Madeira atingiu o seu objetivo.

Existe outra curiosidade associada à emancipação. Precisamente a sua comemoração como feriado municipal. Apesar da referência ao orago no seu topónimo e da identificação da população,  precisamente com o nome do santo, não foi escolhido o dia 24 de Junho para feriado local. Uma exceção regional, com laivos da moderna laicidade.

Esta segunda curiosidade permite refletir sobre a relação da população com a povoação. É conhecida e tem sido estudada, a ligação do homem com a terra. O sentimento de posse, tão útil na economia de subsistência, é transferido, com a mudança para a economia de produção, para outros valores. O conceito de comunidade modifica-se por conseguinte e a ligação ao território passa a ter outra importância. O bairrismo é a consequência desta modificação económica e social. E neste sentido, festejar o território como feriado municipal em detrimento de valores religiosos, acentuou a componente moderna da povoação, durante o século XX.

É certo que no século XXI, a agora cidade, já não pode viver isolada sobre ela mesma. Os tempos alteram-se de novo, as fronteiras territoriais “desapareceram” e a relação com as povoações vizinhas passaram a ser de parceria, sem prejuízo para qualquer das partes. A circulação dos habitantes desta região pelos vários concelhos, em função da oferta económica, residencial, social, cultural e mesmo turística, não esquecendo a prática desportiva, é, nos dias de hoje, o principal factor a caraterizar este vasto território, inserido no extremo sul da área metropolitana do Porto.

A diferenciação nos equipamentos poderá ajudar a fomentar a atratividade da cidade, mas tudo só estará completo se houver ajustamento social e recetividade à mudança, tal como foi evidenciado durante o século passado.   

         

(a publicar no dia 06/10/16)