quarta-feira, janeiro 09, 2013

A Tábua de Flandres

 
            Fechei o livro. Li a última página, antes de iniciar a escrita destas linhas.
Durante anos fugi deste livro, de Arturo Pérez-Reverte. No entanto, adoro a sua escrita. Possuo outros títulos seus na minha pequena biblioteca: O Hussardo, Um dia de cólera, O Pintor de Batalhas. Devorei a capacidade do autor em recriar factos históricos, em nos agarrar à narrativa, derramando litros de sangue para fazer avançar o enredo literário.
A Tábua de Flandres escapava há vinte anos.
Ao regressar à atividade associativa via xadrez distrital, senti um desejo de voltar a mexer nas peças do nobre jogo. Deixei o jogo como desportista federado há quinze anos. Uma ou outra partida no computador, mais umas aventuras nuns sites internacionais e a última ação, foi como participante numa simultânea, promovida na Figueira da Foz, tendo como oponente uma jovem promessa Russa, que me dizimou ao fim de 35 lances. Depois disso, jamais me aventurei, com exceção das partidas domésticas, mais didáticas e pedagógicas, com os meus filhos.
A minha inatividade, não passou despercebida na última Assembleia Geral da Associação de Xadrez de Aveiro. De todos os diretores e delegados credenciados, eu era o único não jogador. Apenas dirigente.
Por causa das funções que por ali exerço, tenho-me entretido com a leitura da lei de bases da atividade física e do desporto – lei n.º 5/2007. As suas implicações no regime jurídico das federações desportivas. Derivando daqui para a consulta dos novos estatutos de algumas Federações Desportivas, conscientes que essa revisão era imperiosa para manter o estatuto de instituição de utilidade pública. Para rematar este processo, tenho estudado a revisão estatutária de várias associações distritais, de desportos tão díspares como futebol ou natação. Por outro lado, tenho verificado a organização territorial em vários desportos, verificando que nalguns casos a divisão distrital perdeu o sentido e sem problemas, passaram a existir associações regionais.
Tudo isto é enfadonho.
Preferia voltar a empurrar as peças de madeira pelo tabuleiro. Ou as de plástico, mais usuais nos clubes.
Antes de ceder a essa tentação, tive um acerto literário com o meu passado.
Requisitei o já mencionado livro. Interessei-me pelo restauro do quadro do século XV “A partida de Xadrez”, no qual estão representados um cavaleiro e o seu senhor medieval, a disputar precisamente um animado jogo de xadrez. Inquietei-me com o enigma escondido na tela: Quem matou o cavaleiro? O descobrir do mistério, através da recomposição secular dos últimos lances da partida, fascinou-me. E quando a trama já parecia resolvida, no presente surgem assassinos dos amigos da restauradora, pretendendo o autor dos crimes continuar a partida de xadrez pintada no século quinhentista, o que me levou a estudar a posição das peças, a sugerir lances, envolvendo-me duplamente na intriga do livro.
Por aquelas páginas, revi momentos vividos enquanto jogador. O falso silêncio dos clubes, quebrado por breves murmúrios, o jogo de olhares entre oponentes perante a situação no tabuleiro, o descobrir as fragilidades do adversário, tudo muito bem relatado. Depois o enfrentar do desaire, a estratégia mal concebida, a tática falhada, os nervos não dominados são descritos de forma exemplar.
O autor retrata extremamente bem o jogador de xadrez. A sua excentricidade. Nalguns casos, o mundo isolado em que vive, a sua abertura e as relações sociais apenas para o jogo. Enquanto lia, revia caras, concebia uma imagem do personagem com base na centena de jogadores de xadrez que conheci. Os pormenores físicos descritos para mim eram recordações. Os olhares ausentes, os trejeitos corporais, entre outros. Do retrato psicológico do excêntrico jogador de xadrez desenvolvido ao longo do livro, abstenho-me de comentar pela sua complexidade.
Ao fechar o livro, compreendi que não estava errado quando abandonei a prática da modalidade.
O meu caminho não era aquele.
O acerto não foi só literário.
 
(a publicar no dia 10/01/2013)
 

Sem comentários: