terça-feira, julho 11, 2006

Dizer não

Raimundo Silva ficou conhecido na literatura portuguesa pela introdução de um erro nas provas de um livro, negando a ajuda dos cruzados aos portugueses na conquista de Lisboa. O “não” voluntário do revisor de livros, alterou a frase, mudando a história com a simples força de uma negação. Assim o escreveu José Saramago, na sua “História do Cerco de Lisboa”.
Muitas vezes os revisores de texto num jornal, ao lerem algumas notícias ficam com um sentimento de ambiguidade. Devem verificar apenas o relato de acontecimentos, exercendo o seu o papel de revisor ou pelo contrário alterar o texto e o sucedido, de modo a que os factos fiquem com outra lógica e mais de acordo com a sua opinião pessoal.
Raimundo Silva caso fosse o revisor das páginas deste Jornal, ao ler o texto do jornalista a propósito da posição de abandono de um dos partidos da Assembleia Municipal, aquando da votação da moção final sobre a requalificação da linha do Vouga ficaria pensativo. Tornaria a ler. Exclamaria: “Isto não faz sentido”. Pegaria no texto e teria coragem para escrever que esse partido “Votou contra a moção, apesar dos apelos feitos pelo Presidente da Câmara Municipal”. O revisor de texto alteraria novamente a história. Na sua perspectiva fictícia, adiantaria que tal partido havia referido que apenas votaria favoravelmente a moção apresentada, caso o actual executivo retirasse o projecto do transporte tipo vai-e-vém. Como o Presidente quis fazer prevalecer a sua maioria, aos deputados municipais desse partido não restava outra solução, justificar-se-ia. Apesar de não lhe competir essa tarefa, Raimundo não estava descansado, o corpo da notícia não correspondia ao sub-título da primeira página do jornal. Recatadamente e sem alguém da redacção dar por isso, o revisor alterou-o para: “PS votou contra”.
Com a sensação de dever cumprido, Raimundo iria descansar e preparar-se para o dia seguinte, o da edição do Jornal. As justificações perante o Director do Jornal e o jornalista, autor do texto, iriam começar cedo. A contradição com a edição do outro semanário local, daria logo alarme e uma valente confusão.
No silêncio nocturno de uma cidade movimentada, pensou que o acto de rebeldia seria apreciado pelos leitores, poucos ou muitos, não interessava. A cidade ficaria dividida e talvez assim a tão desejada participação cívica fosse de novo uma realidade.
Estaria preparado, para enfrentar tudo e todos: os elementos do partido em causa, os dos restantes partidos, o Presidente da Assembleia e até os membros do Executivo, se fosse caso disso.
O problema era dele mas, Raimundo sabia como responder. Começaria por afirmar que há muito tempo tinha aprendido a dizer não. Enquanto adolescente soube muito cedo como era importante saber dizer não, até por necessidade de afirmação. Tinha lido que, hoje em dia, textos de gestão de empresas ensinam como é importante saber dizer não. Com fundamento, é certo. Nunca aprofundou a matéria, de tão envolvido nos textos dos outros.
As notícias que tinha corrigido sobre política local, davam-lhe preparação suficiente para argumentar politicamente com qualquer um. Um partido político pode colocar-se numa oposição construtiva, sem unanimidade em torno do programa eleitoral do vencedor de eleições. Indignava-o como tinha sido colocado o argumento da apresentação do projecto à Secretária de Estado dos Transportes. Para concluir, puxaria do “trunfo” sempre usado pelos políticos, da desilusão do eleitorado afecto à cor do partido em causa.
Antes de adormecer o telefone tocou. Era do Jornal. Engoliu em seco e logo se tranquilizou... um vírus tinha eliminado alguns ficheiros no computador da gráfica, seria necessário enviar novamente “provas”. O director estava a comandar as operações, pediam a sua ajuda para recompor toda a edição. Acedeu.
Pelo caminho, resignou-se. Não valia a pena tentar novamente. “Afinal”, pensou, “será preciso ajuda dos cruzados”.