quarta-feira, junho 11, 2008

Sina

 

            Em visita de estudo a Lisboa, enquanto esperávamos pelo autocarro, em frente ao Mosteiro de Jerónimos, uma cigana de idade avançada aproximou-se do nosso grupo de estudantes. Teríamos uns dezasseis, ou dezassete anos de idade.

            Pediu uma esmola e eu, engraçando com a figura, ripostei: só se me ler a sina. A mulher não tinha um olho e usava os trajes típicos destes nómadas: uma saia comprida, um lenço em volta da cabeça, com os brincos de argola, provavelmente teria um ou mais colares em volta do pescoço (sobre o resto do tronco não me recordo, nem tenho uma imagem pré-definida do que usa uma idosa cigana sobre o seu corpo).

            Aceitou o desafio. Mostrei-lhe as palmas nas mãos e instantaneamente começou logo a falar sobre os encantos do meu futuro. Entre felicidade e outros sinónimos, pareceu-lhe que via nas minhas mãos muitas mulheres e provando não ser analfabeta, leu um “F” bem desenhado na mão direita. Eu ouvi-a a falar com uma rapidez tremenda. Deu-me um nome feminino, que pela sua análise, seria determinante para o resto da minha vida: Fernanda, era o tal nome começado pela letra “F”.

            Isto foi tudo tão rápido, que nem dei conta que os meus colegas tinham-se encolhido, pelo receio pré-concebido relativamente à etnia. Pelo futuro, paguei o prometido – cem escudos (os actuais cinquenta cêntimos de Euro). Duas risadas e nas despedidas com a cigana, não foi preciso desejar boa sorte, pois a minha, traçada nas minhas mãos, tinha acabada de ser revelada.

            Naquela época eu tinha dificuldade em acreditar no futuro, por isso, durante anos, contei esta historieta com algum humor.

            É claro que não dei importância ao assunto.

            Das minhas relações pessoais e familiares, o nome Fernanda tinha caído em desuso. Os nomes têm épocas. Existem alguns eternos. Outros ficam em moda durante um período e depois tornam-se raros. Alguns são raros hoje e entretanto, com o tempo tornam-se comuns. Dessa data até hoje, com idade próxima da minha, conheci duas ou três Fernandas. Nenhuma mudou a minha vida. 

            A cigana viu um “F”. Podia ter-se enganado no nome. Por esta letra, temos outros nomes: Fábia, Fabiana, Fabíola, Fátima, Faustina, Fedra, Felicia, Felicidade, Felismina, Ferdinanda, Filipa, Filomena, Firmina, Flávia, Flôr, Flora, Florbela, Florência, Florinda, Francelina, Francisca e Frederica. Dada a raridade de alguns destes nomes, jamais me cruzei com pessoas assim chamadas. Dos mais comuns, apesar de com algumas ter criado relações de amizade, nenhuma preencheu o prognóstico da cigana.

            A vidente não acertou no nome, nem na quantidade anunciada. Até que muitos anos depois…

Saio de casa com as despedidas matinais a deixar-me um nó no peito. Até logo. Diariamente, só volto a encontrar a família, esposa e filhos, à noite, antes de jantar, ou à hora deste.

            No carro, mesmo em estado de cama – com os olhos mais fechados do que abertos –, a rotina da viagem matinal faz-se em piloto automático. Percorro o asfalto, pensando nos problemas pendentes, que tenho à minha espera.

            Coloco o pisca-pisca para virar à esquerda, faço o último corte de acesso à fábrica e enfrento o porteiro. Troco os bons dias. À segunda-feira demoro um pouco mais, para colocar em dia a conversa futebolística. Fico a saber resultados, erros de arbitragem, classificações de vários campeonatos.

            Fecho o carro. Dirijo-me à porta de entrada. Após a sua abertura, não há engano, o som do trabalhar das máquinas indica o tipo de ambiente que vou encarar. Subo as escadas. Nos três mil e seiscentos metros quadrados da instalação fabril, cento e trinta funcionárias, de bata azul clara, estão compenetradas no desempenho da sua função.

            Esta tem sido a minha vida. Dia após dia, em ambiente fabril. Como tenho feito carreira profissional em transformação têxtil, sob a minha responsabilidade existem sempre mais mulheres do que homens. Ao longo destes anos, em empresas diferentes, conheci várias centenas de funcionárias; não deve andar longe do milhar.

            Reconheço que a cigana afinal não se enganou. Só que eu, em adolescente, ao ouvir falar em muitas mulheres na minha vida, pensei tratar-se de outra linha…

 

                                                                                                                                            (a publicar dia 12/06/08)

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