Após a leitura da última página de um livro, existe um momento que antecede a sua arrumação. Quando o livro nos interessou fica exposto algum tempo, em cima de uma mesa, ou na mesinha de cabeceira, ou noutro sítio de uso pessoal. Esse tempo é o momento de reflexão sobre a leitura terminada. Propositadamente não o colocamos na prateleira, na estante. Ao vê-lo desarrumado, sabemos que o livro ainda tem algo que nos encanta. Uma dúvida, um assunto por resolver, uma série de referências que precisamos de decifrar. Pesquisamos, ora suave ora intensamente, sobretudo quando nos é permitido, usando os meios de que dispomos.
Googlear é actualmente o acto mais eficaz.
“Suspiros en España”, um pasodoble do final do século XIX, serviu ao escritor Javier Cercas como ligação do relato da vida do falangista Rafael Sánchez-Mazas para a continuação da sua narrativa e concretização do seu livro “Soldados de Salamina”. A narrativa encaminha-nos para a coincidência da dança ao som do tal pasodoble, em tempos diferentes, contado por distintas pessoas, tendo como elo simultâneo, um soldado republicano, que o escritor acredita ser o mesmo que salvou a vida ao nacionalista atrás citado. O autor, certamente premeditadamente, persegue através desta música o propósito de reconciliação entre os opositores da guerra civil.
Consegui ouvi-la através do motor de busca mais utilizado na actualidade. Apercebi-me ainda que muitos dos nossos vizinhos vibram ao ouvi-la. Uma música que os faz comover, sobretudo, quando estão no estrangeiro.
Uma ideia de identificação com o seu próprio país, com a língua comum. Tentei a analogia com o nosso país. O patriotismo em Portugal é hoje em dia um conceito banalizado, resume-se a um kit, composto por uma bandeira - hasteada de qualquer forma em casa - e por cantar o hino no início e durante os jogos da selecção de futebol.
“Um fado” – responderam-me quando questionei qual seria a música dos Portugueses. Aceitei prontamente interrogando, mas qual? “Um qualquer” – asseguraram-me.
“Fado” era uma faixa do disco "Sex and Death", editado em 1994, pelos Durutti Column - banda britânica do guitarrista Vini Reilly. Recordo-me da primeira vez que ouvi essa faixa, pensei que algum erro tinha o leitor de CD. Como era possível ouvir-se a voz de Amália no meio da melodia de Vini Reilly? A dúvida ficou desfeita na contracapa do CD. Essa faixa tinha um "sampler" com a voz "à capella" de Amália Rodrigues, interpretando o poema “Povo que lavas no rio”. Esta referência do britânico a Portugal é, sem dúvida, curiosa, não se tratando de uma versão como a de António Variações ou a de Dulce Pontes, apenas o reconhecimento ao nosso país, que durante anos o apreciou.
Lendo o poema na integra de Pedro Homem de Melo, verificamos a monumental homenagem, com mais de 50 anos, do poeta dedicado a conhecer o seu povo, interagindo com ele, apesar de toda a sua ascendência aristocrática. Não distante nem solitário, como António Nobre, que apesar de escrever belos versos referindo-se a quem bem o acolhia e tratava, não conseguia ligar-se abertamente ao povo, refugiando-se e preferindo retirar-se para outros lados.
Com este forte suporte étnico, que na íntegra retrata um certo conceito do povo Português, o fado “Povo que lavas no rio” na voz de Amália Rodrigues, é resposta à minha pergunta.
Procurei ouvi-la novamente. Com os auscultadores no devido lugar, seleccionei a faixa...
Agora o livro de Javier Cercas poderá ir para a prateleira, juntando-se a outro do mesmo autor. Por ali ficará, amarelecendo ao tempo.