quarta-feira, abril 02, 2008

Carreiros

O relato de uma amiga de família, afastada de S. João da Madeira há mais de vinte e oito anos, devido aos seus estudos universitários e consequente vida profissional, permite evocar de memória aspectos esquecidos da cidade. Do seu tempo de estudante do ensino secundário recordou o caminho que percorria de casa para as escolas: "pelo meio dos campos". Isto, traduzindo por toponímia actual, significa que a Avenida Renato Araújo não estava aberta do Largo do Souto até ao Hospital, nem sequer mais para sul.

Muitos dos percursos nessa época ainda eram feitos a pé, utilizando-se o caminho mais curto. Criavam-se carreiros por todo o lado. Não apenas os estudantes mas, a população em geral. Distantes estão as recordações de pessoas que atravessavam caminhos, transportando o almoço de progenitores, ou de outros familiares, empregados em fábricas.

(Lembro-me de um postal alusivo à localidade conter uma fotografia de uma mulher com uma espécie de canastra na cabeça, num qualquer caminho. Um retrato extremamente rural que eu em criança, por desconhecer essa realidade, sempre tive dificuldade em entender.)

Amílcar Correia numa alusão ao seu passado nesta localidade, nas páginas d' “A Balada do Níger”, evoca um outro pitoresco testemunho, uma sebe com direito a videira, implantada no centro duma artéria da Quintã.

O progresso de evolução normal das localidades, dos meios de transporte existentes, obrigaram a várias transformações na rede viária, com a abertura de ruas ou avenidas. Os atalhos cederam o seu lugar.

A vontade de afirmação como cidade industrial, com elevados índices de urbanismo por metro quadrado, implicou a perda do lado gracioso de S. João da Madeira. Do período anterior à sua elevação a cidade, a rede de carreiros estendia-se a toda a localidade. Lembro-me de outros, para além dos citados: no Espadanal para se atingir o rio, nas suas margens nas Travessas; na Devesa Velha e nos Fundões, lugar onde existia um moinho e pontes de madeira, com traves quebradas sobre o rio; na Quintã - apesar de atravessada pela principal estrada nacional – existia uma série deles (várias noites, atravessei a artéria atrás citada, muito mal iluminada, espreitando sempre o recanto criado por detrás da sebe, para evitar surpresas desagradáveis); a ligação de Fundo de Vila aos moinhos de Casaldelo, ou dos carreiros no Orreiro ao longo da ribeira da Buciqueira; mesmo no Parrinho, em período anterior à construção da “variante”… entre outras memórias.

Quase tudo desapareceu, certamente. As já então decrépitas ruínas devem encontrar-se hoje num estado lastimoso, ou pior, não existirem simplesmente. Tenho a lucidez, ou melhor, a percepção de que jamais voltarei a percorrer os poucos carreiros que restam da minha meninice. Actualmente o pouco tempo livre que tenho, não me permite procurar ou desbravar os caminhos de antigamente. O enquadramento industrial de alguns, com o inevitável mau trato ambiental e o abandono de outros, não são propriamente apelativos para as horas de lazer.

Os indícios descritos eram todos periféricos, sinal que a transformação urbana da cidade ainda não se tinha expandido. No centro, eram mais raros vestígios do período pré-industrial. Hoje ainda permanece um velho testemunho: o tanque do Pedaço. Escondido atrás da sebe, junto ao Fórum Municipal.

O semanário Sol, enquanto divulgava nas suas páginas os dados e respectivos rankings dos concelhos com maior qualidade de vida, apresentou uma reportagem de Lisboa, em que “ (...) ainda há quem saia de casa com uma trouxa de roupa suja, para lavar nos tanques dos lavadouros públicos que resistem em certas zonas da cidade, como na freguesia de Carnide (...) ”.

Desconheço se o tanque de S. João da Madeira ainda é utilizado. Caso não seja, era tempo de se perder a vergonha e enquadrar este local público, que representa uma bela tradição comunitária, no espaço envolvente e promover a sua preservação.

Muitos são os concelhos que encontram em pequenos nadas, sem necessidade de investimentos megalómanos, nem tendo como finalidade a exposição mediática, o património humano das suas gentes. Por todo o país vemos reconhecido o esforço de populações, com a reabilitação de diversas ocupações das suas comunidades. Todo um testemunho etnográfico, que permite traçar o perfil histórico de uma terra ou região.

É importante, para efeitos futuros, assegurar a memória da cidade.



(publicado dia 03/04/08)

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