A revista Visão na sua publicação trimestral “História”, apresentou uma edição com o Portugal de há cem anos, a propósito da implantação da República. Um documento abrangente com apresentação de dados cronológicos e demográficos. Entre os vários dados políticos - dos movimentos decisivos dos republicanos, aos últimos dias da monarquia, o quotidiano nacional desse tempo foi retratado. A inclusão de fotografias de várias localidades deu para identificar as mudanças físicas de um século mas, ao mesmo tempo permitiu recordar antigos hábitos, vocábulos em desuso, profissões da época, entre outras particularidades do dia-a-dia.
Dos bilhetes-postais editados, um mencionava S. João da Madeira. A caminho da feira era o motivo fotografado. Em primeiro plano uma rapariga. Na sua cabeça uma tábua suportando chapéus. Mais de uma dezena, destacando-se um chapéu de senhora. Os trajes da carregadora são simples: blusa, saia e um avental por cima desta. Para completar a descrição desta figura, refira-se que está descalça, em chão de terra batida. Em segundo plano, uma carroça puxada por uma junta de bois, com a respectiva canga. A carga da carroça não se consegue distinguir. O condutor de fato escuro e chapéu está de pé, com uma vara na mão.
Um passado pitoresco de S. João da Madeira, ainda com uma forte componente rural. Uma imagem duma época de transição, o caminho para a abundância industrial. Mão-de-obra feminina distante da indústria, habilitada a executar apenas algumas tarefas. Um complemento das transportadoras de marmita, em tempos já mencionadas por mim nestas páginas.
Por essa época, passava a frequentar um curso universitário a primeira mulher. Natural de uma freguesia do concelho de Santa Maria da Feira, Domitila Carvalho era uma excepção num país com uma taxa de analfabetismo elevadíssimo - entre as mulheres rondava os 83%.
Passado um século as desigualdades entre género ainda subsistem no nosso país, embora sem as grandes diferenças do passado.
Do mundo industrial, recolhi relatos de mulheres que na sua vida, algumas ainda em crianças, outras já adolescentes executaram esse tipo de cargas. Almoços transportados à cabeça, ao longo de vários quilómetros, maioritariamente percorridos com os pés descalços, para serem servidos a tempo e horas à entrada das fábricas, a pais ou a irmãos mais velhos, faziam parte do quotidiano local, ainda na década de 70 do século XX. Nesses anos, algumas fábricas locais asseguravam a carga do produto final até aos transportadores nacionais, à cabeça das operárias.
Na homenagem à indústria e ao passado histórico do país, consagrada nos anos 90 com a implantação de estátuas pela cidade, ficou algo por efectuar. Um tributo à artesã seria uma forma de enaltecer o passado de sacrifício da mulher sanjoanense. Seria também, utilizando temas mais actuais, uma forma de promover a igualdade de género e de relembrar, combatendo-o, o elevado índice de violência doméstica existente no concelho.
(a publicar no dia 11 de Março)
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