quarta-feira, março 31, 2010

Ciúme

Raul não conseguia dormir. Estava deitado junto a Eva, na sua cama de casal e não havia forma de adormecer. Já se tinha virado para os dois lados da cama, de barriga para cima, para baixo e nada. Acendeu o candeeiro, pegou na “Origem das Espécies”, leu umas páginas.

A luz não incomodava a sua esposa, tão sossegada a dormir. Raul contemplou Eva. Tranquila de olhos fechados, uma beleza angelical. 

            - A Antónia não simpatiza comigo. Deve ter ciúmes pelas minhas conversas com o marido dela à porta da repartição, enquanto fumamos.

Raul fechou o livro, não se concentrava. Pombos, bicos, papos e caudas em leque.

- És parvo, Raul. A Eva é incapaz de te trair, pá.

Alberto não queria acreditar na desconfiança de Raul. Amigo do casal, desde longa data, confiava plenamente nas virtudes da amiga.

- Há frases que te elucidam Alberto. Passei a noite sem dormir. Nem o Darwin me cansou. Ao referir-se à pouca empatia da Antónia, eu como a considero mal encarada, não relacionei com nada. Passado uns dias, pensei melhor no significado das palavras da Eva. Imaginei o Marco, é o marido da Antónia…

- Sei…

- … a falar em casa das conversas com a Eva. A Antónia a ouvir o nome dela várias vezes. A escutar o partilhar de cigarros, de histórias, das preocupações maternais, das preocupações laborais de outra mulher. Outra mulher, a invadir-lhe a casa, sem pela porta entrar. A dominar a atenção do marido. O marido a sorrir ao referir-se ao nome da Eva. Essa provocação fez Antónia alterar o seu comportamento. O Marco a falar-lhe de uma mulher, enaltecendo as suas qualidades, despertou a desconfiança da Antónia.

- Raul, meu amigo, estás a seguir a intuição feminina.

- Provavelmente. Jamais falei com a Antónia sobre o assunto, só que comecei a recordar-me das vezes que Eva falou do Marco lá em casa. Das ajudas mútuas que foram solicitadas. De recordação em recordação, percebi que o encantamento entre os dois foi crescendo.

- Ena que imaginação!

- Lembrei-me como nos apaixonávamos em jovens. A afeição que sentíamos por determinada rapariga. De como nos sentíamos felizes a conversar, a trocar ideias, livros, discos com amigas e de como, entretanto, o sentimento mudava, crescia e abandonávamos uma namorada e partíamos para outra.

- Ninguém te deixou, Raul.

- Eu sei Alberto. A angústia dominou-me. Não dormi nada. Estou com uma directa em cima.

Alberto procurava as melhores palavras para consolar o amigo.

- A Antónia não simpatiza comigo.

Sem ser interrompido, Alberto explicou ao amigo as virtudes da literatura, dos dramas e das figurações específicas das narrações. Recordou-lhe que se repetem, em várias obras literárias uma série de discussões, umas das quais é o ciúme.

- Como deves compreender a tua desconfiança, insegurança diria, fez-me lembrar um conto sobre o ciúme. Basicamente o marido queria colocar à prova o amor da esposa, desaparecendo e fazendo frequentar a sua casa, um belo jovem, para verificar como incondicional era o amor da sua amada.

- Um clássico.

- Exactamente. O desfecho é sempre o mesmo, doloroso para quem desconfia. Por isso, acredita que a maturidade da Eva é maior do que quando era adolescente. Do Marco não posso falar. Se a Eva te conta das desconfianças da Antónia é porque isso a entristece, Raul. Nada mais. Não alimenta nenhuma ilusão, nem pretende abandonar-te. A relação dela contigo é a mais honesta possível. Ela é transparente. Conta-te tudo.         

A conversa terminou com Alberto a aconselhar Raul a trocar de livro.

- Coloca o Miguel Cervantes no teu quarto. E não penses que é por causa do amor incondicional do engenhoso fidalgo de La Mancha.

Nessa manhã, Eva estranhou não ver Marco à porta da repartição. Perguntou por ele a um dos colegas fumadores.

- Não apareceu esta manhã. Segundo o Miguel, o Marco afirmou-se. Saiu de casa para viver com a Emília.

 

(a publicar dia 01/04/10)

 

 

quarta-feira, março 24, 2010

Nós limpamos

 

            No passado sábado, dia 20 de Março, fui um dos 80 participantes do projecto Limpar Portugal, Limpar SJM. Destacado pela organização para a zona da Devesa Velha, tive durante esse dia, a oportunidade de verificar a quantidade de resíduos depositados em zonas verdes da cidade.

O cálculo efectuado nas acções de reconhecimento realizadas pelo grupo local, demonstrou ser deficitário. Afinal, havia muito mais lixo abandonado nas quatro zonas da cidade, cujo propósito era serem limpas por voluntários no âmbito da campanha de índole nacional, Limpar Portugal.

Às oito horas e trinta minutos, já se limpava. Ainda não tinham chegado todos os participantes, nem o funcionário municipal destacado pela Câmara Municipal, nem o material de apoio previsto para a equipa de limpeza e já os restos têxteis de dois colchões de cama, mais de uma dezena de garrafas de vidro, uma série de recipientes de plástico e de metal estavam ensacados, prontos para serem recolhidos.

Com o reforço humano e de meios, conseguiu-se limpar: restos de material de uma tinturaria, desperdícios e frascos de tinta atirados para o mato; os evitáveis desaproveitamentos da indústria de calçado; imensos cacos de vidro quebrados ao longo dos anos, provenientes de placas abandonadas por um construtor civil; roupas; botas velhas; brinquedos e uma carpete já assimilada pela natureza, com um arbusto, entretanto nascido, a atravessá-la.

Todos estes resíduos estavam próximos da estrada - aqui Rua do Visconde. O grupo desceu um pouco mais, a caminho do IC2, inclinando para a esquerda, posicionando-se sensivelmente em frente ao Centro Empresarial e Tecnológico. Ali em baixo, retiraram-se 30 pneus. Todos depositados na ribanceira, já com silvas a cobri-los e metade deles, obrigando a subir à estrada para serem empurrados, pois não havia outra forma de os retirar dali. A seguir aos pneus, estavam depositadas três carcaças de frigoríficos, cheias de pedras e com troncos sobrepostos, obrigando a um trabalho extra para a sua remoção. Dali para a frente restos de caixas de estores, de persianas, de tubos em PVC, de esferovites e de outros materiais de construção estavam inseridos na paisagem.

Este foi o entulho retirado. As fortes chuvas do dia anterior tornaram o terreno lamacento. Não se conseguia prosseguir naquela direcção, tendo ficado uma das ribanceiras com algum lixo. Da zona pantanosa, ainda retirámos dois pneus, deixando lá ficar louça de casa de banho, uma sanita, um bidé e uma pia das mãos, mais uma série de entulho. Às dificuldades devido ao excesso de água acumulada, pelo menos até a meio da canela, acresce que todo aquele canto estava impregnado por um cheiro a águas residuais, verificando-se algumas manchas gordurosas nas margens do pequeno curso de água que por ali deambula.

Podia continuar a descrição, indicando os resíduos retirados da vala criada pela abertura do colector municipal, assegurando que mais não se tirou por causa da água acumulada, só que a apresentação dos tipos de resíduos e acções desencadeadas seria muito parecida com os parágrafos anteriores.

Penso que os leitores terão compreendido o que esconde a nossa floresta. O relato aqui apresentado, do entusiasmo e empenho dos doze voluntários que optaram pela Devesa-Velha, será certamente muito semelhante ao das restantes equipas que puseram mãos à obra em S. João da Madeira e no resto do país.

Apesar de tudo, ainda ficaram muitos resíduos por retirar.

A autarquia pode agora aproveitar o levantamento prévio e completar o trabalho iniciado, corrigindo algumas anomalias detectadas, estabelecendo procedimentos de vigilância e continuando a proibir a deposição de resíduos em zonas verdes.  

Quem se mobilizou nesse dia para a limpeza da floresta espera, no fundo, que a mensagem de sensibilização transmitida nesta campanha seja bem assimilada pela restante população, ajudando a alterar hábitos que não contribuem para o bem-estar de todos.  

 

(a publicar no dia 25/03/10)

         

quarta-feira, março 17, 2010

Da gastronomia

 

            O coelho, atendendo à utilização do seu pêlo como matéria-prima na indústria de chapelaria, teve certamente uma importância na história de S. João da Madeira.

             A necessidade de abastecer as máquinas de feltros, acompanhando a grande quantidade de encomendas de chapéus recepcionadas na indústria local, provocou certamente uma enorme existência de coelhos nas redondezas. A sua criação esteve sempre facilitada pela capacidade de reprodução da espécie.

            O crescimento de unidades industriais de chapelaria, não terá permitido aos criadores de coelhos proceder a uma selecção metódica da espécie, melhorando-a com o objectivo de encontrar uma relação óptima de peso e a qualidade de pêlo. A lógica de entrega, em quantidades sucessivas, foi certamente o que imperou no fornecimento à indústria local. Ainda são visíveis, nas traseiras de moradias mais antigas, vestígios dessa época de grande criação doméstica. 

            Anos mais tarde, o desuso do chapéu, a consequente diminuição da produção de feltros, introduziu um novo factor na criação de coelhos, levando à redução do número de existências, apesar da grande capacidade reprodutora - uma gestação da coelha demora apenas 31 dias, nascendo ao fim desse período 4 ou 5 crias.

            Factores como a qualidade do pêlo, provenientes de espécies existentes noutros países, ou mesmo de outros animais, originando chapéus diferenciadores, terão contribuído para uma estagnação do número de coelhos nesta região, embora, longe de qualquer perigo de extinção, naturalmente.

            O raciocínio da produção vertical, com controlo total das matérias-primas e do produto final, encontrando-se soluções de venda para fases intermédias, permitiu que fosse encontrado no coelho, pela sua importância na arqueologia industrial, o prato típico da gastronomia de S. João da Madeira.

            Qual a forma de o preparar e servir, não consegui apurar. Receitas de coelho, segundo a Associação Portuguesa de Cunicultura, existem 48 diferentes. Poderia reproduzir alguma exemplificando, só que não sou grande apreciador desta carne, pelo que além da maçada provocada aos leitores, não teria qualquer prazer pessoal na transcrição.

            Para a confeitaria, numa região rica em doçaria – fogaça, pão-de-ló, entre outras – foi eleita a torta de cenoura. Um pouco arrojado, mantendo-se a ligação ao coelho, desta vez, às suas preferências alimentares.

            Acontece que em casa dos meus pais, uma das sobremesas de eleição confeccionada é precisamente a torta de cenoura. Não deixa de ser curiosa a coincidência, atendendo a que os meus progenitores vieram para S. João da Madeira há quase cinquenta anos.

            Em festas familiares era um dos doces mais aguardados. No momento de o servir, o meu pai aumentava a ansiedade das crianças sentadas à volta da mesa. Pegava na faca e perguntava quem queria. Educadamente respondíamos um bocadinho. Assim era servido. Um pequeno pedaço, correspondente a um terço, ou menos, de uma fatia normal. Desapontados e não percebendo o jogo, voltávamos a pedir outro bocadinho… A brincadeira repetia-se, longe de imaginarmos que aquele doce seria proposto para emblemático da terra que nos viu crescer.

           

             

(a publicar no dia 18/03/10)                            

quarta-feira, março 10, 2010

8 de Março

            A revista Visão na sua publicação trimestral “História”, apresentou uma edição com o Portugal de há cem anos, a propósito da implantação da República. Um documento abrangente com apresentação de dados cronológicos e demográficos. Entre os vários dados políticos - dos movimentos decisivos dos republicanos, aos últimos dias da monarquia, o quotidiano nacional desse tempo foi retratado. A inclusão de fotografias de várias localidades deu para identificar as mudanças físicas de um século mas, ao mesmo tempo permitiu recordar antigos hábitos, vocábulos em desuso, profissões da época, entre outras particularidades do dia-a-dia.

            Dos bilhetes-postais editados, um mencionava S. João da Madeira. A caminho da feira era o motivo fotografado. Em primeiro plano uma rapariga. Na sua cabeça uma tábua suportando chapéus. Mais de uma dezena, destacando-se um chapéu de senhora. Os trajes da carregadora são simples: blusa, saia e um avental por cima desta. Para completar a descrição desta figura, refira-se que está descalça, em chão de terra batida. Em segundo plano, uma carroça puxada por uma junta de bois, com a respectiva canga. A carga da carroça não se consegue distinguir. O condutor de fato escuro e chapéu está de pé, com uma vara na mão.

            Um passado pitoresco de S. João da Madeira, ainda com uma forte componente rural. Uma imagem duma época de transição, o caminho para a abundância industrial. Mão-de-obra feminina distante da indústria, habilitada a executar apenas algumas tarefas. Um complemento das transportadoras de marmita, em tempos já mencionadas por mim nestas páginas.

            Por essa época, passava a frequentar um curso universitário a primeira mulher. Natural de uma freguesia do concelho de Santa Maria da Feira, Domitila Carvalho era uma excepção num país com uma taxa de analfabetismo elevadíssimo - entre as mulheres rondava os 83%.

            Passado um século as desigualdades entre género ainda subsistem no nosso país, embora sem as grandes diferenças do passado.

            Do mundo industrial, recolhi relatos de mulheres que na sua vida, algumas ainda em crianças, outras já adolescentes executaram esse tipo de cargas. Almoços transportados à cabeça, ao longo de vários quilómetros, maioritariamente percorridos com os pés descalços, para serem servidos a tempo e horas à entrada das fábricas, a pais ou a irmãos mais velhos, faziam parte do quotidiano local, ainda na década de 70 do século XX. Nesses anos, algumas fábricas locais asseguravam a carga do produto final até aos transportadores nacionais, à cabeça das operárias.

            Na homenagem à indústria e ao passado histórico do país, consagrada nos anos 90 com a implantação de estátuas pela cidade, ficou algo por efectuar. Um tributo à artesã seria uma forma de enaltecer o passado de sacrifício da mulher sanjoanense. Seria também, utilizando temas mais actuais, uma forma de promover a igualdade de género e de relembrar, combatendo-o, o elevado índice de violência doméstica existente no concelho.

 

(a publicar no dia 11 de Março)

              

           

             

 

quarta-feira, março 03, 2010

40

            Daqui a pouco mais de quinze dias realiza-se a iniciativa Limpar Portugal, com o propósito de limpar as florestas do nosso país. Em S. João da Madeira, a organização local detectou quatro zonas e estimou estarem depositadas nessas áreas 40 toneladas de lixo ilegal.

            Em meados da década de 90 do século passado, colaborei numa acção semelhante que se intitulou Limpar o Mundo, Limpar SJM. Uma iniciativa do jornal labor, associando-se à promoção desencadeada pelo jornal Público à escala nacional, que contou com o apoio da Associação Estamos Juntos. Com o intuito de demonstrar o estado em que se encontravam os espaços urbanos da cidade, foram eleitos como locais a limpar: o Parque de Nossa Senhora dos Milagres, a Avenida Renato Araújo e a zona pedonal – Praça Luís Ribeiro e zonas adjacentes. Numa manhã de sábado de Setembro, salvo erro, munidos de luvas, pás, enxadas, carrinhos de mão e os inevitáveis sacos de plástico pretos - tudo fornecido pela Câmara Municipal, os cerca de 50 voluntários recolheram o lixo que encontraram. Na época ninguém se preocupou em pesar os respectivos resíduos. O acto era meramente simbólico.

            Decorridos praticamente quinze anos desde a primeira operação, é importante destacar o que mudou entre as duas iniciativas:

            a) Os meios de divulgação – como descrevi, nos anos 90 a iniciativa foi promovida por um jornal, sendo apenas e só esse órgão de comunicação social de âmbito nacional a divulgar o evento. Por cá, o labor fez as honras da casa. Veja-se o contraste com o Limpar Portugal do próximo dia 20 – divulgação na RTP, em jornais nacionais, locais, em vários sites na internet e nas escolas.

            b) Os meios técnicos – na georreferenciação das lixeiras, indicando as suas coordenadas GPS, permitindo uma melhor identificação e sobretudo, facilitando o acesso aos espaços florestais, existiram preocupações em verificar o tipo de lixo existente em cada local, para se programar o transporte adequado para a sua remoção. Por exemplo, na Devesa Velha, foram identificados “entulho, resíduos de demolição e construção (RDC), lixo orgânico, plástico, embalagens, vidros, papéis, alguns monstros como colchões, sofás e frigoríficos bem como resíduos da indústria do calçado como solas e peles”. Ao pensarmos nos carrinhos de mão…

            c) Mobilização – ainda não chegou o dia L, contudo, o grupo de S. João da Madeira já é constituído por 116 membros.

            d) Indiferença autárquica – se no município de Faro foram identificados 240 toneladas de lixo ilegal, que podem ser utilizados como argumento político provando a má gestão do executivo anterior, já em autarquias onde não houve mudança de partido, esta iniciativa pode ser utilizada como uma oportunidade para consolidar a limpeza do município. Existe o risco sério de surgirem críticas pela inércia de anos, só que o pragmatismo a alcançar, compensa.  

            e) Sensibilização – o cuidado com o meio ambiente, divulgado durante anos, começa a dar resultados. A participação em actos cívicos é a prova disso mesmo. Estão bem enraizados nas gerações mais novas da população conceitos ecológicos … outrora tão firmes.

 

(a publicar dia 4/03/10)