quarta-feira, maio 26, 2010

Romarias

            A redução da edição do presente ano da Festa do Parque à sua componente religiosa, pode ser interpretado como um sinal da crise social instalada na cidade. Este ponto de vista, extremamente realista, demonstra o sentimento generalizado que se vive em S. João da Madeira, em consequência do encerramento de indústrias, de lojas comerciais, elevando o número de desempregados, pela quantidade de imóveis devolutos, pelas valências de Estado entretanto encerradas e para alguns pelo desaire do clube de futebol. Pode-se contrapor estes argumentos dos arautos do pessimismo, pela oportunidade criada para a modernização dos hábitos culturais da cidade e dos seus habitantes.

            Em pequeno fui alguns anos à Festa do Parque. Os divertimentos, as farturas, as pipocas, o algodão doce seduziam-me. Praticamente era a única festa da então vila. O S. João da Ponte tinha poucos divertimentos, sofrendo da concorrência da festa na cidade do Porto. A Festa grande, como era conhecida, só se realizava em alguns anos e portanto, a ambição de quem aqui tinha nascido era ir até ao Parque. Com o avançar dos anos, o espírito crítico apareceu. O conhecimento de outras festas, da oferta de outros e melhores divertimentos, demonstraram que a Festa do Parque não era o universo perspectivado na infância. Deixando de frequentar assiduamente o Parque a partir da adolescência, em virtude do encerramento do tanque piscina, tive vários anos sem qualquer aproximação à festa. Apenas há alguns anos, num fim de tarde, em que a família procurou o parque infantil ali instalado é que pude constatar que tudo estava igual. As barracas, as suas mesas, o tipo de divertimentos e as estruturas que os albergavam eram a marca de um tempo. No meu imaginário infantil tudo aquilo fazia sentido, só que passados mais de trinta anos, os tempos são outros. As crianças, os jovens e os adultos têm contacto com melhores formas de lazer e ir ao Parque, à festa, deixou de ser sedutor para grande parte da população local. Mesmo os concertos de fim de festa perderam o encanto do passado.

            Este ano prevaleceu o sagrado sobre o profano. A dicotomia das festas populares reduzida à perspectiva religiosa. Muitas festas aliam a componente religiosa a um motivo pitoresco, casos das tradicionais procissões das Fogaceiras ou dos tabuleiros em Tomar. Não esquecendo que as festas de Santo António em Lisboa – com as suas marchas alegóricas - e do S. João do Porto - com os martelos – têm um forte carácter de irreverência. A norte existe uma forte tradição de festas religiosas. Viana do Castelo, Amarante e Ponte de Lima, procuram sempre superar-se, embora seja difícil igualar o momento da Vaca na Corda nesta última localidade. A sul, os ornatos florais de Campo Maior, mesmo ocasionais são o expoente das festas populares, sabendo-se que estas se realizam quando a população o deseja.

            Um pouco por todo o país, surgiram apelos à mobilização dos cidadãos. Com esta modernização criaram-se imensas festas e festivais onde os habitantes passaram de meros espectadores a participantes, o que garante a continuidade dos eventos e o sucesso dos mesmos. Nesta perspectiva, a “Tomatina”, festa realizada na pequena localidade de Buñol em Espanha, conhecida pelo atirar de tomate entre uns e outros, projectou-se globalmente e é hoje um caso de grande sucesso turístico, sendo o pólo das festas bizarras.

            A modernidade, a participação e a inovação, suportados na tradição de cada localidade, são o oposto do que se encontra na maioria das festas do nosso país.

            Os vendedores ambulantes sem novidades, nem grandes preços, as diversões sem segurança, que fazem as festas serem badaladas pelos piores motivos, não são apelativos para ninguém que viva em conceito urbano. Demonstram a passividade, a indiferença e a resignação da população perante o que os rodeia.      

 

(a publicar dia 27/05/10)

           

quarta-feira, maio 19, 2010

Desculpas

            A semana política nacional ficou marcada por um insólito pedido de desculpas aos portugueses. Depois da arrogância, do diálogo, da fuga, da incompetência, do “chico-espertismo” - os estilos característicos dos sucessivos chefes de governo dos últimos vinte e cinco anos – é aberta uma nova página na democracia portuguesa, a do estilo humilde, utilizado pelo líder do PSD.

            A novidade pressupõe o debutar de uma geração de políticos, proveniente das juventudes partidárias, contrastando com uma estirpe de idade mais avançada, marcada por um carácter mais orgulhoso, que raramente assume os seus erros.

            As reacções ao perdão surgiram em tom jocoso.

            A justificativa invocação do sentido de Estado, aparece cada vez mais como expiatória e tem pouco de atenuante.

            Os contribuintes olham para o aumento de impostos como um regresso ao passado. A 2005 e três anos seguintes, no caso do IVA. Ao período de 2003, quando não havia vida além do défice, no caso do IRS e IRC – com a excepção da alteração da taxa para os rendimentos mais elevados.

            O esforço para voltar a apertar o cinto é aceite, desta vez, com condições. O contribuinte espera que a despesa do Estado diminua.

            O valor do défice não pode ser controlado durante uma legislatura e no ano das eleições legislativas disparar para o dobro, o triplo, ou o quádruplo do ano anterior.

            Os argumentos para adiamento dos grandes investimentos do Estado são evidentes para todos os portugueses, excepto para os envolvidos na construção. Veja-se os episódios do projectado TVG – há um ano três linhas projectadas Lisboa - Madrid, Lisboa – Porto, Porto – Vigo; há um mês, apenas sobrou uma entre capitais; esta semana, as vantagens apresentadas para manter as duas capitais ligadas por alta velocidade (estações no centro das capitais, tempo de viagem mais reduzido comparando com o somatório do tempo de deslocação para e do aeroporto, tempo para check-in, tempo de viagem e tempos de espera, resumidas pelo ministro à possibilidade de os espanhóis fazerem surf perto de Lisboa) foram esquecidas - o TGV reduziu-se à ligação entre um Poceirão e Madrid. Por este andar, daqui a uns dias é apresentada uma nova fase do projecto - tipo a construção de um só um carril e argumentos favoráveis para esta amputação serão certamente expostas com igual veemência que os actuais.

            O plano de austeridade tem que se efectivar na redução da verba por cada Ministério. O hábito de executar todas as rubricas orçamentadas, apenas para garantir verbas para o ano seguinte, deveria ser melhor controlado. Reduzir um por cento num ano, não me parece uma utopia. Mas nestas matérias existe sempre uma facilidade tremenda em apresentar soluções e por outro lado, uma resistência enorme em não reduzir o orçamento do Estado, em matéria de despesas de funcionamento do mesmo.

            O problema ficará sempre por resolver e a solução será aumentar impostos. A menos que no futuro, ninguém queira pedir desculpas aos portugueses.

 

 

(a publicar dia 20/05/10)       

quarta-feira, maio 12, 2010

Espectador

Espectador

 

            A passividade é a principal característica do assistente num evento. No cinema, o espectador apenas contempla. Em concertos ou no teatro, a interacção com o palco varia conforme o tipo de espectáculo. As tradicionais palmas - sinónimo de apreciação - foram sendo substituídas por maiores participações da assistência e o público passou a ter uma maior actividade. 

                Em tempos, a televisão também promoveu a passividade. Na época do canal quase único, sem cor, quem ligava a televisão não tinha escolha. Recordo as tardes de sábado assistindo aos duelos com espada esgrimidos por Errol Flynn, aos numerosos tiros por minuto de John Wayne e dos gritos selvagens de Tarzan. A opção duplicou com o alargamento de horário das emissões do segundo canal – ainda assim, várias pessoas têm recordações semelhantes ao enumerar séries televisivas seguidas nesse período (já a cores): os miúdos em férias no Verão Azul; as aventuras do opiómano Holmes e o seu elementar companheiro; um detective zarolho que não largava a sua gabardine; e claro, os estudantes de uma escola de artes. Entretanto, chegaram os videogravadores – passou a ser possível seguir um canal e gravar outro, ou então, sair de casa e gravar um programa – enfim, as opções aumentaram, sobretudo com os alugueres em vídeo clube. A partir dessa época, o resumo da visualização da noite televisiva anterior deixou de ser comum. 

                Na televisão, o espectador deixou de lado a passividade com o zapping. Parabólicas, com canais estrangeiros, a seguir os canais privados portugueses e mais tarde, o serviço por cabo, ofereceram programações diferentes ao alcance do comando de cada um. A escolha de canais ao gosto de cada família ou de cidadão, pois cada lar possui em média mais do que um aparelho de televisão.

                Ser espectador é não tomar partido. É assistir, testemunhar. Apesar da cada vez maior interactividade, um concerto de orquestra é apreciado pelo seu todo. Um solista merece aplausos mas, o resto da orquestra não fica esquecida, nem os instrumentos graves com “tão pouco romantismo”, como apregoa Ana Bacalhau dos Deolinda.

                Como espectador faço a escolha do que quero consumir. Sigo padrões estéticos, ouso envolver-me de vez em quando com uma novidade, alargando assim, o meu gosto cultural, sempre cautelosamente. No cinema, por exemplo, tudo mudou quando vi Amacord de Federico Fellini. O realizador italiano passou a ser o meu preferido, exageros típicos de adolescente. Consumi a sua obra praticamente em retrospectiva, as tristezas de Cabíria, 8 e qualquer coisa, A doce vida e os restantes palhaços… Ao vazio provocado pela sua morte, seguiu-se a fixação em Rohmer, pelo seu conto de Verão e não só. Pelo meio, assisti a belos momentos de cinema, a alguns dos meus filmes preferidos, como o fabuloso destino daquela francesa ou, para não me situar apenas na Europa, apesar do excelente Adeus a Lenine, não posso deixar de referenciar a transformação do actor pistoleiro em mestre da realização.

                Se, como espectador de cinema, consigo deslumbrar-me com a oferta, com o humor subtil, com o romance, com a narrativa, com a restituição histórica, com a imagem, com as actrizes, com o desempenho dos actores e espero passivamente por uma excelente surpresa, já como espectador de desporto sou o contrário. Posso assistir indiferente, via televisão refira-se, a uma clássica regata no rio Tamisa, sem escolher nenhuma das escolas. Incentivo sentado no sofá, qualquer atleta que nade ou corra contra o cronómetro. E nestes exemplos, posso definir-me como espectador. Só que em desportos com bola, passo a adepto: em ténis em função dos jogadores escolho sempre um dos lados para apoiar; em desportos colectivos só conheço um lado. Por isso, qualquer prosa sobre os acontecimentos desportivos e respectivos festejos, os meus incluídos, efectuados no passado fim-de-semana, seriam sempre argumentos de simpatizante da causa e isso pode ferir a susceptibilidade de alguns leitores.

 

(a publicar dia 13/05/10)

quarta-feira, maio 05, 2010

Cêntimo a cêntimo

            Arlindo ia pagar o seu abastecimento de gasóleo e foi surpreendido com a pergunta da funcionária da caixa: É sócio do Porto? Admirado, Arlindo deve ter colocado má cara, pois a funcionária tentou emendar, perguntando se era do Benfica. Sem compreender o interesse da senhora, Arlindo lá respondeu espantado que não. E do ACP é sócio? Sim, sou – respondeu Arlindo. Tem direito a um desconto de seis cêntimos por litro, se apresentar o cartão de sócio. Apresentado o cartão, feito o pagamento, Arlindo agradeceu a preocupação da funcionária e seguiu para o seu automóvel.

            Arlindo comentou o sucedido, fazendo a analogia com os vales de desconto já usados noutras gasolineiras.

            - Todas dão desconto, engraçado.

            - Um valor semelhante do desconto. Nalguns casos o valor de desconto é fixo e para todos os dias, outros casos é só duas vezes por semana e há ainda os que têm apenas um dia com o combustível mais barato.

            Arlindo nem se apercebeu do sucedido. Durante meses aproveitou os descontos e o período de baixa de preço do barril de crude. O gasóleo era barato, com os descontos conseguia preços idênticos aos de Espanha e por isso tudo estava bem.

            Em semanas sucessivas o preço do combustível aumentou. Poucos cêntimos de cada vez, pelas razões de sempre – variação do preço do crude, com rápido acompanhamento nas subidas e esquecimento na baixa do seu valor.

            Em consequência disso, Arlindo viu os descontos a aumentarem. A lógica de venda mudou. A periodicidade passou a ser fixa, todos os dias menos seis cêntimos, acumulados com mais algum desconto, em alguns postos de revenda.

            Só então, Arlindo percebeu. O desconto dos vales corresponde ao acréscimo no valor do combustível, ou seja, na venda mediante a apresentação de cartão de sócios, vales, ou em dias a menor preço, o combustível inflacionado é vendido com menor lucro.

            Munido das novas ferramentas de comparação de preços, Arlindo passou a verificar a diferença no seu distrito, 15 cêntimos entre o mais caro e o mais barato. Arlindo pouco percebe do negócio da venda de combustíveis, dos custos fixos, dos custos com o pessoal, do preço da aquisição da matéria-prima à refinaria. As suas contas são outras, em cada depósito abastecido no posto mais barato do distrito a diferença são 9 euros, para 60 litros.

            - Quase 13% se o combustível for gasóleo, diz Arlindo aos amigos.

            - Ninguém faz descontos permanentes para perder dinheiro.

            - Consta-se que perto da fronteira portuguesa, são já poucos os postos de venda de gasolina abertos, pois a maioria dos portugueses prefere abastecer em Espanha. Qualquer dia, acontece o mesmo no resto do país, ficam apenas a vender as mais baratas e outras encerram.

            - Antes disso, os descontos em alguns postos ficam mais elevados, para que o preço seja mais baixo do que as mais baratas.

            - Será?

            - Já vi anúncios de menos 18 cêntimos.

            - Ena.

 

            Arlindo é um nome fictício. A narrativa e os diálogos são por isso imaginados, tudo o resto não.

             

(a publicar no dia 06/05/10)