domingo, janeiro 01, 2006

Viva Vitor Baptista

Os sótãos são lugares de recordações. Arrecadações de memórias. Armários ou caixas com objectos do nosso passado, imagens guardadas da nossa infância. Em casa dos meus pais, nas paredes do compartimento que tinha uma aldeia de Lego, apareciam posters com sucessivas equipas de futebol, todas do Benfica, claro. O último, enorme, indicava Tri-Campeão Nacional 76/77. Os jogadores perfilhavam-se nas poses habituais, 6 em cima 5 em baixo, ou vice-versa. Eram os cromos adorados, ali todos juntos. Os heróis de Domingo à tarde dos relatos ouvidos e jogadas imaginadas, que transmissão televisiva não havia em directo. O suspense interminável para nós ouvintes, do autor do golo. Quando terminava o fôlego do relatador, os festejos redobravam. Da rádio ouvia-se a frase “Um golo de levantar o estádio – Vítor Baptista, que remate, senhores ouvintes!”
O meu cromo de infância, teve uma vida errante. Uma história igual à de tantos outros jogadores da bola. Infância pobre, cedo ficou órfão de pai. Trabalhos sucessivos a partir dos 10 anos, até que um dia foi descoberto pelo Vitória de Setúbal, com 15 anos. Chegou tarde ao mundo do futebol e só aos 23 ingressava no Benfica, tendo jogado várias vezes pela Selecção Nacional. Perdeu-se na quimera, na droga e na loucura. Uma sucessão de rebeldias, excentricidades, exotismo e um contrato não renovado, atiraram Vítor Baptista para um fim de vida destroçado. Muitos ainda se devem lembrar da reportagem da TV, da sua vida entre a barraca e o cemitério, onde trabalhava como coveiro.
No seu trabalho de 2004, Vitorino, músico, recordou-o numa canção intitulada “Rapaz do Brinco”. Badalada numa rádio nacional, um dia chegou do banco de trás do automóvel, a inevitável pergunta: quem é o Vítor Baptista? Dos golos bestiais, duma vida incompreensível para pequenos, optei por contar o seguinte: “foi um jogador do Benfica, que num jogo perdeu um brinco, na relva. Parou a procurá-lo e como não o encontrava, pôs toda a gente a ajudá-lo. O jogo esteve parado”. Risos. “Engraçado, que piada...”. Fiquei pasmado. Era o rebelde a ser redimido. A posteridade de uma vida efémera, conquistada pelo brinco perdido. Vítor Baptista tinha resistido ao tempo. Evocar o episódio do brinquinho, demonstra que um jogador pode ser para sempre recordado, não pelos seus feitos com a bola, mas por uma bizarra história. A antítese do ofício.
Em período de campanha para as eleições presidenciais, imaginar pelo que ficará recordado cada um dos actuais candidatos permite várias considerações. Todos têm um vasto currículo político. Profissionais de carreira política, uns com mais anos de serviço e outros a caminho. Alguns são já História e querem continuar a sê-lo. Os motivos porque concorrem são também curiosos. Os mais novos para segurar eleitorado, os mais velhos por “birras”, por reedições de confrontos, ou para recuperar eleições perdidas no passado. Curiosa é também a interpretação dos candidatos das funções do Presidente. Um deles, com experiência do lugar, afirma que nada se pode fazer. Outro, pretende fazer o que a Constituição da República não permite. Em matéria de orçamento da Presidência, dotada para o ano de 2006 com 30 milhões de Euros, o tema ainda fica mais disparatado. Um afirma que será rigoroso na execução, propondo-se a viajar pouco! Os outros dizem “nim”, pois ao candidatarem-se não vão fazer considerações sobre tão importante verba.
O tema das Presidenciais estava há muito resolvido para mim. A possibilidade de candidatura do meu irmão, Luís Filipe Guerra - era quem colava os posters nas paredes do sótão - animou as hostes familiares. Da mesma forma, a sua rejeição pelo Tribunal Constitucional criou um vazio preocupante. Votarei é certo, mas sem convicção. A menos que algum candidato me surpreenda e proponha a extinção do cargo do Presidente da República. Seria o cúmulo do paradoxo de Vítor Baptista e era um grande favor à nação. A Presidência é um sorvedor de dinheiro, sobretudo, num país em crise. As actuais competências do Presidente como alto representante da nação são um luxo. Repúblicas, com tiques de Monarquias, não são genuínas.