Era eu pequeno, bem pequeno e o mundo da política pouco, ou nada, me interessava. Os políticos apareciam em imagens a preto e branco, quer nos jornais, quer na televisão e vestiam-se todos de forma igual, muito formal, de fato, com gravata sobre uma camisa branca. As discussões à volta da política eram bastante crispadas. Observava os adultos com os ânimos exaltados e ouvia-se imenso barulho, mesmo nos programas de televisão.
Por essa época, num regresso a casa, num final de tarde de Domingo, vindo de carro pela estrada nacional número 1, que era praticamente a única oferta, para quem queria voltar das imediações do Porto para S. João da Madeira, ao passar em Lourosa, presenciei os meus pais a ficarem surpreendidos ao verem Mário Soares em campanha eleitoral, numa carrinha Peugeot 504 beje, com apenas uma bandeira do Partido Socialista, sem comitiva atrás dele e com uma dezena de pessoas à sua espera. No fluxo intermitente dos semáforos da localidade, que ainda hoje subsistem, deu-me tempo para olhar e observar a felicidade daquelas dez pessoas a abraçarem Mário Soares e ele a retribuir. Para mim, era a primeira vez que via um político. Em carne e osso, a cores, sem roupa cinza-escura. Enquanto isso, apercebi-me que os meus pais trocavam os apropriados comentários, perante a desoladora cena presenciada, a pouca afluência de pessoas, à espera do antigo primeiro-ministro. Estávamos nos finais da década de 70, do século passado.
O político ainda voltaria a vencer no partido, ainda voltaria a ser Primeiro-Ministro, resgatando o país da bancarrota, provocada por um governo da antiga AD, impondo uma segunda vinda do FMI. Na época, habitual, já que no seu primeiro governo, Mário Soares também teve que chamar o Fundo Internacional.
Em 1986, apesar de eu ter apenas 15 anos, a eleição presidencial não deixou ninguém indiferente. Depois da primeira volta, o mundo político partia-se em dois. A maioria dos jovens tinham dísticos do “Prá Frente Portugal”, eu optei pelo “Soares é fixe”, no que foi a minha primeira participação em campanhas eleitorais. Cheguei a envolver-me na campanha, passando música na sede, que ficava situada na esquina da Praça Luís Ribeiro com a Rua da Liberdade. Aí senti a hostilidade entre a militância e a independência política, algo que infelizmente me acompanhou durante as décadas seguintes e que tantos dissabores me causaram.
Se a vitória de Soares, a 16 de Fevereiro daquele ano, foi um marco político importante, os seus dois mandatos foram extremamente importantes na definição da condição de social-democrata.
Pelo meio surgiu a sua vinda a S. João da Madeira, que proporcionou uma lufada de modernidade à cidade, convertendo-se o centro em zona pedonal. Nessa visita, que segui com entusiasmo, tive a oportunidade de ser cumprimentado pelo Presidente da República, que vendo alguém a ladear as ruas, acenava sem qualquer despudor. Magricelas, cabeludos, vestido de preto, com botas de tropa nos pés, a todos, o Presidente cumprimentava, sorrindo com simpatia. Ato espontâneo, que tive oportunidade de verificar, anos mais tarde, nas ruas de Lagos enquanto se dirigia para o jantar, ou noutro registo, nas ruas do Porto, nos banhos de multidão das Presidências Abertas.
Recordo a campanha eleitoral de 1991, quando a Praça Luís Ribeiro encheu num Domingo à tarde, com a multidão à espera da passagem de Mário Soares pela cidade. O contraste com a campanha do final da década de 70, fizeram-me perceber como é importante não desistir, quando temos convicções ideológicas e políticas.
O seu segundo mandato presidencial foi, para mim, o seu melhor período político. De combate permanente à maioria de direita, demonstrando que nem tudo era sucesso em Portugal. Foi neste período que aprofundei a minha consciência política e este mandato vincou as minhas opções durante os vinte anos seguintes.
Mário Soares foi político toda a vida. Antes do 25 de Abril, durante o processo da revolução, nos anos da democracia, não conseguindo parar de se envolver nos atos eleitorais. Terá dito basta e arrependeu-se de o dizer. Esticou em demasia a corda, só que estava-lhe no sangue e jamais pararia, enquanto tivesse energia para participar em campanhas eleitorais.
Soares foi fixe.
Soares será recordado como um dos homens da liberdade e da democracia Portuguesa. É necessário acrescentar a tolerância e o pluralismo, que ele tão bem compreendia e incentivava.
Soares é do Povo.
O eterno bochechas, sempre disponível para receber um abraço, ou um beijo das peixeiras nas suas faces.
Até ao Presidente da República atual, nunca houve outro, que compreendesse o simples Português, como Mário Soares o fez.
(a publicar no dia 12/01/17)