quarta-feira, maio 29, 2013

Depois das 18

            Às seis da tarde começo outra vida.
Saio do trabalho e dedico-me a outras causas.
A viagem de carro permite-me antever o final de tarde. Preparo, ou revejo mentalmente, os assuntos de qualquer reunião marcada para essa hora, ao volante do automóvel, em condução estilo piloto automático. É a melhor forma. São várias as vezes, que chego aos locais de encontro e a temática é prontamente assumida, sem tempo para o retemperador café ser saboreado. Entro repentinamente noutro vocabulário, escuto outras preocupações dos interlocutores, quebrando a rotina e exigindo uma adaptação imediata, para ser produtivo o final de tarde.
Quando o destino é a biblioteca, demoro a desligar-me da atividade profissional. Entro no edifício e verifico a ocupação de quem ali trabalha. Deformação de controlador de atividade laboral. A solicitação de um livro, a dúvida acerca sua disponibilidade, a recolha na estante indexada, são ações que permitem colocar-me no papel de utente. Aparece um curioso, assíduo no espaço, tenta um diálogo, procurando indicar o autor de um ou outro livro, requisitado apenas pelo título, ou tentando citar uma frase escrita. Não o ajudo muito. Fica incrédulo. Se não sei quem é o autor, não finjo. Pouco ou nada cito. Não me interessa, nem tenho memória para isso. Aliás, costumo evocar a frase “este país não teve uma revolução” de António Lobo Antunes mas, se me perguntarem, de que livro? Não recebem uma resposta concreta.
A leitura acompanhou-me no final das tardes desportivas dos meus filhos. Um momento de introspeção prolongado para novas épocas. Uma boa alternativa às reuniões de carater social.
Nem sempre é assim.
Nesta época de provas finais do ano letivo, acompanho com a devida atenção os estudos dos meus filhos. Revejo as matérias, fazendo as sacramentais perguntas:
- Porque falhou o Fontismo?
Apetece-me questionar, depois de verificar as virtudes expressas no manual de História, relativas a este período de governação de Portugal, na segunda metade do século XIX.
Remeto-me ao essencial. À simultaneidade das melhorias dos meios de comunicação, nada digo. Pergunto apenas pelas estradas, pelas linhas ferroviárias e pela melhoria dos portos. A matéria quer-se sabida de acordo com o manual de estudo.
- Qual foi a cartilha do Fontismo?
Um trocadilho apetecível, ao rever João de Deus.
Dou enfâse à ocupação dos baldios, a lei das sesmarias vários séculos depois e contenho-me, para não estragar o estudo. A página seguinte do manual mostra o realismo, a população aumentou e a agricultura não produzia alimentos suficientes. Além do êxodo rural, os desgraçados emigraram, sobretudo para o Brasil, a necessitar de mão-de-obra.
Pela segunda vez, apetece-me perguntar quais as causas de insucesso do fontismo?
O aumento da dívida pública não é mencionado, como consequência da necessidade de contrariar, as várias décadas de atraso estrutural. O despesismo dos Bragança também fica afastado dos manuais. O lado sensato do Rei D. Luís não foi suficiente para o equilíbrio das contas públicas, nem para impedir o aumento de impostos. No entanto, nada disto justifica o regicídio do seu sucessor.
A ação de Fontes Pereira de Melo, António Maria, para completar o seu nome, foi importante para a modernização do país e para a regeneração da política, só que não teve acompanhamento a nível financeiro.
O desequilíbrio nacional perpetuado até aos dias de hoje.
Olho para relógio, ainda dá tempo para mais uma pergunta, de resposta pronta e rápida.
Começo a ouvir a resposta. Fixo-me na hora. Recordo o meu primeiro emprego. Os administrativos tinham já saído, os técnicos também. Dezanove horas quarenta e cinco minutos, ficava sozinho e responsável por fazer cumprir o plano de produção até às vinte e três horas. Tudo corria bem, até o João, do departamento de expedição, surgir com informações antagónicas ao meu plano. Era Melo o seu último apelido. Dada a semelhança, apetecia perguntar-lhe:
- Porque falhou o Fontismo?
Não perguntava. Ainda dava tempo de remediar a produção. 
 
(a publicar no dia 30/05/13)
 

quarta-feira, maio 22, 2013

O borralho da velha

            Nunca tinha vivido um mês de Maio tão frio. Durante anos ouvi o ditado popular, das velhas, das cerejas e do borralho. Quando havia alguma oscilação, tornando as temperaturas primaveris menos amenas, lá surgia o provérbio. Jamais senti as baixas temperaturas de Maio, como as deste ano de 2013.
            Uma experiência para comprovar um adágio popular, é interessante. Os hábitos invernosos não se recuperam. Apesar do frio, do vento cortante, da neve acima dos 1.400 metros, a roupa vestida é mais ligeira. Dispensando-se as lãs e os casacões que tão bem aconchegam o corpo em Janeiro ou Fevereiro. A claridade até ao jantar e o número de horas solares, ajudam a superar o frio. A noite é recebida da mesma forma primaveril e qualquer programa noturno é apetecível.
Foi com este espírito, que na passada sexta-feira, decidi assistir ao concerto de abertura do IX Concurso de Guitarra de S. João da Madeira / G.Artes. Fiquei liberto dos meus compromissos de pai precisamente à hora de início do concerto, só que a quinze minutos de distância. O termómetro do carro indicava 10º centigrado e a noite ainda não estava escura.
Apesar do atraso, optei por assistir ao concerto de Dejan Ivanovic. Entrei no final da primeira música, sem saber qual o alinhamento. Mal me sentei, fui brindando com a explicação da música da seguinte, estremeci ao ouvir o nome de Joaquín Rodrigo. Junto al Generalife, a música executada pelo sérvio, transportou-me pelas paisagens sonoras da guitarra espanhola. Estava já deliciado. As cinco bagatelas (tradução linear) da música posterior, de William Walton, ajudaram-me a continuar a viagem, por um mundo desconhecido.
Ao intervalo, estava rendido ao brilhantismo de Dejan Ivanovic. Para a segunda metade, o alinhamento escolhido mostrou o virtuosismo de dois compositores contemporâneos portugueses, Ricardo Abreu e Carlos Moreira, presentes na sala e por isso, aplaudidos quando chamados ao palco.
A explicação do guitarrista prosseguiu apresentando a música final de J. S. Bach. Para mim, leigo nestas andanças da guitarra, uma novidade sonora. A caraterística barroca esteve presente em toda a execução. Sem exagero, a dedilhação assemelhava o som produzido ao de um cravo, tal era a preciosidade do guitarrista, colocando-nos no século XVIII, num apropriado salão de música do Sacro Império Romano – Germânico. 
Os aplausos finais, com a plateia em pé, permitiram verificar o estado de satisfação do público. Aproveitei o momento, de luz já acesa, para analisar a ocupação da plateia, comprovando a ideia retida ao intervalo, o número de jovens presentes, bem como os membros da Associação de Pais, são o novo público dos concertos organizados pela Academia de Música.
A fidelização de público é essencial para o sucesso de eventos culturais. Só assim, se pode superar a reduzida divulgação e a sobreposição de eventos no calendário regional, lapsos que persistem na programação cultural da cidade.
Cativando essa assistência, tornando-a interessada, regular e em número considerável, como demonstrado nas últimas edições do Festival de Teatro de S. João da Madeira, pode-se ambicionar a eventos de maior dimensão, tão ao jeito da lotação da futura Casa da Criatividade.  
 
(a publicar no dia 23/05/13)
 

quarta-feira, maio 15, 2013

O que diz François

            Um ano após as eleições presidenciais francesas, a apreciação dos eleitores relativamente ao presidente eleito, não podia ser pior. As sondagens, divulgadas na semana passada indicavam que apenas 19% dos eleitores voltaria a votar em François Hollande.
            Se à direita, a derrota inesperada de Nicolas Sarkozy, provocou um mal-estar e obviamente uma grave desconfiança relativa a um presidente de origem socialista, traduzindo-se isto em críticas constantes e depreciação do trabalho efetuado pelo atual presidente, já o eleitorado de esquerda, embalado pelo regresso à presidência, 17 anos depois, esperava não ouvir da boca do eleito palavras como cortes de subsídios, aumento da austeridade, entre outras medidas para combater a crise financeira da França.
              François Hollande não cede ao mediatismo neoliberal: continua consciente do seu sentido europeu – evita o confronto federalista com a Alemanha, no entanto, demonstra o seu poder bélico com um raid no distante Mali; ajusta a dimensão do Estado à receita fiscal, injetando na economia fundos estatais procurando alavanca-la, apesar de, tal como em outros países atlânticos, os indicadores de atividade económica não serem famosos.
            Perante isto, onde errou o presidente francês?
            Veja-se as medidas simbólicas: redução em 30% do seu salário e dos seus ministros, demonstrando o excesso de vencimento que o anterior presidente ousou auferir. Aumento de impostos para as grandes fortunas (1500 franceses), tendo o infortúnio de o autor da medida, o seu ministro das finanças, ser também evasor fiscal – o que obrigou à publicação de uma lei de transparência sobre os rendimentos dos políticos.
Errou?
Na essência, François Hollande escolheu os alvos, a classe política e as grandes fortunas.
A manipulação da opinião pública não se fez esperar. Os comentários depreciativos sobrepõem-se a todos os outros, denegrindo a sua imagem e claro, as sondagens são divulgadas como grande perdas de popularidade e apresentadas como o resultado de uma péssima gestão política.
No essencial, a teoria de Hollande não é aceite.
Muito menos em governos de origem liberal, como o de Portugal. Os políticos do eixo do poder não abdicam dos seus privilégios, não baixam os seus vencimentos, nem as regalias, nem as ajudas de custo, nem mesmo prescindem de gabinetes recheados de assessores, de secretários e de motoristas.
A única medida apresentada nestes últimos dois anos, para redução destes privilégios, foi a eliminação de 18 governadores civis e de 25% dos presidentes de junta de freguesia, não significando com isto uma grande redução da despesa com a classe política. Pelo contrário, Miguel Relvas deixou como legado um diploma enquadrando as várias comunidades intermunicipais, criando novos cargos políticos, que muito provavelmente serão chumbadas pelo Tribunal Constitucional.  
Por cá, a manipulação é feita de outra forma: acusa-se os reformados e os funcionários públicos, ataca-se os seus vencimentos e coloca-se os outros contribuintes contra eles. Os comentadores e analistas dão-se ao frete e a classe política vai reinando, não se beliscando minimamente.
 
(a publicar no dia 16/05/13)
 

quarta-feira, maio 08, 2013

Quilómetro Zero

            Nas cercanias de S. Pedro do Sul, percorrendo o caminho pedestre em parte traçado na antiga linha do Vale do Vouga, desviei-me do trilho, para evitar um afluente em fúria. Um pequeno afastamento, o suficiente para causar um transtorno de horas extra de caminhada. Procurava a distância mais rápida (e seca) para regressar à sede de concelho e surgiu no gps, meramente indicativo – geograficamente mais a oeste, a N 227, ou seja, a estrada nacional 227, que liga S. João da Madeira à cidade da região de Lafões.
            Viajei no tempo.
            Esta estrada nacional iniciava-se precisamente no cimo da Rua da Liberdade. Ali estava implantado o marco do quilómetro zero. Do lado direito quem desce. Um paralelepípedo granítico, com o topo plano, tendo como indicação o tipo de estrada, o seu número e claro o zero, indicando o inicio de contagem.
            A liberdade mudara o nome da rua. A placa do Marechal Carmona ficava submersa na política, a nova designação toponímica viveu durante anos debaixo da consecutiva propaganda, cartazes sobre cartazes, amarelecidos pelo sol, lacados pela humidade, no entanto, uma nova camada de posters sobrepunha-se.
Passei a minha infância sem ver a placa com o nome da rua. No caminho para a escola, passava rente à parede cheia de cartazes, olhava para o outro lado da rua e contemplava o marco. Isolado, na esquina, no alto daquela rua, parecia um trono.
Um dia ao atravessar a rua, a caminho da igreja, ou por outro motivo, convenci quem me acompanhava a deixar-me subi-lo. Sentei-me. Com um sorriso de satisfação, os meus olhos fitaram a janela do meu quarto.
A Rua da Liberdade, na década de 70 do século XX, tinha passeios laterais de calçada portuguesa e a estrada era em paralelo de granito escuro. Na esquina do marco não havia qualquer edifício. Um terreno vazio, desnivelado, com acesso por duas rampas opostas, permitia estacionar dezenas de motorizadas e um Renault 6. Dali para baixo sucediam-se os prédios, ocupados no rés-do-chão por lojas: no imediato surgia a Philips com o seu letreiro vertical azul, seguida dos móveis da Casa Ferreira. Mais abaixo, o Pagapouco ocupou as instalações do Café Eldorado, no entanto, o reclame deste enferrujou-se durante anos, em frente aos meus olhos. A barbearia Salão Dourado existe desde a minha meninice naquelas instalações. Ao seu lado, fechando a sequência, vivia uma família Ribas e se a memória não me atraiçoa, havia ali um estabelecimento de artigos têxtil.
Do outro lado da rua, a sequência iniciava-se com a Casa Glória – outro resistente, seguia-se o alfaiate FatoLindo, segue-se o Café / Casa Avenida – mais um resistente. Noutros tempos existiu mais abaixo a Casa Cilita (Reis). O Estúdio Almeida, grande resistente, antecipava a Garagem LM, ambos tinham reclames exteriores verticais e gigantescos, que ladeavam a minha vista sobre a rua. Deste lado da rua, o Porfírio, ou Grundig, fechava a sequela.
Dali para baixo, até ao cinema, existem alguns prédios que não tenho a certeza se assisti à sua construção, embora a minha recordação esteja associada à instalação das primeiras lojas. O que é normal, se nos colocarmos na perspectiva de uma criança. Por isso, para não desvirtuar a cronologia, vou concentrar-me primeiro no trecho esquerdo da rua. Depois de atravessar a Rua Júlio Dinis, surgia uma drogaria, que deu lugar ao Minipreço. Por ali abaixo, poucas variações houve: Padaria do Souto, Ourivesaria / Relojoaria, Aldeia Velha, a entrada para o Santola, a Sapataria Paulita, uma loja de roupa – cujo nome esqueci – uma entrada para um restaurante e a seguir o Café 25 de Abril, mesmo antes do Cinema Imperador, na época das sextas-feiras manhosas e das matinés de filmes indianos. Do lado direito quem desce a sequência era esta: tintas Robbialac, os concorridos bilhares do 104, as lãs do Sr. Cardoso, a Casa Santos e o Ulic Bar (este prédio vi a ser construído) e a Corpini – embora me recorde de uma outra loja, por ali. A seguir existia uma enorme buraqueira, à espera da construção.   
Comércio, serviços e moradores sempre coabitaram pacificamente na Rua da Liberdade. Vários edifícios albergam ainda hoje escritórios de médicos e advogados. Outrora existiram seguradoras, sindicatos e cabeleireiros.
A azáfama da rua comercial, o rodopio de clientes e forasteiros, nem permitia perceber que naquela rua havia moradores. As portas de serventia estavam abertas para acesso facilitado dos clientes ao primeiro andar e mais acima, nos seus apartamentos, viviam famílias. Não vou nomeá-las exaustivamente. Desculpo-me, prometendo uma outra escrita em futura oportunidade.
Importa registar que a Rua da Liberdade, apesar de atravessada por outra Rua, foi sempre uma só. Não faz sentido, agora no século XXI, ficar dividida em termos de aspecto e funcionalidade. Esperemos que impere o bom senso.
A história vai-se reescrevendo. A da Rua da Liberdade também. Eu como antigo morador perpetuo-a, ficando satisfeito por verificar que o actual Presidente da Câmara de S. João da Madeira, Ricardo Figueiredo, também viveu ali a sua infância. 
 
 
(a publicar no dia 09/05/2013)