terça-feira, abril 22, 2008

Alvoradas

            Uma mudança de casa implica uma série de tarefas: empacotamento, carregamento, transporte e consequente arrumo, dentro das prioridades pré-estabelecidas sobre os nossos pertences. Alguns objectos vão ficando para trás, esperando o seu momento para serem transferidos.

            Ao deixar para o final um pequeno cágado criei uma aflição num dos meus familiares. O sossegado bichinho ficou uns dias à espera da sua hora na mudança. Entretanto, no remate das tarefas, o cágado lá veio para a nova casa, para descanso do ente querido. Curiosamente, este foi um dos poucos animais que até hoje não perturbaram o meu sono. Infelizmente, o cágado não durou muito tempo e provavelmente por isso, não teve oportunidade para essa interacção comigo.

            Além deste, poucos foram os animais que dormiram dentro de minha casa. Peixes dentro dum aquário, com a natural sucessão de vidas em água fria, acompanharam-me durante anos. Apesar de serem extremamente calmos, ainda fui acordado algumas vezes pelos ocupantes da tina. Um salto matinal, um borbulhar mais ruidoso, ou o raio de um batente do varão dos cortinados que numa madrugada caiu precisamente dentro do aquário, de forma ruidosa.

            É evidente que comparados com o ladrar de cães, isto são pequenos barulhos. Os canídeos são sem dúvida, um dos maiores agitadores de sono dos humanos. Neste momento vivo rodeado por vizinhos, donos de cães. Várias são as noites que ladram. Umas vezes, é o cão do vizinho da frente, outras vezes é o das traseiras, outras ainda é um dos que vivem ao lado. Normalmente, não me apoquento muito. Identifico o som, mentalmente verifico a proveniência e volto a fechar os olhos. Nalgumas noites começam todos a ladrar, numa cacofonia infernal e humanamente incompreensível.

            Gatos, apesar de mais silenciosos, já me acordaram várias vezes. Nas noites de grande namoro em Janeiro, ou Fevereiro, um casal lembrava-se de entrar no jogo de sedução junto à janela do meu quarto, numa casa de família. Os esforços para os calar eram vários mas, o diálogo continuava noite fora. A melhor solução, para se obter a desejada tranquilidade, era soltar os cães, tarefa que um dos vizinhos, com acesso à propriedade, incumbia-se de fazer.

            Além destes animais mais comuns dentro dos domésticos, é óbvio que várias manhãs, acordei com o cacarejar de galos. Embora esse despertador campestre, com toque prematuro relativo à alvorada industrial, permita voltar a adormecer, o que sabe sempre bem.

            No campo já despertei com relinchar de éguas, com chocalhos no pescoço das mesmas, ou de gado diversificado. Inclusivamente numa determinada noite ouvi uns passos de pequeno roedor, por cima do tecto do quarto onde estava a dormir.

            Acordo todos os dias e fico logo a ouvir o piar dos passaritos. Despertei várias vezes com eles, em manhãs fantásticas de Primavera, ou Verão. Durante algum tempo, foram o relógio da minha filha, que acordada pelo chilrear dos pássaros, verificando ser de dia, adorava partilhar a madrugada com os progenitores.

            Se na cidade e no campo, podemos ser incomodados pelo som madrugador destes, ou de outros animais, imagine o leitor o que poderá acontecer junto ao mar.

            Uma alvorada ouvindo gaivotas é do mais irritante que existe (sobretudo, quando estas vivem como pombos, comendo da mão humana). Em primeiro lugar, por não ser um som habitual, temos dificuldade em o identificar, o que nos leva a despertar intrigados. Depois de reconhecido o incomodativo barulho – uma espécie de gargalhada alarve -, verifica-se que nada as faz parar até ficarem com a sua fome saciada. Fui espreitá-las e estavam posicionadas em frente a uma janela de um dos prédios, no largo onde eu tentava dormir, à espera que a mão amiga acordasse e as alimentasse. O que só aconteceu após muita risada, destes animais com penas.     

            Este foi um amanhecer extremamente desagradável, só superado pelas incursões nocturnas de alguns bichinhos. Em casa depois da mudança, tivemos uma invasão de um morcego. Ficou pelo tecto falso. Como estava desorientado, batia com as asas no pladur. Foi difícil adormecer, com o intruso por cima das nossas cabeças. Só descobriu a saída dois dias depois, pelo que se dormiu em sobressalto.

            O voo dos pequenos mosquitos ou melgas é extremamente comum e desagradável. Mesmo com os eficientes ou eficazes sistemas eléctricos para os destruir, estes insectos parecem cada vez mais inteligentes. Nas noites que me despertam e provocam longas insónias, observo comportamentos curiosos: tentativas de camuflagem em portas de madeira; procura de esconderijos por baixo das camas, ou atrás de armários; ou simplesmente pousados no chão. Os que estão satisfeitos, pesados pela recolha de sangue humano e por isso, lentos, têm normalmente o destino traçado e esmagado.

            Se os insectos voadores nos invadem o sono, em geral pelo processo auditivo e claro, pelas suas picadas, confesso que uma das alvoradas mais curiosas que vivi até hoje, foi precisamente com formigas. No tal quarto da casa de família, acordei uma manhã com uma desagradável sensação de cócegas nas pernas. Por vezes, esse extremar da sensibilidade era acompanhado por pequenas pontadas. Quando espreitei, verifiquei estar no trilho de formigas. Fiquei na incerteza de qual seria o destino daquela correria e claro, a dúvida do que tinha provocado estes bichinhos a escolher a minha cama.

            Termino sem saber, que tipo de surpresas me reserva o futuro.

 

(a publicar dia 24/04/08)

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