António havia recebido o convite para um jantar de amigos de outrora, através dos seus pais. Os organizadores não tinham outra forma de o contactarem, senão o número de telefone da casa dos seus progenitores. De início, António considerou normal o procedimento, só depois reflectiu sobre a quantidade de anos que tinham passado, sem que alguma vez tivesse encontrado algum dos seus antigos colegas e amigos. A melhor evidência era não ter recebido nenhum mail, nem sms, nem chamada no telemóvel. Tudo isso tinha aparecido anos depois da comum convivência.
Como tinha que se deslocar alguns quilómetros, António por prudência e respeito pelos amigos, optou por sair do emprego atempadamente. Entrou no restaurante marcado, descoberto com facilidade, dirigiu-se ao primeiro empregado que avistou e pela resposta obtida, apercebeu-se que tinha sido demasiado cauteloso com o horário. Ainda assim, preferiu sentar-se na mesa indicada. Ao tirar o casaco, pediu um aperitivo que foi saboreando.
Ficou à espera, pensando na quantidade de anos que tinham passado. Distraiu-se a contar os lugares marcados e a fazer uma previsão de quem seriam os restantes convivas.
Ao fim de alguns minutos chegou um grupo de antigos colegas. Sem esforço recordou as caras e associou a cada um o nome, apesar do tempo passado. Cumprimentaram-se efusivamente e trocaram a conversa de circunstância: a morada, a profissão, o estado civil, os filhos, a descrição da monotonia dos dias de semana e os programas de fim-de-semana, que afastam as pessoas para longe do seu passado.
O grupo foi crescendo, com a chegada dos outros convidados. Trocaram iguais informações entre aqueles que já não se viam há bastante tempo. Aos poucos introduziram-se outros temas nas várias conversas: a saúde pessoal e de familiares, histórias do presente, projectos para o futuro, as viagens, as férias de sonho, o sucesso dos filhos, os hobbies, o futebol, entre outras.
Quando a propósito uma ou outra recordação dos tempos de juventude. Um ou vários momentos vividos, que por terem sido tão peculiares, merecem a sua evocação.
Nestas ocasiões relembra-se os amigos comuns, sem sentido estarem presentes no repasto, embora sejam elos de ligação entre pessoas conhecidas e sobre os quais devemos informar do seu estado. António, já com todos os convivas sentados à mesa, lembrou-se disso, enquanto falava com a sua ex-colega Márcia e contou-lhe que Frederico ia ser pai de gémeos. Quem? Márcia não se recordava de nenhum Frederico. António tentou encontrar várias formas de lhe recordar o nome, a pessoa, os momentos vividos pelos três. Márcia não se lembrava de nada. Não vale a pena insistir, disse-lhe Márcia. Não era um assunto de maior importância e António já não estava com Márcia seguramente há dez anos. O Frederico tinha desaparecido da vida de ambos um tempo antes e pelas voltas da vida, António voltou a relacionar-se com ele.
Enquanto o jantar era servido, a conversa prosseguiu e António fez várias alusões ao seu passado em comum com Márcia. Um concerto, ela não fazia ideia. Um jantar numa recôndita vila do país, nada. Um outro programa e igualmente nada. Não desesperou e não duvidou da sua sanidade, nem criticou a memória da sua amiga.
Apesar de tudo, desde o início do jantar sentiu sempre que o reencontro entre ambos estava coerente com a relação que tinham mantido no passado. Interesse mútuo e compreensão pelas conversas e preocupações do outro, davam para perceber que a afinidade entre ambos não tinha sido esquecida. Mesmo dez anos depois.
Não sendo o problema dela, o mal estava nele. Na sua memória que fixava coisas insignificantes. Recordava-se de pessoas sem interesse algum, de assistir a concertos que não tinham feito história, de procurar aldeias e vilas para obter uma refeição, sem qualquer condimento especial, em restaurantes entregues à indiferença e por aí adiante.
Percebeu como se tinha enganado no passado. Como tinha sido desinteressante a sua vida. Memórias pessoais sem qualquer significado para o presente, nem para manter uma conversa em jantares de pessoas com vivência em comum.
Tentou com Gustavo, sentado à sua frente, encontrar traços do passado. O resultado foi igual ao obtido com Márcia.
Enquanto Márcia, sentada à sua direita conversava alegremente com a amiga do outro lado, António virou-se para a esquerda e escutou uma história, que bem recordava. Acrescentou uns pormenores à narrativa de Miguel, que exercitava a memória do período juvenil, sentindo que o seu acréscimo não era reconhecido por ninguém. Podia ter ouvido um sensato “já não me lembrava”, ou um entusiástico “pois foi!”. Nada disso. Apenas um indiferente “não me lembro”, seguido de desconcertantes “nem eu”.
Sentiu que estava ali a mais.
Simulou a recepção de um telefonema, alegou a necessidade de uma saída urgente. Providenciou o pagamento do seu jantar, vestiu o casaco, despediu-se e saiu, sem esperar que lhe fosse servido o café.
(a publicar dia 25/09/08)