Raul não conseguia dormir. Estava deitado junto a Eva, na sua cama de casal e não havia forma de adormecer. Já se tinha virado para os dois lados da cama, de barriga para cima, para baixo e nada. Acendeu o candeeiro, pegou na “Origem das Espécies”, leu umas páginas.
A luz não incomodava a sua esposa, tão sossegada a dormir. Raul contemplou Eva. Tranquila de olhos fechados, uma beleza angelical.
- A Antónia não simpatiza comigo. Deve ter ciúmes pelas minhas conversas com o marido dela à porta da repartição, enquanto fumamos.
Raul fechou o livro, não se concentrava. Pombos, bicos, papos e caudas em leque.
- És parvo, Raul. A Eva é incapaz de te trair, pá.
Alberto não queria acreditar na desconfiança de Raul. Amigo do casal, desde longa data, confiava plenamente nas virtudes da amiga.
- Há frases que te elucidam Alberto. Passei a noite sem dormir. Nem o Darwin me cansou. Ao referir-se à pouca empatia da Antónia, eu como a considero mal encarada, não relacionei com nada. Passado uns dias, pensei melhor no significado das palavras da Eva. Imaginei o Marco, é o marido da Antónia…
- Sei…
- … a falar em casa das conversas com a Eva. A Antónia a ouvir o nome dela várias vezes. A escutar o partilhar de cigarros, de histórias, das preocupações maternais, das preocupações laborais de outra mulher. Outra mulher, a invadir-lhe a casa, sem pela porta entrar. A dominar a atenção do marido. O marido a sorrir ao referir-se ao nome da Eva. Essa provocação fez Antónia alterar o seu comportamento. O Marco a falar-lhe de uma mulher, enaltecendo as suas qualidades, despertou a desconfiança da Antónia.
- Raul, meu amigo, estás a seguir a intuição feminina.
- Provavelmente. Jamais falei com a Antónia sobre o assunto, só que comecei a recordar-me das vezes que Eva falou do Marco lá em casa. Das ajudas mútuas que foram solicitadas. De recordação em recordação, percebi que o encantamento entre os dois foi crescendo.
- Ena que imaginação!
- Lembrei-me como nos apaixonávamos em jovens. A afeição que sentíamos por determinada rapariga. De como nos sentíamos felizes a conversar, a trocar ideias, livros, discos com amigas e de como, entretanto, o sentimento mudava, crescia e abandonávamos uma namorada e partíamos para outra.
- Ninguém te deixou, Raul.
- Eu sei Alberto. A angústia dominou-me. Não dormi nada. Estou com uma directa em cima.
Alberto procurava as melhores palavras para consolar o amigo.
- A Antónia não simpatiza comigo.
Sem ser interrompido, Alberto explicou ao amigo as virtudes da literatura, dos dramas e das figurações específicas das narrações. Recordou-lhe que se repetem, em várias obras literárias uma série de discussões, umas das quais é o ciúme.
- Como deves compreender a tua desconfiança, insegurança diria, fez-me lembrar um conto sobre o ciúme. Basicamente o marido queria colocar à prova o amor da esposa, desaparecendo e fazendo frequentar a sua casa, um belo jovem, para verificar como incondicional era o amor da sua amada.
- Um clássico.
- Exactamente. O desfecho é sempre o mesmo, doloroso para quem desconfia. Por isso, acredita que a maturidade da Eva é maior do que quando era adolescente. Do Marco não posso falar. Se a Eva te conta das desconfianças da Antónia é porque isso a entristece, Raul. Nada mais. Não alimenta nenhuma ilusão, nem pretende abandonar-te. A relação dela contigo é a mais honesta possível. Ela é transparente. Conta-te tudo.
A conversa terminou com Alberto a aconselhar Raul a trocar de livro.
- Coloca o Miguel Cervantes no teu quarto. E não penses que é por causa do amor incondicional do engenhoso fidalgo de La Mancha.
Nessa manhã, Eva estranhou não ver Marco à porta da repartição. Perguntou por ele a um dos colegas fumadores.
- Não apareceu esta manhã. Segundo o Miguel, o Marco afirmou-se. Saiu de casa para viver com a Emília.
(a publicar dia 01/04/10)