quarta-feira, janeiro 16, 2013

O sopro de Dylan

            A sintonia analógica era difícil. As ondas hertzianas não eram bem captadas e algumas estações de rádio teimavam em serem ouvidas com ruído de fundo. Ainda assim, dada a preferência, uma questão de afirmação juvenil, ouvia-se as emissões com alguma dose de religiosidade. 
            Por essa época, havia um ou outro programa que teimava em repor músicas de décadas anteriores. Em horas específicas e longe da música dos tops, rolava o som de “Like a Rolling Stone”, pela voz de Bob Dylan. A música foi gravada em 1965 e praticamente duas décadas depois, eu ouvia-a com grande entusiasmo. Havia algo naquela voz que mexia comigo. O refrão era cantarolado, a letra não era entendida.
O mesmo aconteceu várias vezes, até eu ter uma perceção musical diferente e uma sensibilidade maior para as palavras das canções. “Take walk on the wild side” de Lou Reed, enquadrava-se no género e acompanhou-me sempre ao longo destas quase três décadas.
Apesar da melhoria na sintonização dos rádios digitais e da possibilidade de memorizar as estações de rádios, acompanhada pela evolução tecnológica nos suportes e leitores de música, prefiro continuar ouvir vozes de registo diferente. Leonard Cohen e Tom Waits, já por aqui expliquei, são inigualáveis. 
Nos últimos anos, as minhas surpresas musicais surgiram por meios diferentes, Manu Chao na televisão, Robyn Hitchcock no cinema, entrando de perfil num filme de Jonhatan Demme - nos jardins do casamento de Rachel - e Andrew Bird, no genérico de um filme, cujo nome não me ocorre.
Vozes diferentes, outras melodias.
O inesperado momento em que não se esperava nada de novo, até que o som duma música, captando a atenção, desperta novas sensações.
No carro, ao ouvir um célebre disco de Dave Brubeck, descobri o magnífico “Take Five”. Rolei-o vezes sem conta, em férias, nas viagens da praia para casa e de retorno. Decompondo a música, ouvindo o tema do saxofone, o ritmo do piano, o solo de bateria, tendo sempre a linha de baixo no centro de atenção. Insistentemente, transmitindo aos meus filhos o brilhantismo musical do pianista e compositor jazzístico norte-americano. Reconhecimento surgido apenas ao visionarem um episódio da série Simpsons, em que Liza no seu clube de jazz, tocando o seu saxofone, executa precisamente o virtuoso momento de “Take Five”.
Pelo youtube, o meu principal meio de audição de música, cheguei a “god’s gonna cut you down” interpretado por Johnny Cash, que me deixou atónito. Um registo fabuloso. Uma surpresa que partilho com amigos, deixando-os em igual estado ao escutarem o imprevisto som, longe do estereótipo da música “country” onde o tínhamos encaixado.
Nas viagens de carro entre a casa e o trabalho, o rádio vai ligado para ouvir as notícias do dia, as últimas do futebol, as brincadeiras do Bruno Nogueira e do João Quadros, com sonoplastia de outro fulano, cujo nome, apesar de repetido diariamente, não me ocorre. Na hora de almoço, nessa estação, das iniciais da telefonia sem fios, passam músicas selecionadas por personalidades públicas. Músicas antigas, ou de artistas consagradas, do género dos atrás por mim mencionados. Há dias, numa hora em que deviam estar a ser lidas as notícias, o meu ouvido captou uma melodia curiosa. A voz não me era estranha, embora não estivesse a reconhecer de quem era. Fiz um esforço de memória e parecia-me a de um consagrado músico negro, tipo Louis Amstrong. Com um registo menos grave e com uma guitarra a sobressair. Esperei pelo fim e o locutor anunciou nem mais, nem menos, do que Bob Dylan. Fiquei surpreendido, acreditei tratar-se de uma qualquer música antiga. Descobri que não. Era do seu último álbum. Trata-se da música Dusquene Whistle, cujo vídeo – entretanto encontrei-o sem dificuldade – pela violência apresentada, parece inspirado nos filmes de Tarantino.  
Aos 50 anos de carreira, Dylan aproveitou bem o apito do comboio de Dusquene. Demonstrou estar com fôlego para ainda se ouvir o seu sopro. A mim surpreendeu-me pela acidentalidade e voltei a ter prazer em ouvir uma canção.
 
(a publicar no dia 17/01/13)
 

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