Os preparativos foram rápidos. A roupa já era quentinha, foi só enfiar um bom casaco de agasalho, um gorro, o cachecol, uma luvas e as inevitáveis galochas preparadas para o frio. O pai prometera uma viagem à neve, ali perto de casa, na Serra. Assim, quando a mãe chegou para o almoço, o programa para a tarde já estava traçado. “Vamos ver a neve!”, “Está tanto frio! Onde?”, “ À Serra da Freita” sem uma letra trocada e com grande convicção.
O dia amanhecera sem nuvens, gelado. Na hora de almoço o céu encobria e tornava-se cinzento, com um tom bonito. O pai disse que já nevava na Serra e a expectativa aumentou. O caminho era sinuoso e o conforto do carro levou ao sono. A voz do pai anunciando a descida de temperatura serviu para embalar. Ainda ouviram zero e menos qualquer coisa, mas aos olhos tudo aparecia cinza, verde e castanho. Mais valia ficarem fechados.
O pai escolhera o trajecto no qual lhes tinha mostrado neve pela primeira vez. No parque de Campismo junto ao Merujal, rumar à esquerda e apanhar a estrada para uma aldeia que tinha o nome dos pastores de cabras, Cabreiros. No cimo da serra, antes de cortar para a estrada da aldeia, apareciam umas gigantes ”ventoinhas”. Estava nevoeiro e não era possível perspectivar a quantidade de torres, com as respectivas pás, que iam aparecer à frente dos olhos. Ora do lado esquerdo, ora à direita, um pouco afastadas, mesmo ali ao lado, umas mais baixas, outras enormes. O forte vento da encosta da serra jamais será desperdiçado. Aquela paisagem ficará para sempre ventilada. Mas, parafraseando o poeta, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”.
O frio era intenso, mas neve nem vê-la. Nem no horizonte, olhando para S. Macário, onde apareciam mais uns aerogeradores (que é o nome correcto das ventoinhas) e foram elas que acalmaram o choro da Luisinha, que escolhera acordar ali. Chegados a Cabreiros a desilusão aumentava, nem uma ponta da fofa neve.
Aqui não se vê ninguém, só no final da jorna é que o café da esquina recebe gente, aquecendo a garganta e derretendo o fígado, “o cálice da cirrose”, como diria Lobo Antunes.
O pai opta por seguir pela estrada em direcção ao outro parque de campismo. Mal desfez a curva, exclamou “está a nevar!”. Flocos minúsculos a baterem no vidro do carro. Certinha. À medida que o carro foi subindo, os flocos engrossavam.. Os animais recolhiam. Primeiros as vacas, longe da transumância. Depois as ovelhas, uma delas negra, já com o dorso todo branco e por fim, as cabras. “Quero ver porcos!” disse a Luisinha, sempre fascinada pelo cor-de-rosa, como se estivesse numa quinta ou em qualquer página virtual, com opção de escolha. O que se viu foram uns corajosos ciclistas, com carro de apoio, é certo, fazendo lembrar uma caminhada dos pais dali até à mina Chã, com a neve pelas costas.
Rumámos a Manhouce pela Coelheira, aldeia rodeada de “gigantes”, sempre com a neve a cair. A vegetação rasteira já começa a aparecer branca. O alcatrão ainda se desvia para Vilarinho, deixando em terra batida uma curiosa picada feita em tempos idos, em sentido contrário, num carro citadino. Um dos residentes certamente agradaria a Torga, ao explicar-me a eleição, pelos pastores, do javali como animal selvagem daqueles lugares, por não temerem e expulsarem os lobos, o que de certa forma protegia os rebanhos. Não sabia ao certo o que eram, mas indicou-nos o lugar de umas antas, já submersas nas raízes de pinheiros, o que me fez entender a “revolta” do escritor transmontano, falecido uns anos antes.
De volta à realidade, com a voz acordada e entusiasmada do Manel a perguntar pela neve, chegámos à aldeia da dinâmica professora, que com a pronuncia do Norte deu alento ao interior serrano. A tradição ficou nos teres, haveres e nos nomes das casas, pois um reclame em tons de azul e laranja e o neon do Dancing, demonstram que o progresso já por aqui passou.
A neve aqui é menos intensa, pequenos flocos novamente. Pequena foi também a paragem para sentir o frio na cara. É tempo de subir novamente à Freita, para ver o manto branco. A nuvem está parada no cimo da serra. Só a estrada é que não ficou branca, por agora. As placas começam a ficar sem letras, o alcatrão ainda resiste. Bons tempos os da terra batida, com o Rali a aquecer a noite e os pilotos Finlandeses a pedirem neve, para tentar vencer os Lancia.
Das pedras parideiras até Albergaria, todo o percurso tem neve. É tempo de parar e desfrutar. “Este tempo cura”. Um ou outro mais urbano, como nós, felicita-se pela opção serrana, daquela tarde de sábado, sai do carro e grita. A neve cai e cobre os telhados coloridos de Albergaria, a das Cabras. As margens do rio estão lindas, vazias, sem lixo à vista que deve ter ficado por baixo da neve. Não adianta espreitar a frecha, pois a nuvem não deixa. Será que nevava quando Aquilino descreveu no Volfrâmio a queda por descuido dos pendurados garimpeiros, ao cortar com a picareta a corda que os sustentava?
Fechar a volta. Neve e mais neve, a noite não tarda a chegar. O dia seguinte vai ser encantador e concorrido. “Pai, amanhã vimos outra vez”. Não fomos. Outros interesses, leia-se compromissos.
Todo o sul do país acordou com neve.
Afinal enganei-me.
Devíamos ter ido esperar a neve à praia.