Na edição comemorativa dos vinte anos do Labor, entre os demais destaques, recordou-se a sua origem hertziana. A explicação, para a procedência do jornal, deixou no ar um certo desapontamento pela orfandade, a que a Lei da Rádio vetou o jornal. Não está explícito nas palavras do director e fundador do jornal, Pedro Silva, mas a amputação, com a não atribuição da licença radiofónica, ao projecto global de comunicação social, ainda é sentida como uma desilusão.
Recuemos os vinte e poucos anos: em Portugal existiam dois canais estatais de televisão, uma série limitada de rádios estatais, ou sob a alçada da Igreja Católica. A rádio era a principal alternativa, para quem não queria passar horas a olhar para os programas da RTP, por exemplo, quem optava por estudar pela noite fora, preferindo um som de fundo.
O fenómeno das rádios piratas atraiu vários ouvintes. A novidade, a proximidade, os animadores e locutores conhecidos, as notícias, os resultados e o acompanhamento em directo do desporto local e sobretudo, os discos pedidos eram as principais atracções. Neste contexto, surgiram duas rádios em S. João da Madeira.
A rádio Serra – Mar emitia e operava em local privilegiado, no piso zero do edifício que alberga o Centro de Arte. Pelo menos, durante algum tempo. Em Outubro de 1986, fui convidado para divulgar algumas das músicas que eu gostava, ao abrigo de um programa existente. As sessões repetiram-se semanalmente, por mais uns três meses. Até que em meados de 1987, com apenas 16 anos, passei a ter uma hora de emissão semanal, ao Domingo às 22 horas, sob a minha responsabilidade. Estávamos na década de 80 e apenas optava por emitir som de grupos dessa época.
Para recordar mais do que isto, vi-me aflito.
Lembrava-me de ter feito rádio, de alguns episódios vividos e de algumas músicas que obrigatoriamente tinham tocado. Recordava a última emissão, no final de Julho, tendo como convidado um Inglês, oriundo de Newcastle, que liderou todo o programa. Foi o único registo áudio efectuado e claro, viajou com o súbito de Sua Majestade, quando terminou o período de intercâmbio, em que estava inserido.
Sem registos, sem memória dos acontecimentos, sabia que a noção de rádio pirata, pela irreverência do nome, estava adequada ao meu conceito de juventude. A oportunidade de divulgar os discos adquiridos por um vasto auditório, de dissertar sobre as bandas que gravavam os seus sete ou doze polegadas, como eram conhecidos os discos em vinil, era basicamente o que me interessava. A mim e a quase todos os que se tinham transformado em colaboradores de rádios em frequência modelada.
Revivi o tempo em que era metódico e extremamente organizado. Os álbuns, em casa dos meus pais, eram ordenados por ordem alfabética e fazia o registo para a posteridade das músicas seleccionadas para cada programa. Com algum esforço, descobri-os. O tempo tornou o papel amarelado, a tinta ainda continua viva. Nomes de bandas e de músicas que me acompanharam durante anos. Outros nomes de bandas que já tinha esquecido e por isso, passei uma noite agarrado ao Youtube, procurando essas preciosidades.
A título de exemplo, a 8 de Janeiro de 1987, num programa dedicado a divulgar alguns dos melhores trabalhos do ano anterior, tocaram pela seguinte ordem: New Order, The Smiths (o ano da edição do mítico The Queen is Dead), Cocteau Twins, as misteriosas Voix Bulgares, Woodentops (fantásticos, recordá-los foi uma emoção), R.E.M. (ainda longe do êxito actual, que se desenhou a partir de 91), Stan Ridgway, Carmel e os portugueses G.N.R., que tinham acabado de fazer um concerto em S. João da Madeira.
Curiosamente, nas últimas páginas dos apontamentos surgiram nomes da singularidade dessa época, indicadores duma certa tendência de divulgação de novos valores: The Wedding Present, Shop Assistants e Primal Scream.
A rádio entretanto perdeu o lado pirata, passou a local. Eu fui de férias por dois meses e quando voltei, não tinha espaço na grelha, ou então, prescindia do Sábado à noite, o que não era nada aliciante.
Músicas mais antigas (ouvidas na infância) ocupavam mais horas nas ondas hertzianas, com os eternos riscos no vinil; a última música do primeiro lado do vinil a ser tocada até ao fim e em directo, a agulha a entrar pela faixa sem gravação, a levantar e o braço a dirigir-se para o repouso. Músicas a entrar no final. Rotações trocadas. Uma vez, duas vezes, várias e passei a sintonizar outras frequências.
A Lei da Rádio deu a machadada final. Calou-se a Serra Mar, abriram-se novos canais. Nunca os segui atentamente. Fui a andares ou a caves como convidado, já em funções associativas e pouco mais.
Ouço rádio apenas no automóvel. Em casa, esqueço-me de sintonizar qualquer uma: nacional ou local. A vulgaridade das rádios locais tornou-as inaudíveis. Os meios técnicos são hoje superiores mas, tornou-se tudo demasiado repetitivo e boçal.
A interrogação que fica é se tudo seria diferente se a licença de rádio tivesse sido atribuída à Serra - Mar? Sinceramente, apesar da simpatia pelo projecto da então Cooperativa, o tempo encarregar-se-ia de tornar tudo semelhante. Certo é o que estes anos decorridos vieram provar, em matéria de comunicação social, o jornal Labor ser melhor produto do que qualquer uma das rádios existentes no concelho.
Fica para a posteridade o misticismo de um nome, banal é certo, mas que serviu para muitos poderem por umas semanas, ou meses, partilharem os seus gostos musicais, através do registo determinante para o início das rádios piratas, precisamente, o vinil.
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