quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Lapsus calami

Lapsus calami

 

            A expressão latina, que intitula este texto, pode ser traduzida como erro de escrita, pois na antiguidade o instrumento de caligrafia, feito com um caule de junco afiado, designava-se por “calami”. Estes erros involuntários de grafia, não significavam falta de formação ortográfica do autor, pois subentendia-se, serem apenas e só pequenas distracções.

            Outrora como erro ortográfico, a expressão perdurou até aos dias de hoje, servindo para classificar erros inconscientes na narrativa. Falhas temporais, redundâncias, incompatibilidades, enfim gralhas, provocando um tom cómico na leitura, como se pode ler nos exemplos seguintes:

— "O cadáver olhava com repreensão para os que o rodeavam."

— "Que pode fazer um homem morto por uma bala mortífera?"

— "Por infelicidade, a boda atrasou quinze dias, durante os quais a noiva fugiu com o capitão e deu à luz oito filhos."

— "Excursões de três ou quatro dias eram coisa diária para eles."

            Eu próprio já me penitenciei por, em tempos, ter feito uma troca de verbos de fonética semelhante mas, de significado diferente. Ainda no passado mês de Janeiro, no conto publicado em duas edições do jornal labor - Visita, no momento em que Beto Rouquinho faleceu, baptizei-o de Pedro. Erro menor, que poderia ser justificado pela afeição com o personagem criado e pela ingratidão de o obrigar a falecer a duzentos quilómetros de casa, embora reconhecendo que o motivo possa ter valido a viagem.

            Os lapsus calami atrás apresentados são de autores incógnitos. Estão reunidos nas páginas de um livro do escritor Bolaño, que citando antologias de caçador de gralhas, indica-nos uma outra série, retirada de escritos de diversos autores consagrados. Transcrevo alguns dos exemplos divertidos, ora deliciem-se:

— "Pobre Maria! Cada vez que percebe o ruído de um cavalo que se aproxima, tem certeza de que sou eu." O duque de Monbazon, Chateaubriand.

— "A tripulação do navio engolido pelas ondas era formada por vinte e cinco homens, que deixaram centenas de viúvas condenadas à miséria." Dramas marítimos, Gaston Leroux.

— "Vamos embora!, disse Peter procurando seu chapéu para enxugar as lágrimas." Lourdes, Zola.

— "O duque apareceu seguido de seu séquito, que ia na frente." Cartas do meu moinho, Alphonse Daudet.

— "Com as mãos cruzadas nas costas, Henrique passeava pelo jardim, lendo o romance de seu amigo." O dia fatal, Rosny.

— "Com um olho lia, com o outro escrevia." Nas margens do Reno, Auback.

— "O cadáver esperava, silencioso, pela autópsia." O favorito da sorte, Octave Feuillet.

— "Guilherme não imaginava que o coração pudesse servir para algo mais que a respiração." A morte, Argibachev.

— "Esta espada de honra é o mais belo dia da minha vida." A honra, Octave Feuillet.

— "Começo a ver mal, disse a pobre cega." Beatriz, Balzac.

— "Depois de cortarem a sua cabeça, enterraram-no vivo." A morte de Mongomer, Henri Zvedan.

— "Tinha a mão fria como a de uma serpente." Ponson du Terrail (sem indicar o nome da obra).

            Existem as compilações em livro de lapsos de linguagem, sobretudo, de agentes desportivos, embora as gafes dos políticos mereçam idêntico destaque. Por vezes, fica esquecido o momento inesperado e a pretensa intenção de denegrir as capacidades intelectuais dos mesmos, sobrepõe-se ao aspecto cómico. O mesmo acontece, com as colectâneas de respostas disparatadas em exames ou provas do ensino superior dadas por estudantes a professores.

            Exemplos de gafes no cinema, em filmes como Jurassic Park (uma tatuagem na perna do dinossauro), ou em 007 (aparecendo em imagem reflectida o operador de video que filmava a acção), em Gladiador surge no ecrã uma botija de gás… mostram que o erro irreflectido não é apenas individual. Alguns erros detectados e prontamente emendados são compilados, apresentados posteriormente como bloopers, surgindo como conteúdos extra em edições de DVD. Poderia apresentar mais exemplos, até dos programas dos canais de televisão, mais conhecidos pelo seu acesso facilitado, no entanto, penso que está demonstrada a proliferação inadvertida de lapsos.

            O importante é ter capacidade para o reconhecer, se possível, juntando uma boa dose de humor.

 

(a publicar dia 25/02/10)

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Retratos

            No facebook quando sou convidado a visitar o perfil de um conhecido, deparo-me com uma série de fotografias de amigos comuns. A curiosidade impulsiona-me a seguir uma dessas ligações, encontrando outras caras conhecidas, ou as mesmas que estavam no perfil anterior. Sigo, escolhendo um outro amigo, até que chego a um ponto em que não observo ninguém conhecido e volto atrás. Repito o procedimento, optando por outro caminho, revejo caras esquecidas, encontro amigos perdidos e claro, surpreendido vou descobrindo fotografias de próximos e até de familiares.

            A minha participação nesta rede social limita-se a isto. Nem concebo mais. Por falta de tempo e de interesse, é a melhor explicação, embora reconhecendo existirem outros motivos.

            A lógica da ligação, das fotografias de amigos associadas a uma pessoa, é sedutora e permite reforçar uma ideia concebida em tempos, de recuperação do espólio dos fotógrafos com casa comercial instalada nas ruas da cidade.

            Milhares de fotografias tipo passe, entre outras, estão depositadas nesses estabelecimentos.

            As etapas da vida retratadas numa sucessão de anos.

            Um património pessoal, com possibilidade de ser resgatado, mediante a apresentação do número de série, ou com paciência para a procura entre milhares de registos. Séries da mesma pessoa, nalguns casos desde a infância até à idade adulta, permitem ver o seu crescimento. O uso temporário de óculos, o corte e a dimensão do cabelo - para ambos os géneros, o eventual bigode ou a barba – para os homens, são pormenores por vezes esquecidos que uma recolha deste género permite recordar.

            Uma colecção de fotografias, que agrupadas por épocas, permitem disponibilizar dados para um estudo social da cidade, ou mesmo etnográfico ou de carácter antropológico. 

            A herança colectiva legada por todos os que aqui viveram e por instantes (ou por obrigação), se deixaram retratar.           

            Pela definição, em Assembleia Geral do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios realizada em Copenhaga, no ano de 1972, “um museu é uma instituição de carácter permanente, administrado para interesse geral, com a finalidade de recolher, conservar, pesquisar e valorizar de diversas maneiras um conjunto de elementos de valor cultural e ambiental”.

            Ao cruzarmos esta definição com as ideias transcritas em parágrafos anteriores, não temos dificuldade em perceber que existe matéria patrimonial que deve ser recolhida, conservada, pesquisada e valorizada. Os retratos pessoais de mais de meio século são provavelmente um dos melhores valores culturais da cidade.

              Um conceito inovador no capítulo da conservação patrimonial, que alojada condignamente num espaço da cidade, permitiria o acesso colectivo a tão grande compilação, deixando orgulhosos os retratados.

            Aquela série de detalhes como a legalidade, a aquisição, a identificação dos fotografados, a forma de expor, o local certo para alojar a exposição, entre outros, deixo-os para os entendidos.

            Fica a ideia.

            Para memória futura.  

 

(a publicar dia 18/02/10) 

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Jet lag

            Imaginem o seguinte cenário: um corte de electricidade nocturno de rápida resolução - um sujeito a dormir, sem se aperceber da falha.

            O despertador digital, equipado com pilha apropriada para manter o seu funcionamento em caso de falha de energia eléctrica, toca à hora programada. Prontamente desligado, o despertador merece desconfiança, pois estranha-se a escuridão no exterior mas, voltando a olhar para o mostrador acredita-se que, por ser Inverno, o céu está mais nublado do que o costume e por isso o amanhecer parece mais tardio.

            Antes de sair de casa, ao tomar o pequeno-almoço, uma nova surpresa, o relógio agregado ao fogão indica uma hora completamente diferente, meia - hora mais cedo do que a observada no quarto. Desconfia-se. O telemóvel, que podia servir para tirar as dúvidas, está desligado, sem qualquer carga. Olha-se para o exterior, para nascente e em lugar de nuvens vemos o céu limpo, embora sem raios de sol, apenas o clarear do dia.

            Nada melhor do que ligar a televisão, pois enquanto é emitido o noticiário matinal está sempre visível o relógio. Azar. Publicidade no ar. Espera-se um pouco, por preguiça para fazer zapping. Opta-se por executar outra tarefa rápida, como colocar o telemóvel à carga e quando se olha de novo para a televisão, surge a informação do trânsito. No ecrã dois relógios, um do canal e outro associado às imagens recolhidas das cidades. Entre eles, uma diferença de três minutos. Acredita-se que estará certo o do estúdio.

            A diferença para a hora de casa é mais quinze minutos para o fogão e menos quinze para o quarto. Aqui o cérebro começa a funcionar. Deduz-se que houve uma falha de electricidade durante a noite e o funcionamento com alimentação da bateria provoca este tipo de adiantamentos. Baralhado, involuntariamente com menos quinze minutos de sono numa noite, entra-se no automóvel e o relógio indica por sua vez, uma outra hora, ajustada à entidade patronal. Durante a viagem, na emissora seleccionada ouve-se o sinal do noticiário, mais cedo dois minutos do que a hora certa. O cérebro não se ajusta a estas antecipações, formatado durante anos para os noticiários a serem apresentados hora a hora, sem mais ou menos minutos.

            Já no trabalho, duas novas observações horárias. No monitor do computador, o relógio visível do lado inferior direito, não se sabe bem porquê, está sempre atrasado. Por seu lado o telefone portátil, com o seu relógio incorporado, tem tendência a perder a data e hora marcada, pelo que a confusão torna-se ainda maior.

            No acerto do ritmo biológico procurar a hora certa é importante. Faz-se um esforço para ajustar os relógios disponíveis, acertando-os todos e procurando que o telemóvel pessoal fique exacto também.

            Chegado ao fim do dia é o inverso. Chega-se a casa e ao deparar-se com o relógio da cozinha, a sensação que se tem, é que se chegou mais cedo do que é costume. Ao fim da noite, ao entrar no quarto e vendo o despertador quinze minutos adiantado, podem acontecer duas situações, se a noite foi mais do que alongada, o natural é adormecer e esquecer a hora certa. Caso o trauma dos quinze minutos perdidos nessa manhã não tenha sido esquecido, o melhor é mesmo ajustar o fuso horário.

 

(a publicar dia 11/02/10)

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Choque fiscal

            Não existe em Portugal um partido político que olhe para os impostos do mesmo modo que a maioria dos cidadãos, ou seja: devem existir, para fazer face ao que é considerado como absolutamente necessário à comunidade, a começar pelas despesas que visem assegurar o exercício das funções de soberania e a terminar em determinadas despesas de âmbito social; por outro lado, o valor cobrado deveria tender para sucessivas e controladas descidas, para evitar o endividamento público.

            Em 2002, este conceito, de choque fiscal, não passou de promessa eleitoral e rapidamente foi esquecida. Na confusão ideológica do espectro político Português, esta noção liberal poderia ajudar a distinguir os partidos políticos. Porém, as práticas de governação demonstram o contrário.

            A nível da gestão das diversas autarquias, seria de esperar uma rotina diferente, sobretudo de quem defende a ideia de “menos Estado, melhor Estado”.

            Veja-se o exemplo de dois municípios, S. João da Madeira e Ovar, próximas em termos geográficos e cada qual com um partido político “antagónico” à frente da respectiva autarquia. O IMI – Imposto Municipal sobre Imóveis – para prédios urbanos, em S. João da Madeira passou do valor máximo 0,7% para 0,6%, nos últimos dois anos. Em Ovar a taxa aplicada no mesmo período foi sempre o menor valor permitido, 0,4%.

            É de salutar a contracção verificada neste capítulo pela autarquia local, notando-se que esta quebra na receita não tem expressão no desempenho financeiro da autarquia, ou pelo menos, nenhum dos críticos lhe atribuiu qualquer importância. 

            A factura da água é também elucidativa. O valor fixo em S. João da Madeira é de 6,54 euros, correspondente ao somatório da tarifa de disponibilidade 4,69 euros e da taxa de resíduos sólidos 1,85 euros. Do município de Ovar, que começou a cobrar tarifa de disponibilidade a 1,8 euros a partir de 2009, o valor fixo na factura da água fica em 4,8 euros.

            Com estes dois exemplos pouco ou nada se pode concluir, dirão alguns. O exercício deveria ser alargado a todos os impostos cobrados directa ou indirectamente pelas duas autarquias. A comparação da totalidade dos itens pode conduzir a interpretações diferentes, no entanto, ao escolher estes dois exemplos demonstro que nestas duas rubricas, o município de S. João da Madeira está distante do chavão referido em parágrafo anterior. Pelo menos na parte quantitativa.

            Soluções para receitas alternativas, despenalizando o munícipe é o que se espera.

            A valorização dos resíduos sólidos, efectuada a partir da separação selectiva executada pela população, constitui uma hipótese de receitas que não deve ser descurada. Ora, traçando-se metas, objectivos para a tonelagem a recolher e posteriormente valorizar num determinado ano, o efectivo cumprimento desses fins, poderia no ano seguinte reverter em diminuição da taxa de resíduos sólidos, por exemplo. Ou em qualquer outro imposto ou taxa municipal.

            As boas práticas, conforme verificado no final do ano passado, com a recolha dos papéis de embrulho e caixas de cartão dos presentes de Natal, devem ser recompensadas. 

 

(a publicar no dia 04/02/10)