quarta-feira, março 15, 2017

Portas e janelas

                Na década de 40 do século XX, em período da 2ª Guerra Mundial, a professora da Escola Primária deu como trabalho de casa, aos seus alunos, contarem as portas e as janelas de casa. Entusiasmado, o meu tio Joaquim chegou a sua casa e pôs mão à obra. Primeiro nas traseiras, no piso térreo e no primeiro andar, depois na frente da casa. Tirou o apontamento e no dia seguinte mostrou o resultado: 10 portas exteriores e 15 janelas. Ao ouvir isto a professora não acreditou. Considerou ser fantasia infantil e para demonstrar ao meu tio o seu erro, pediu aos outros miúdos que apresentassem os seus resultados. Escusado será dizer que não havia valores que se aproximassem, pelo que o meu tio foi corrigido pela professora, com a explicação que cada casa tinha duas portas exteriores no máximo e igual número de janelas, ou quanto muito, mais uma ou outra janela. 
                A indignação, por não acreditarem nele, fez com que o meu tio Joaquim adquirisse sensibilidade social desde muito cedo, pois para perceber a diferença na contagem, passou a observar a casa dos colegas com outros olhos. E dentro dos princípios cristãos, que o orientaram ao longo de toda a sua vida, este ensinamento acompanhou-o sempre e manteve-o simples.
O meu tio Joaquim contava o seu episódio sem mencionar as portas interiores. A este propósito, é bom recordar um ritual curioso, diário, de à noite, fechar todas as portas exteriores e portadas das janelas, com trincos e trancas. O mesmo acontecendo à sucessão de portas de compartimentos inferiores de modo a impedir o acesso pelo interior ao piso de cima. De tal forma, que a minha falecida avó Florinda dizia, com a sua graça, que qualquer ladrão noturno teria que abrir tanta porta, que só chegaria junto a ela de manhã, com toda a casa acordada.
Cada fechadura tinha um segredo. O meu tio António conhecia todos os truques daquelas portas. Foi com ele que aprendi a ser persistente para vencer uma fechadura. Um encosto, para folgar o mecanismo, noutros casos puxava-se a porta para cima, ou então para junto de nós. Ainda há, por lá, vestígios da sua numeração das portas e respetivas chaves. Embora haja outros motivos para recordar o meu tio António: a sua persistência em ensinar-me o hino do Futebol Clube do Porto, mesmo sendo eu já em tenra idade adepto do Benfica, ou até, pela sua disponibilidade em assumir os defeitos dos sobrinhos, ou mesmo, pela sua faceta mais liberal nos costumes.
A este propósito foi o meu tio Henrique, bastante mais velho que os restantes irmãos, que me ensinou como conquistar a liberdade noturna. Contou-me ele um dia como em jovem esticava a hora marcada, embora soubesse que à porta de casa o pai estaria à espera. Se foi assim, pelos anos 30 do século passado, haveria de resultar comigo, cinquenta anos depois. Este meu tio era mais aventureiro. Aos 75 anos, já viúvo, anunciou uma ida a França, sozinho num Fiat 127. Chegado a Lourdes, apontou para Berlim para ver o muro acabado de cair e ali chegado, ainda prosseguiu no seu pequeno automóvel até à Polónia para conhecer a terra do Papa – João Paulo II. Escusado será dizer que não sabia falar Alemão, nem muito menos Polaco. Regressou com pedras do muro e com uma grande aventura para contar. Quando, em 2016, anunciaram o centenário de Kirk Douglas, um dos atores preferidos do meu tio Henrique, adepto das fantasias de Hollywood, emocionei-me, pela carga familiar associada.
Só me apercebi da importância que aquela casa teve para os meus tios, quando há alguns anos, uma das irmãs do meu pai, a minha tia Josefina, já idosa e com graves problemas de memória, em que não reconhecia os seus familiares, ao passar em frente à fachada da casa, ao avistar aquela sequência de portas e janelas, exclamou “Olha a minha casa!”, isto depois de ter construído casa própria, onde habitou durante muitos anos.
As outras duas irmãs do meu pai, Rosa e Mariíta, felizmente ainda estão vivas e partilham certamente o mesmo sentimento dos seus irmãos.
O meu pai herdou a casa. Conservou-lhe a fachada, manteve as janelas e basicamente existe o mesmo número de portas, com pequenas alterações relativamente à contagem mencionada no primeiro parágrafo.
Como Domingo é dia do Pai, decidi partilhar com os leitores esta pequena homenagem familiar.
 
(a publicar no dia 16/03/17)