Lapsus calami
A expressão latina, que intitula este texto, pode ser traduzida como erro de escrita, pois na antiguidade o instrumento de caligrafia, feito com um caule de junco afiado, designava-se por “calami”. Estes erros involuntários de grafia, não significavam falta de formação ortográfica do autor, pois subentendia-se, serem apenas e só pequenas distracções.
Outrora como erro ortográfico, a expressão perdurou até aos dias de hoje, servindo para classificar erros inconscientes na narrativa. Falhas temporais, redundâncias, incompatibilidades, enfim gralhas, provocando um tom cómico na leitura, como se pode ler nos exemplos seguintes:
— "O cadáver olhava com repreensão para os que o rodeavam."
— "Que pode fazer um homem morto por uma bala mortífera?"
— "Por infelicidade, a boda atrasou quinze dias, durante os quais a noiva fugiu com o capitão e deu à luz oito filhos."
— "Excursões de três ou quatro dias eram coisa diária para eles."
Eu próprio já me penitenciei por, em tempos, ter feito uma troca de verbos de fonética semelhante mas, de significado diferente. Ainda no passado mês de Janeiro, no conto publicado em duas edições do jornal labor - Visita, no momento em que Beto Rouquinho faleceu, baptizei-o de Pedro. Erro menor, que poderia ser justificado pela afeição com o personagem criado e pela ingratidão de o obrigar a falecer a duzentos quilómetros de casa, embora reconhecendo que o motivo possa ter valido a viagem.
Os lapsus calami atrás apresentados são de autores incógnitos. Estão reunidos nas páginas de um livro do escritor Bolaño, que citando antologias de caçador de gralhas, indica-nos uma outra série, retirada de escritos de diversos autores consagrados. Transcrevo alguns dos exemplos divertidos, ora deliciem-se:
— "Pobre Maria! Cada vez que percebe o ruído de um cavalo que se aproxima, tem certeza de que sou eu." O duque de Monbazon, Chateaubriand.
— "A tripulação do navio engolido pelas ondas era formada por vinte e cinco homens, que deixaram centenas de viúvas condenadas à miséria." Dramas marítimos, Gaston Leroux.
— "Vamos embora!, disse Peter procurando seu chapéu para enxugar as lágrimas." Lourdes, Zola.
— "O duque apareceu seguido de seu séquito, que ia na frente." Cartas do meu moinho, Alphonse Daudet.
— "Com as mãos cruzadas nas costas, Henrique passeava pelo jardim, lendo o romance de seu amigo." O dia fatal, Rosny.
— "Com um olho lia, com o outro escrevia." Nas margens do Reno, Auback.
— "O cadáver esperava, silencioso, pela autópsia." O favorito da sorte, Octave Feuillet.
— "Guilherme não imaginava que o coração pudesse servir para algo mais que a respiração." A morte, Argibachev.
— "Esta espada de honra é o mais belo dia da minha vida." A honra, Octave Feuillet.
— "Começo a ver mal, disse a pobre cega." Beatriz, Balzac.
— "Depois de cortarem a sua cabeça, enterraram-no vivo." A morte de Mongomer, Henri Zvedan.
— "Tinha a mão fria como a de uma serpente." Ponson du Terrail (sem indicar o nome da obra).
Existem as compilações em livro de lapsos de linguagem, sobretudo, de agentes desportivos, embora as gafes dos políticos mereçam idêntico destaque. Por vezes, fica esquecido o momento inesperado e a pretensa intenção de denegrir as capacidades intelectuais dos mesmos, sobrepõe-se ao aspecto cómico. O mesmo acontece, com as colectâneas de respostas disparatadas em exames ou provas do ensino superior dadas por estudantes a professores.
Exemplos de gafes no cinema, em filmes como Jurassic Park (uma tatuagem na perna do dinossauro), ou em 007 (aparecendo em imagem reflectida o operador de video que filmava a acção), em Gladiador surge no ecrã uma botija de gás… mostram que o erro irreflectido não é apenas individual. Alguns erros detectados e prontamente emendados são compilados, apresentados posteriormente como bloopers, surgindo como conteúdos extra em edições de DVD. Poderia apresentar mais exemplos, até dos programas dos canais de televisão, mais conhecidos pelo seu acesso facilitado, no entanto, penso que está demonstrada a proliferação inadvertida de lapsos.
O importante é ter capacidade para o reconhecer, se possível, juntando uma boa dose de humor.
(a publicar dia 25/02/10)