quarta-feira, outubro 29, 2014

Círculos Eleitorais

                Na semana anterior, ao discorrer sobre as potencialidades da Associação de Municípios de Terras de Santa Maria, fiquei com a sensação de o texto estar incompleto.

Poderia ter-me alongado sobre as possibilidades de afirmação dos concelhos integrantes da referida associação na Área Metropolitana do Porto (AMP), contudo, não senti qualquer incómodo, pelas sugestões apresentadas. Nem muito menos, ao referir o atual estado de inércia da mesma associação. Neste capítulo, poderia ter procurado mais informação sobre a empresa intermunicipal, no entanto, não sou jornalista e escrevo apenas e só artigos de opinião, perante factos concretos.

A reorganização do Estado despertou a minha atenção. Transcrevi boas práticas. Limitei-me a aludir certos serviços, que optaram pela designação de “Entre Douro e Vouga”, outrora denominados “sub-delegação distrital”.

Daqui verifiquei a dualidade de critérios, nestas reorganizações das últimas décadas. Por um lado, a indexação do concelho às valências da região Norte. No passado à Direção Regional Educação Norte, à Comissão Coordenação Desenvolvimento Regional do Norte, à Administração Regional do Norte e ao Turismo do Porto e Norte de Portugal foram alguns dos supervisores, ou se quisermos, orientadores da cidade, nos últimos anos.

Em contrapartida, verifiquei que a reorganização Estatal não é transversal a todos os ministérios. A Segurança Social permanece com delegações distritais e o controverso novo mapa judicial ignorou todas as alterações territoriais, produzidas nos últimos anos e manteve os concelhos ligados aos distritos. Ou seja, nestes assuntos, S. João da Madeira está indexado ao distrito e comarca de Aveiro.

Para aumentar esta confusão, temos a própria opção, deste concelho pela adesão à AMP em detrimento da Comunidade Intermunicipal mais próxima, perfeitamente aceite pela população.

É complicado perceber a lógica.

As Áreas Metropolitanas e as Comunidades Intermunicipais (CI) ficaram estabelecidas no final da década passada. A lei n.º 75 / 2013, a mesma que define as competências dos órgãos autárquicos, veio definir o mapa definitivo dessas sociedades e aprovou o estatuto das entidades intermunicipais, atribuindo-lhes como competências:

a) Promoção do planeamento e da gestão da estratégia de desenvolvimento económico, social e ambiental do seu território;

b) Articulação dos investimentos municipais de interesse intermunicipal;

c) Participação na gestão de programas de apoio ao desenvolvimento regional, designadamente no âmbito dos fundos estruturais comunitários;

d) Planeamento das atuações de entidades públicas, de caráter supramunicipal;

Uma nova coesão e identidade regional parece estar a nascer.

Algumas CIM correspondem a regiões naturais como o Algarve, ou às áreas territoriais dos distritos, como Viana do Castelo. Por seu lado, alguns distritos desagregam-se, Braga divide-se em dois: CI do Ave e CI do Cávado. O distrito de Aveiro, por seu turno divide-se da seguinte forma: Castelo de Paiva integra-se com os vizinhos da CI do Tâmega e Sousa; os concelhos de Espinho, Arouca, Vale de Cambra, Santa Maria da Feira, S. João da Madeira e Oliveira de Azeméis integram-se na AMP; o concelho da Mealhada preferiu a CI da Região de Coimbra; e os concelhos não enunciados: Aveiro, Ovar, Estarreja, Murtosa, Ílhavo, Vagos, Albergaria-a-velha, Águeda, Oliveira do Bairro, Anadia, Sever do Vouga constituíram a CIRA – CI da Região de Aveiro.  

Perante este cenário, é normal perguntarmos qual a razão para manter os atuais círculos eleitorais distritais? Que sentido fará, a S. João da Madeira e aos seus vizinhos, no futuro, promover o desenvolvimento regional na AMP e eleger para o parlamento, deputados pelo círculo eleitoral do distrito de Aveiro?

Corre-se o risco de não eleger nenhum deputado dos concelhos visados. Eleitos com preocupações para com a população de uma determinada CM e sem qualquer relação com os concelhos pertencentes a outra CM, ou à AMP mas, no entanto, inseridos no seu círculo eleitoral.

Esta é uma consequência do anacronismo da organização rígida dos territórios por distritos, quando ao longo dos últimos quarenta anos, com as associações de municípios, essa coesão distrital esbateu-se. Obviamente, é necessário adaptar-se a lei eleitoral e rever a organização territorial, adaptando-a às CI e AMP.

Convém referir que estas no território continental são 23 e o número de distritos fica-se pelos 18.

Esta mudança poderá passar pela organização dos partidos políticos. Na divulgação das eleições primárias do PS, o distrito de Lisboa já aparece dividido em dois: FAUL – área urbana de Lisboa e FRO – região do Oeste. Uma aproximação à realidade das CI, que poderá facilitar a tão desejada mudança da lei.

 

(a publicar no dia 30/10/14)

 

 

quarta-feira, outubro 22, 2014

As parcerias

Primeiro foram as freguesias vizinhas, juntamente com a de S. João da Madeira, a lavrar um protesto acerca da possibilidade de encerramento do centro de distribuição dos CTT, nesta cidade.

No mês passado soubemos, a propósito da nova piscina, existir um parecer favorável à sua construção, manifestando o interesse público do equipamento para a região, assinado pelos presidentes de Câmara dos Municípios vizinhos.

Estas tomadas de posição conjuntas retomam a coesão institucional existente durante anos, ao abrigo da Associação de Municípios das Terras de Santa Maria (AMTSM), depois da adesão dos seus municípios à Grande Área Metropolitana do Porto (GAMP) e também após as querelas devido ao novo mapa judiciário, ou à reorganização da saúde, além dos resultados autárquicos do último ano.

A AMTSM foi constituída por escritura pública a 12 de Setembro de 1985 pelos municípios de Oliveira de Azeméis e S. João da Madeira, onde actualmente tem a sua sede.

Com isto, antecipou-se o Decreto-Lei n.º 46 de 1989, que[] definiu os três níveis da Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos (NUTS) para as afinidades territoriais portuguesas, enquadrando no terceiro nível, designado como NUTS 3, o Entre Douro e Vouga.   

Por este facto e atendendo também a outras analogias, a AMTSM recebeu a adesão do concelho de Vale de Cambra em 1993, seguindo-se, em 2000 Arouca e Santa Maria da Feira, ficando esta associação municipal com a mesma área geográfica do Entre Douro e Vouga, enquanto NUTS 3, já que as margens do rio Vouga ficam bem distantes do limite sul do concelho de Oliveira de Azeméis.

A AMTSM procurou assumir responsabilidades no processo de desenvolvimento no seu território. Na década passada lançou três projectos, utilizando a sigla da NUTS 3: EDV Informação, EDV Digital e EDV Energia, todos eles sem efeito prático e duradoiro para a generalidade da população, servindo apenas para enriquecer o currículo de alguns autarcas.

No presente ano, a AMTSM mantém três projectos: o canil intermunicipal, o Sistema de Drenagem e Tratamento de Águas Residuais (STAR) e o Parque Empresarial de recuperação de materiais das Terras de Santa Maria (PERM, EIM), sob a alçada de uma empresa intermunicipal.

Antes de avançar, é importante indicar outro tipo de parcerias entre agentes dos diferentes concelhos do Entre Douro e Vouga: CFSMJGE - Cooperativa Agrícola da Feira, S. João da Madeira, Gaia e Espinho C.R.L., com instalações nesta cidade, junto à estação; a Associação Comercial dos concelhos de Ovar e S. João da Madeira; a ACCOAVC - Associação Comercial dos Concelhos de Oliveira de Azeméis e Vale de Cambra; e a Associação Florestal do Entre Douro e Vouga, com sede em Arouca.

Para finalizar a caraterização da região, deve-se realçar a organização Estatal, tendo como base a descentralização, redefiniu a política de proximidade à população, ao nível das NUTS. A face mais conhecida, provavelmente o maior caso de sucesso, pelo envolvimento em rede de todas as valências existentes na região é o Centro Hospitalar Entre Douro e Vouga. Além da gestão supra municipal de recursos, existem delegações regionais, da Autoridade para as Condições do Trabalho – ACT e do Instituto do Emprego e Formação Profissional – IEFP.

Estas ações contrastam com as da AMSTM. O PERM – EIM suscitou dúvidas. A viabilidade financeira ainda hoje é uma incógnita. A procura de lotes no parque é reduzida e como tal, o retorno da AMSTM demorará a ser conseguido. Por seu lado, a STAR terá que verificar o enquadramento jurídico no fornecimento das águas tratadas às concessões privadas da distribuição de água potável. Por fim, com a futura construção do albergue para animais em S. João da Madeira, vencedor do Orçamento Participativo Municipal, a funcionalidade do canil intermunicipal é posta em causa.

 Perante tudo isto, qual será o futuro destas parcerias municipais à escala da Grande Área Metropolitana do Porto?

Deverá continuar-se com a lógica do Entre Douro e Vouga?

Ou deverá alargar-se aos restantes concelhos a sul do Douro (Espinho e Gaia)?

Para responder, é necessário, ter presente a demografia e a geografia do EDV: 274.859 habitantes em 859 Km2 e comparar apenas com os dados do concelho de Gaia: 302.295 habitantes para 168 Km2.

A dimensão de Gaia obriga a estabelecer entendimentos entre os atuais concelhos da Associação de Terras de Santa Maria.

Haverá matérias em que a escala a Sul do Douro deverá ser a bitola, como por exemplo a Energia, os resíduos e as redes de transporte (ligação de Arouca à A32, transformação ferroviária da linha do Vouga).

Noutras, deve-se ter presente a identidade dos concelhos e do quotidiano das populações, para desenvolver parcerias de Promoção Cultural, atendendo às simetrias existentes na região e à proximidade das suas principais cidades, procurando atrair um público urbano para o consumo cultural, nos espaços existentes na região.

No mesmo sentido, o Turismo existente no EDV deve-se complementar, criando um produto integrado, com a oferta do Geopark, o património histórico do Castelo da Feira, o património religioso do Mosteiro de Arouca, as paisagens naturais dos concelhos da Serra da Freita, o Turismo Industrial de S. João da Madeira, as aldeias típicas ou ribeirinhas de Paradinha, Ul, Trebilhadouro e Porto Carvoeiro, esta junto ao rio Douro. Tudo isto, com ofertas de dormida e valorizando-se os Produtos Gastronómicos da região: a vitela arouquesa, o vinho verde de Vale de Cambra, o pão de Ul, as fogaças da Feira e os vários doces, incluindo os conventuais. A ideia será oferecer a um turista uma série de rotas, roteiros, pontos de interesse, que completem o seu dia, quando opta por permanecer e descobrir a região.

Não esquecendo que o Turismo Industrial pode e deve ser um conceito dos concelhos a Sul do Douro, juntando-se a arqueologia industrial (redes de museus) às atividades bem diversificadas, ainda em laboração e algumas únicas da região, que por isso são atrativas. Em tempos, em ensaio publicado no labor, chamei a essa região turística, Douro Industrial.

Se o Turismo é a atividade económica com maior margem de progressão no EDV, é necessário não esquecer a atividade empresarial tradicional, comércio e industria e encontrar soluções intermunicipais de associativismo, alargando as áreas de atuação das existentes, fundindo-as, procurando assim, ganhar força negocial, com uma associação empresarial única.

  O mesmo acontecendo com as incubadoras de empresas, quer as de base tecnológica, quer as criativas, através da criação de uma rede na região. Poderá “reduzir-se” a distância entre os vários polos, entre estes e os centros tecnológicos e também as Universidades, podendo-se trazer mais valor acrescentado aos seus produtos e com isso, beneficiar todos os agentes.

A singularidade de S. João da Madeira permitiu, no passado, agrupar a atividade da AMTSM na cidade. O futuro do EDV, na escala da Grande Área Metropolitana do Porto, passará pela afirmação coletiva dos seus municípios. Com os equipamentos atualmente existentes na cidade, a proximidade aos restantes municípios, devido à centralidade geográfica, passará por S. João da Madeira a capacidade de assumir como seu, este desígnio.

 

(a publicar no dia 23/10/14)

 

quarta-feira, outubro 15, 2014

O Nobel

O interesse nestes primeiros dias de Outubro centra-se na atribuição dos prémios Nobel. A anteceder existem palpites, surgem as mais diversas conjeturas, através de notícias pouco fidedignas e até as casas de apostas divulgam os seus principais candidatos a receberem os prémios, em função da proporção apurada em caso de cada vitória, exercendo diretamente pressão sobre a Academia Sueca.

Numa semana em que escrevo na véspera de ser conhecido o vencedor, ou vencedores, do Orçamento Participativo Municipal de S. João da Madeira, no mesmo dia em que será pública a disponibilidade de verbas do quadro comunitário para a nova piscina municipal, temas que são do meu agrado e que habitualmente comento, não o podendo fazer para esta edição do labor, por ausência de dados em concreto, decidi arriscar um comentário aos prémios Nobel.

Vou meter-me em sarilhos.

A distinção com o Nobel da Paz de Malala Yousufzai e Kailash Satyarthi, ela Paquistanesa e ele Indiano, asiáticos portanto, defensores dos direitos das crianças à educação, revela a mensagem da Academia Sueca, para aquele continente. O crescimento económico deve ser acompanhado pela melhoria das condições de vida da população e neste sentido, os direitos humanos devem ser considerados. Os direitos das crianças e também pela igualdade de género, são deficitários na maioria da Ásia, assim como, a própria democracia, como demostraram os jovens de Hong Kong, durante os vários dias do seu protesto.   

Se o prémio Nobel da Paz visou uma grande questão social, a atribuição do Nobel da Literatura ao escritor Francês Patrick Modiano relembrou à Europa o seu passado. A memória do nazismo, percorre a sua obra, conforme foi divulgado na citação da Academia Sueca. Enquanto assistimos ao regresso da intolerância europeia, com partidos de extrema-direita a conquistar eleitorado é bom recordar através da literatura os anos da ocupação alemã e lembrar o antissemitismo. Nos dias de hoje, alastra igualmente pela Europa um sentimento não disfarçado de islamofobia, com consequências duvidosas para o futuro do continente, que procura ser um local de paz, prosperidade e de harmonia de povos.  

Longe do cariz político, ficaram adiados os prémios literários ao Japonês Haruki Murakami e ao Norte-americano Philip Roth, eternos candidatos ao Nobel, segundo vários entendidos.

Mais uma vez, a essência deste prémio da literatura deixou de fora o mediatismo.

A lógica do Nobel difere da nomeação dos Óscares, dos Emmys, ou mesmo dos Grammy.

A imprevisibilidade é a garantia do sucesso.

O entregar ao mundo mediático a vida de um escritor, depois de uma vida recheada de livros publicados, de obter uma crítica ou outra favorável, daí ao conseguir interpretações da sua obra pelos meios académicos, de poder gerar discussões em tertúlias intelectuais, de manter atentos uma legião de seguidores, de publicar textos em revistas ou jornais para sobreviver, permite compreender melhor a grande compensação de um prémio Nobel.

É curioso que na lista publicada na revista Newsweek, dos principais livros de todos os tempos, apenas surja um escritor vencedor de um prémio Nobel – O Som e a Fúria de William Faulkner. Os outros nomeados ou são de anos anteriores ao século XX, como Tolstoi, Homero, Dante, ou tiveram uma carreira distante do reconhecimento da Academia Sueca, como James Joyce, Virginia Wolf, Vladimir Nabokov, ou George Orwell, entre outros. 

O efeito esperado pela literatura, como defendeu Roberto Bolaño, ao longo do seu livro 2666.

Propositadamente não aprofundei o tema da hipotética atribuição do prémio Nobel a escritores Norte-americanos, como tem acontecido nos últimos 21 anos. Assunto a que voltarei no futuro.

Se calhar daqui a um ano, se prosseguir com a leitura de escritores daquele continente. Por momento, vou iniciando a obra de Donna Tartt… 

 

(a publicar no dia 16/10/14)

 

quarta-feira, outubro 08, 2014

Do 28 de Maio ao 11 de Outubro

                A emancipação concelhia de S. João da Madeira, assinada a 11 de Outubro de 1926, poderá ter sido a primeira medida da Ditadura Militar, no âmbito da organização da Administração local.

                Após 80 dias sobre o golpe militar de Costa Gomes e dez ministros nomeados para a pasta, Jaime Afreixo foi empossado como Ministro do Interior. O líder da marinha da revolução de 28 de Maio, não permaneceu muito tempo no cargo. O seu mandato durou até 1 de Novembro. O que é indicativo da instabilidade governamental, por impreparação dos militares, vivida nesses meses.

                Pela cronologia da criação de concelhos, verifica-se que sob assinatura de Jaime Afreixo foram emancipados dois concelhos, S. João da Madeira e Murtosa, este a 29 de Outubro. Nestes concelhos ainda existem referências toponímicas ao antigo vice-almirante, assim como, monumentos de agradecimento erigidos em época própria.   

                Nos quarenta e oito anos seguintes, nada mudou no mapa concelhio nacional. As alterações surgem com a democracia. Em 1979 é criado o concelho da Amadora e em 1998, de uma assentada, três novos concelhos elevam-se: Vizela, Trofa e Odivelas.    

                A singularidade do concelho de S. João da Madeira, de freguesia única, não foi inventada pelos militares, na declaração da sua emancipação. Ainda na semana passada, o jornal labor numa excelente reportagem sobre a transferência de competências para as juntas de freguesia, revisitou os concelhos de freguesia única. Os mais atentos perdoarão a repetição da nomeação destes cinco territórios: Porto Santo, S. Brás de Alportel, Barrancos, Alpiarça e Castanheira de Pera. Embora este último, só a partir de 2013, tenha transitado para este grupo, devido ao agrupamento das suas freguesias.

Atente-se no ano de emancipação ou formação destes concelhos. Em 1914, na 1ª República, foram elevados Alpiarça e S. Brás de Alportel (juntamente com Bombarral, Alcanena e Ribeira Brava, aqui apresentados para se entender que a criação das referidas autarquias, não constituiu um ato isolado).

Durante a monarquia liberal, na reforma administrativa de Mouzinho da Silveira de 1835, é criado o concelho de Porto Santo.    

Muitos séculos antes, em 1290, por foral de D. Dinis é constituído o concelho de Barrancos. Demonstrativo da relevância dos concelhos na história medieval, em contraponto aos senhores feudais – nas imediações desta povoação situava-se o castelo fronteiriço de Noudar, hoje uma ruina.

É bem provável que a reforma de 1835 tenha extinguido uma série de concelhos com estas particularidades.

Pela história percebe-se que a Administração local sempre se adaptou às singularidades dos concelhos, nas ilhas ou no continente. No norte como no sul, sem complexos geográficos.

Em 1832, o referido Mouzinho da Silveira elaborou a reforma administrativa das ilhas. Entre as várias medidas tomadas, uma perpetuou-se, a criação do concelho do Corvo nos Açores, com uma novidade, este concelho não tinha, nem ao fim destes quase dois séculos tem, freguesias.

Foquemo-nos na citada reportagem do labor, escrita por Anabela S. Carvalho. A coincidência de competências entre as entidades administrativas do mesmo território foi apontada como uma incongruência da lei n.º 75 / 2013, algo a que eu próprio já tinha aludido em Fevereiro deste ano e que repeti no último mês. Enfâse, na referida notícia, para a afirmação do socialista Filipe Menezes de Oliveira, edil de Porto Santo, concordando com a extinção da freguesia, ressalvando que “o interesse público não ficaria violado”.

Conforme descrito, desde a criação do concelho do Corvo, enquadramento jurídico já existe para essas abolições, atualizado ao longo destes dois séculos, até ao Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, Lei n.º 2 / 2009 de 12 de Janeiro, que prevê no seu artigo 136, o Município do Corvo, designando-o como titular das competências genéricas das freguesias, devido aos seus condicionalismos próprios.

Não se encerram na história, nem no contexto administrativo, as peculiaridades geográficas da ilha. O Corvo é o concelho menos populoso de Portugal. Só que com os seus 17,13 Km2, não é o mais pequeno do país, como todos sabemos.

A proporcionalidade territorial ainda é válida hoje, em pleno século XXI, como seria em 1926.

Jaime Afreixo, em 73 dias de mandato, nem deve ter tido tempo para contactar com a totalidade da legislação portuguesa. Ousadamente emancipou dois concelhos. Um, sendo o único a norte do rio Mondego de freguesia única, terá causado estranheza no conservadorismo da região e talvez por isso, durante os anos seguintes de ditadura militar, nada se alterou na administração local do país. Antes pelo contrário, durante esses anos, transmitiu-se aos concelhos a mesma ideologia que era apregoada para o estrangeiro, o “orgulhosamente sós”, exacerbando-se a rivalidade entre povoações, pelo fomento do bairrismo.

Após 40 anos de democracia é normal que se repense a Administração local, permitindo propor-se alterações aos conceitos existentes.

A eloquência dos argumentos sustentará a defesa da futura extinção da freguesia e permitirá compreender, melhor, as razões dos que defendem a simplificação e aproximação do Estado ao cidadão. 

 

(a publicar no dia 09/10/14)

 

quarta-feira, outubro 01, 2014

Direito ao esquecimento

                - Lembra-se de mim?
                Arrisco o contacto. À minha frente um rosto enrugado, de um corpo encarquilhado. Reconheço o passar dos anos no interlocutor e ficando surpreendido pelo reencontro e em espaço público, aproximo-me.
O olhar, indiferente, responde à minha pergunta. Volveram-se umas décadas, eu acedia à sua casa para jogar à bola, cumprimentando com deferência, atravessando os compartimentos para aceder ao pátio, onde os pontapés certeiros na bola eram os argumentos daquelas tardes.
Perante a negação, não insisto com o
- Lembra-se de mim?
mudo de estratégia. Não utilizo o egocêntrico
- Sabe o meu nome?
Pela experiência em reencontrar-me com tios e tias de ano a ano, ou algumas vezes, em encontros familiares mais alongados no tempo, quando os vejo confusos, digo logo o meu nome próprio e a minha ascendência, ajudando o meu familiar a situar-me com o seu irmão, ou irmã, ou cunhado ou cunhada. Esta comunicação direta evita contratempos de memória e permite aos mais velhos ordenarem prontamente as ideias.
Aqui em S. João da Madeira, substituo a ascendência pelo grau de amizade com os filhos e o desconhecimento mantém-se.
Enquanto insisto, utilizando o nome de família, recordo os episódios daqueles que deixei de ver durante anos, alguns mesmo décadas e como no reencontro, ao cumprimentarem-me, fiquei indiferente a um careca com óculos, ou a um barrigudo de barbas, ou a uma magricela envelhecida. Desculpando-me aleguei o longo tempo de desencontro, as mudanças físicas, a fisionomia alterada, as mudanças de morada, o relacionamento com várias pessoas em concelhos diferentes e ali, naquele reencontro, com alguém que não frequento a casa há trinta anos, ou mesmo as imediações da habitação há pelo menos vinte anos, com quem não me cruzei seguramente nos últimos dez, obrigo-o a um exercício de reconhecimento de um adulto já com cabelos brancos, quando na sua memória, o máximo que eu podia ser era um adolescente, bastante magro.
Todas as coordenadas utilizadas esbarraram-se no não reconhecimento. A dificuldade é compensada por um acenar de um dos seus filhos, situado no outro lado da vitrine. Verifico uma certa lógica de raciocínio, vencendo a dificuldade da falta de memória, reconhecendo a amizade através daquele aceno no presente. Faço conversa de circunstância. Intromete-se uma terceira pessoa. Despeço-me, desejando saúde e agradecendo todas as atenções do passado.
- Estás igual.
Habituei-me a ouvir o monótono comentário nos reencontros.
Desta vez, não.
Terei que aprender a lidar com o esquecimento.        
Evitarei o
- Lembra-se de mim?
E acima de tudo, resistirei ao
- sabe o meu nome?
na hipótese dos meus familiares não se recordarem de mim.
 
(a publicar no dia 02/10/14)