Na terra natal ficara conhecido como Jeremias, devido a uma música de Jorge Palma, que ele adorava. Por estar sempre a ouvi-la, a cantá-la, a declarar os seus versos, colou-se a alcunha. Muitos companheiros desse tempo nunca chegaram a saber qual o seu verdadeiro nome. Era apresentado como o Jeremias e o nome de guerra ficou. Ele próprio adoptou o nome, por considerar que aquela letra do músico português, representava o que ele pensava do mundo e da forma como queria estar:
"Jeremias gosta do guarda-roupa negro e dos mitos do fora-da-lei
Gosta do calor da aguardente e de seguir remando contra a maré (…)"
Depois de uma infância e inicio de adolescência pouco problemáticos, a vida de Jeremias alterou-se pela morte prematura da mãe. Ficou a viver sozinho com o seu progenitor. As irmãs, mais novas, foram viver com uma tia, irmã da mãe, para outra cidade. Este isolamento familiar transtornou Jeremias. O seu rendimento escolar fraquejou, levando-o a repetir um ano.
Sem a sua rede de colegas, Jeremias procurou outro sentido para a sua vida. Passou a vestir-se de preto, a procurar nos armários de casa gabardinas ou sobretudos antigos do pai. Comprou botas da tropa. Nem os motores, nem as motas lhe interessavam. Desinteressou-se pelo desporto, ou por qualquer forma de socialização. Na escola permaneceu com notas baixas e outro "chumbo" se aproximava.
Jeremias passou a ter poucos interesses. A música, com os seus cantores malditos e as suas vidas ditas fantásticas, cheias de histórias de droga e álcool, passaram a seduzi-lo. Passou a ouvir discos, a gravar cassetes de discos emprestados por novas amizades, a memorizar letras e refrões; a ler biografias de músicos famosos e a literatura referenciada pelos tais músicos. Mesmo ainda novo passou a sair aos fins-de-semana à noite, procurando abrigo nos salões de jogos, fintando a interdição de entrada a menores. Encontrava-se com rapazes com gostos musicais idênticos, trocavam impressões, referências, etc. Foi assim que ficou conhecido como o Jeremias.
O pai, entretanto, entrou em grande depressão. A medicação receitada, obrigava-o a deitar-se cedo. Jeremias saía de casa todas as noites. Passou a frequentar pequenas tascas e cafés de clientela duvidosa. Sem dificuldade, serviam-lhe bebidas com elevado grau alcoólico e apercebeu-se da facilidade em adquirir e consumir drogas.
Sem mais pessoas da sua família naquela cidade, as opções de Jeremias escandalizaram vizinhos e amigos do pai. Ao alertarem o seu pai, este definhou. Sem forças para mais, deixou-se abater completamente, perdendo completamente o interesse em lutar pela vida. Jeremias viu-se, ainda com 17 anos, sozinho no mundo. Sem saber qual o rumo da sua vida, valeu-lhe um irmão do pai. Este, extremamente pragmático, retirou-o da casa e da cidade onde vivia. De nada serviu protestar, alegar mil e uma soluções para o seu futuro. O tio foi intransigente.
Jeremias, aproveitando uma folga no seu serviço, decidiu passar um dia na cidade da sua adolescência. Tinham decorrido vários anos, quase um quarto de século. Não tinha perdido os laços com as suas irmãs, visitava-as várias vezes, mas num acesso de saudades programou uma visita ao local do seu passado.
Ao procurar estacionamento na rua, foi auxiliado por um arrumador. Após estacionar, tirou uns trocos do bolso e dirigiu-se para o arrumador. Viu o seu estado lastimoso, dentes estragados, braço direito atrofiado num corpo demasiado magro. Droga que os pariu, era a frase utilizada por seu tio, quando foi viver com ele. Antes da incorporação no exército, passavam horas visitando locais terríveis, repletos de toxicodependentes, vivendo na rua, ou em casas abandonadas. A realidade é isto, dizia-lhe o tio, não tenhas ilusões de viveres uma vida mágica, extraordinária. O teu futuro se continuares com as tuas fantasias será isto, remata o tio.
No gesto de agradecer as moedas recebidas, Jeremias pensou reconhecer o arrumador. Lamentou o seu estado físico em voz alta. Este queixou-se da sua vida. Jeremias não tinha dúvidas, sabia quem era o arrumador. Obviamente não iria confrontar o atordoado interlocutor com um passado tão longínquo. Não era a primeira vez que lhe entregava dinheiro. Se calhar quantias semelhantes, para outros fins.
Seguiu o seu caminho. Circulou pelas ruas à procura de outros sinais do tempo ali vivido. Foi à rua onde vivera com os pais. A sua casa já não existia. Em seu lugar erguera-se um prédio com vários andares. Olhou em redor e identificou alguns dos prédios antigos. Eram visíveis várias placas propondo soluções para espaços devolutos. Procurou moradas dos amigos de infância. Não teve sorte. Portões fechados, campainhas tocadas sem resposta, portas abertas por estranhos e nada. Não encontrou ninguém. Ficava com a ideia de que por detrás daquelas entradas, ia encontrar objectos resistentes ao tempo, guardados por pessoas que pouco a pouco o iriam reconhecer e ficariam agradadas com a sua aparição. Lembrava-se dos momentos felizes ali vividos e não estava ali pelo passado para redimir, o que queria era recordar esses momentos. Falar e saber como estavam todos. Explicar como era a sua vida, o que tinha feito…
Tentou nas lojas comerciais encontrar alguém do seu tempo. Entrava, olhava para o balcão de atendimento e desiludia-se. Ainda assim, por educação explicava o seu propósito. Indicaram-lhe uma loja, cujo dono estava estabelecido há muitos anos. Porém, na loja referida não encontrou o sujeito, acamado há alguns dias com uma gripe. Por esse motivo não o incomodou.
Vagueava pelas ruas, verificando os melhoramentos introduzidos. Os prédios, as lojas comerciais, o alinhamento dos passeios, o asfalto nas ruas, os candeeiros, as floreiras, alguns bancos de jardim. Não tinha onde entrar, não tinha ninguém a esperá-lo. Ninguém para recebê-lo. Jeremias verifica que, mais do que apartamentos ou moradias vazias, mais do que compartimentos sem mobília, o que realmente sobrou do seu passado são memórias devolutas.
Agitou-se ao encarar uma moradia em ruínas. Abandonada ao tempo, a casa estava rodeada de vegetação. Aquela fora a casa que o acolhera noites e noites, depois da hora do fecho dos cafés que frequentava - quando o dono ficava cansado de estar aberto, sem servir nada durante horas. Propriedade de familiares de um amigo, a casa avistada passou a ser local de peregrinação de vários noctívagos. Primeiro com electricidade e vários móveis. Depois apenas iluminada pelo luar e vazia. Procurou a entrada, forçou a fechadura, a custo abriu a porta. O telhado em parte ruíra. Passou por cima de telhas, transpôs salas e chegou a um compartimento mal iluminado. Acendeu o isqueiro e na sua frente apareciam uma série de inscrições. Sem esforço, encontrou uma escrita por ele: Jeremias escolheu o seu lugar do lado de fora.
De volta ao carro, vendo que o arrumador ainda estava naquela zona, deu-lhe mais uma moeda e não se conteve, perguntando-lhe se ele se lembrava do Jeremias. Como a resposta tardou, Jeremias entrou no carro e preparou-se para arrancar.
O seu passado seria arrasado naquela cidade.
(a publicar dia 22/01/09)