quarta-feira, maio 08, 2013

Quilómetro Zero

            Nas cercanias de S. Pedro do Sul, percorrendo o caminho pedestre em parte traçado na antiga linha do Vale do Vouga, desviei-me do trilho, para evitar um afluente em fúria. Um pequeno afastamento, o suficiente para causar um transtorno de horas extra de caminhada. Procurava a distância mais rápida (e seca) para regressar à sede de concelho e surgiu no gps, meramente indicativo – geograficamente mais a oeste, a N 227, ou seja, a estrada nacional 227, que liga S. João da Madeira à cidade da região de Lafões.
            Viajei no tempo.
            Esta estrada nacional iniciava-se precisamente no cimo da Rua da Liberdade. Ali estava implantado o marco do quilómetro zero. Do lado direito quem desce. Um paralelepípedo granítico, com o topo plano, tendo como indicação o tipo de estrada, o seu número e claro o zero, indicando o inicio de contagem.
            A liberdade mudara o nome da rua. A placa do Marechal Carmona ficava submersa na política, a nova designação toponímica viveu durante anos debaixo da consecutiva propaganda, cartazes sobre cartazes, amarelecidos pelo sol, lacados pela humidade, no entanto, uma nova camada de posters sobrepunha-se.
Passei a minha infância sem ver a placa com o nome da rua. No caminho para a escola, passava rente à parede cheia de cartazes, olhava para o outro lado da rua e contemplava o marco. Isolado, na esquina, no alto daquela rua, parecia um trono.
Um dia ao atravessar a rua, a caminho da igreja, ou por outro motivo, convenci quem me acompanhava a deixar-me subi-lo. Sentei-me. Com um sorriso de satisfação, os meus olhos fitaram a janela do meu quarto.
A Rua da Liberdade, na década de 70 do século XX, tinha passeios laterais de calçada portuguesa e a estrada era em paralelo de granito escuro. Na esquina do marco não havia qualquer edifício. Um terreno vazio, desnivelado, com acesso por duas rampas opostas, permitia estacionar dezenas de motorizadas e um Renault 6. Dali para baixo sucediam-se os prédios, ocupados no rés-do-chão por lojas: no imediato surgia a Philips com o seu letreiro vertical azul, seguida dos móveis da Casa Ferreira. Mais abaixo, o Pagapouco ocupou as instalações do Café Eldorado, no entanto, o reclame deste enferrujou-se durante anos, em frente aos meus olhos. A barbearia Salão Dourado existe desde a minha meninice naquelas instalações. Ao seu lado, fechando a sequência, vivia uma família Ribas e se a memória não me atraiçoa, havia ali um estabelecimento de artigos têxtil.
Do outro lado da rua, a sequência iniciava-se com a Casa Glória – outro resistente, seguia-se o alfaiate FatoLindo, segue-se o Café / Casa Avenida – mais um resistente. Noutros tempos existiu mais abaixo a Casa Cilita (Reis). O Estúdio Almeida, grande resistente, antecipava a Garagem LM, ambos tinham reclames exteriores verticais e gigantescos, que ladeavam a minha vista sobre a rua. Deste lado da rua, o Porfírio, ou Grundig, fechava a sequela.
Dali para baixo, até ao cinema, existem alguns prédios que não tenho a certeza se assisti à sua construção, embora a minha recordação esteja associada à instalação das primeiras lojas. O que é normal, se nos colocarmos na perspectiva de uma criança. Por isso, para não desvirtuar a cronologia, vou concentrar-me primeiro no trecho esquerdo da rua. Depois de atravessar a Rua Júlio Dinis, surgia uma drogaria, que deu lugar ao Minipreço. Por ali abaixo, poucas variações houve: Padaria do Souto, Ourivesaria / Relojoaria, Aldeia Velha, a entrada para o Santola, a Sapataria Paulita, uma loja de roupa – cujo nome esqueci – uma entrada para um restaurante e a seguir o Café 25 de Abril, mesmo antes do Cinema Imperador, na época das sextas-feiras manhosas e das matinés de filmes indianos. Do lado direito quem desce a sequência era esta: tintas Robbialac, os concorridos bilhares do 104, as lãs do Sr. Cardoso, a Casa Santos e o Ulic Bar (este prédio vi a ser construído) e a Corpini – embora me recorde de uma outra loja, por ali. A seguir existia uma enorme buraqueira, à espera da construção.   
Comércio, serviços e moradores sempre coabitaram pacificamente na Rua da Liberdade. Vários edifícios albergam ainda hoje escritórios de médicos e advogados. Outrora existiram seguradoras, sindicatos e cabeleireiros.
A azáfama da rua comercial, o rodopio de clientes e forasteiros, nem permitia perceber que naquela rua havia moradores. As portas de serventia estavam abertas para acesso facilitado dos clientes ao primeiro andar e mais acima, nos seus apartamentos, viviam famílias. Não vou nomeá-las exaustivamente. Desculpo-me, prometendo uma outra escrita em futura oportunidade.
Importa registar que a Rua da Liberdade, apesar de atravessada por outra Rua, foi sempre uma só. Não faz sentido, agora no século XXI, ficar dividida em termos de aspecto e funcionalidade. Esperemos que impere o bom senso.
A história vai-se reescrevendo. A da Rua da Liberdade também. Eu como antigo morador perpetuo-a, ficando satisfeito por verificar que o actual Presidente da Câmara de S. João da Madeira, Ricardo Figueiredo, também viveu ali a sua infância. 
 
 
(a publicar no dia 09/05/2013)
 

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